Neoprotagonismo - O Coringa – o herói onírico no cinema

ANDRÉ RECHE TERNEIRO
JUAN DROGUETT

















O imaginário cultural é exacerbado pelas diversas formas de expressão artística compreendidas pelo ser humano na dimensão audiovisual. Por meio de ima-gens em movimento, o cinema constrói personagens que protagonizam a saga em mitos e fantasias que se oferecem como possibilidades identificatórias para o espectador, fazendo parte dessa trama ficcional. Para este, o protagonismo repre-senta a chance de ser contemporâneo a todo tempo e espaço em que a civilização arquitetou seus mitos, sonhos e fantasias.
Nesse sentido, o herói clássico, que inicia sua travessia na literatura, e se reforça nos ideais das gestas e romances medievais, vai encontrando seu papel nesse roteiro da dramaturgia em que salvar a humanidade representa o fim último de sua existência. No entanto, na fruição da arte de representar, não todo herói responde a um estereótipo ideal: com o devir dos tempos modernos, novos imaginários vêm de encontro à linguagem do cinema sempre ávido de contar as circunstâncias nas quais se geram os sonhos e os conflitos com que sempre o protagonista se enfrenta em termos de realidade. O interstício realidade - sonho fala da nossa natureza na sua forma mais pura e nos leva a induzir que o sonho é “a matéria-prima da qual somos feitos”, segundo nos revela o próprio William Shakespeare.
Na contemporaneidade, graças ao poderio técnico que o cinema disponibiliza a seus usuários, a realidade tende a ser retratada de maneira fiel, próxima do cotidiano do espectador, muitas vezes no limiar do chamado superrealismo — mímesis, a tal ponto que o mundo ficcional já não representa mais um ponto de fuga da realidade e sim um ponto de ancoragem no fenômeno do simulacro e da simulação, não permitindo ao espectador o alívio em realizar seus desejos mais inconscientes de liberdade por meio da experiência da catarse em que se alcança o êxtase desprendendo-se das reproduções técnicas do real, mesmo que esta experiência seja efêmera, imediata e inefável, pois tudo é uma questão de tempo1. Novas estratégias têm surgido para continuar propiciando essa experiência estética aos emergentes públicos das salas de cinema, novos motivos são patrocinados pela sociedade no seu afã de fazer funcionar o sistema e de permitir que a arte cumpra com sua função de entreter no mundo do espetáculo. Por isso, comparecem à tela figuras emble-máticas como o Coringa, que leva o selo do “jogo” como o significante último de sua razão de ser dentro de uma trama ficcional em que o protagonismo por muito tempo nos cobriu com sua sombra.

A sombra de Batman e a luz do Coringa

A recente produção Batman, o cavaleiro das trevas (2008) —The Dark Knight, dirigido por Christopher Nolan, traz em destaque o personagem do Coringa diferente do modelo de herói que estávamos acostumados a ver na figura do Batman. Com este travesso personagem, transitamos pelo território ficcional Gotham City com um sorriso de “orelha a orelha”, magne-tizados e fascinados com suas ações desprovistas de obrigações, mais focados em decifrar o enigma da sombra de um Batman retraído e quase melancólico2. O Coringa permite o direito ao erro, en-carnando a imagem do “falibilismo” humano para o qual nunca se quis direcionar a visão humanista, também o “protagonista” duplo de Batman ou seu “alter ego” nos interpela a nos desfazer daquilo que mais nos incomoda, da rotina e da massificante culpa de carregar nos nossos ombros o peso das mazelas sociais. Trata-se de um personagem sem culpa que nos convida só a brincar em um território sem lei, a não ser as regras do jogo que ele impõe porque ele o inventou. A esse projeto, Batman é convidado, assim como cada um de nós, bastaria renunciar a nossos preconceitos e consentir o devaneio —“o sonhar”, única fórmula capaz de romper as ataduras da moral.
A pergunta do personagem assim como da esfinge no oráculo de Delfos versa assim, Why so serious? , ela retrata muito bem o paradigma da lei social que tal personagem pretende derrubar na trama fílmica de Batman, o cavaleiro das trevas. Batman torna-se uma trajetória do herói sério, cumpridor das leis e das normas que lhe impõem seu ofício, sem o menor desejo de contestar ou de rebelar-se ante o desejo dos “outros” e do que estes querem fazer com sua vida. Neste sentido, Batman é feito imagem e semelhança do poder político e econômico que impera na cidade, em detrimento da sua individualidade e de cada um dos habitantes de Gotham City, sobretudo de Bruce Wayne, cuja missão consiste em proteger o território da invasão “estranha” aos interesses sociais e individuais da sociedade. O Coringa resulta o tempo todo para Batman “estranhamente familiar”, sendo o primeiro, o enigma daquilo que o segundo não se atreve a reconhecer como próprio a sua natureza. No meio de toda essa brincadeira, o Coringa parece estar reiterando o questionamento da esfinge: decifra-me, ou te mato!, e a resposta não se atreve a comparecer à boca de Batman por medo, nem eco faz na caverna tão bem arrumada pelo “conservador” Alfred na qual se encontra com seu fiel “escudeiro” Robin em um reiterado meet-again.
Vejamos, portanto, o que nos sugere essa atitude de Batman no seu “ocaso” de super-herói. Esta situação de “decadência” não deixa de ser uma metáfora para o ser humano contemporâneo, uma refração de nossa imagem representada pelo cinema em que a inversão de valores adquire uma conotação ontológica e existencial. Peter Dews no ensaio “Adorno, pós-estru-turalismo e a crítica da identidade”, afirma que o ser humano foi submetido, a vida toda, a um persistente controle social por meio da competição e cooptação de sua vida profissional. Nisso sua vida particular foi sendo absorvida pelas informações con-firmadas em que se cristalizam as relações interpessoais (DEWS, 2007:51). Deste modo, a caracterização de Batman nos remete à etimologia do termo personagem, do latim persona que designa a “máscara”, ou seja, o papel interpretado por um ator e não estamos falando de Christian Bale —O psicopata americano (2000), senão de Bruce Wayne, um cidadão afetado pela vigilante supervisão da lei que sustenta Gotham City e pelo que esta espera de seu defensor, ser o modelo do homem honesto, altruísta e generoso, capaz do auto-sacrifício bem como da busca da preservação da espécie humana. Assim a suposta aposentadoria de Batman representa o desejo de se ver livre do cumprimento desse papel de restaura-dor do equilíbrio “perdido”. Para isso, exige-se entrega total a um plano de redenção e reconstrução de um mundo destruído.
No caso de Batman, este encarna mais um tipo social, uma figura, um estereótipo do que uma entidade independente como o Coringa. O conflito entre o “âmbito do jogo” — a proposta do Coringa —e o “âmbito da realidade” na qual está inserido Bruce Wayne —Batman constitui o ponto chave para reconhecer o protagonismo do filme. Para Freud, o “princípio do prazer” e o “princípio de realidade” sempre estão em tensão e, quando a vontade humana está ao serviço da utilidade assim como em Gotham City, esbarra-se na incoerência, no arbítrio e na desordem. Na verdade, nada se alcança quando se chega a um fim estabelecido segundo regras com que se concorda, este é o drama do “mascarado” Bruce Wayne para quem a realidade insiste em parecer normal. Sob esta perspectiva, a ética procura definir o protagonista, suas ações e os valores que balizam o campo de sua ação. Distinguem-se com isto duas grandes dimensões destes personagens: o ser e o fazer dos mesmos pela atribuição de traços físicos —máscara e maquiagem —patológicos —neurótico e psicótico —e morais significados por seus atos, falas e comportamentos.
Bruce Wayne é pensado como um sujeito ético, um ser racional e consciente que sabe o que faz, mas que decide garantir para Gotham City a continuidade de seu legado moral, destinado ao promotor público Harvey Dent —“o homem de duas caras” —, discernindo entre o bem e o mal, o justo e injusto, a virtude e o vício. Consequen-temente, há um conflito entre a autonomia de Bruce que emana do seu interior e a heteronomia dos valores morais da sociedade que representa; externos à figura de Wayne. Esse conflito só se resolveria se Batman reconhecesse os valores de Gotham City como instituídos por ele, como se ele fosse o autor desses valores morais; só nesse caso, o protagonista seria autônomo dando a si mesmo a própria lei de ação.
No entanto, em Batman, o cavaleiro das trevas, como herói, seus superpoderes não são perfeitos. Isso fica em evidência por uma razão muito simples, o conflito do protagonista é interior e assombra porque passa pela imagem distorcida que lhe oferece de si seu pior inimigo, o Coringa.

Coringa —o divertido enigma do jogador - esfinge

A evolução audiovisual acompanha todos os nuances da história da humanidade em que, ser protagonista, significa encarnar valores morais como fruto de uma opção livre e espontânea em favor da comunidade, produzindo efeitos identificatórios. No caso de Batman na História do Cinema, esta designa a sucessão temporal de uma série de filmes que mostram a evolução do seu protagonismo, assim como as transformações da cidade, enquanto sociedade e o antagonismo do Coringa sempre prestes a jogar. As primeiras histórias de Batman são técnicas, pois reproduzem a transposição do enredo das Histórias em Quadrinhos para o cinema, sendo “o quadro” o suporte principal do registro a ser reproduzido. Daí veio uma fase marcada pela história da arte, inspirada na adaptação de personagens, ações e motivos que constituem o critério de produção formal de Batman.
Enfim, acrescentou-se a história econômica e social que envolve na atualidade o espectador, uma estética da recepção que contempla a interação destes agentes por meio dos processos de identificação diegética, isto é, com a situação narrada que demanda uma intervenção concreta como resultado da experiência de catarse (DROGUETT, 2007:2-18).
A catarse, segundo Juan Droguett no seu livro Sonhar de olhos abertos —cinema e psicanálise (2004), tem uma função comunicativa essencial no cinema, no âmbito da experiência estética sendo a “fruição de si na fruição do outro”, isso pode ser observado no filme Batman, o cavaleiro das trevas no contraponto Batman —Coringa, mas a catarse garante ante tudo o distanciamento de si e a experiência libertadora de viver uma condição alternativa e ao mesmo tempo virtual, a do Coringa. O autor pensa que existe conciliação da paixão neste personagem, por todo o que tem de descarga afetiva, retórica demonstrada na forma de brincar com as palavras e a libertação dos afetos patogênicos pela via do jogo como sentença de enunciação. O jogo do Coringa é um fim em si mesmo —é ele —e não um meio para conseguir resultados —dinheiro é queimado como prova dessa determinação mecânica e instrumental —assim como o fazem “os outros”. Esse jogo tem sua própria dimensão —real, uma vez que prescinde de intencionalidade —simbólica, porque constitui um sistema de regras e desenrola-se dentro de um limite de condições; e por fim —imaginária, pois leva em si sua finalidade, pura diversão.
Contudo, é a corrente naturalista do jogo que reforça a diferença entre a experiência estética, devido a seu caráter gratuito não pode ser confundida com a experiência lúdica, que tem como motivações bio-pisológicas descarregar o excesso de energia vital, a necessidade de distração e o desejo de competir com “os outros”. O Coringa como personagem alarga o campo de sua ação e gera “expectativas” em cenas nas quais o espectador espera seu comparecimento para dar graça e sentido. Em plena crise da sociedade ocidental, contra a barbárie e a falta de sentido da forma, praticados pela intolerância e o fanatismo tanto no filme como na vida real, destaca-se o alcance do jogo e sua dimensão moral. Nessa mesma linha, o jogo do Coringa é humanista sem nenhuma pretensão de transcendência, só uma progressiva sensação de liberdade na qual o ser humano sente-se aliviado ante a angústia da morte, da qual Batman é uma mera assombração e porque com ele Coringa se entretém, o convida a participar de seu mundo oposto da vida prática, prisioneira do útil e da necessidade. Perante a vida prática, Batman assume posições simétricas e inversas que podem ser vistas de ponta-cabeça.
Existem semelhanças entre a estética e a “proposta” do Coringa como jogador. Sua função de “esfinge” propõe a charada — Por que tão sério? —, essa atividade caracterizada por ser um fim em si mesmo, circular e retrospectivo, que não se materializa em um objeto ou em uma expressão exterior é a dimensão do riso. Uma visão do riso como a verdadeira subversão do “sério”, como o apelo ao incontrolado, ao nonsense, à gestualidade e à emoção. O convite do Coringa a Batman é ao diálogo objetivo que distingue a ilusão da realidade, a brincadeira da seriedade, a ficção do jogo e a verdade da arte.
O jogo do Coringa oferece imagens ilusórias, o cinema, pelo contrário, propicia um novo gênero de verdade —“uma verdade não de coisas empíricas, mas de formas puras”, frase de Ernest Cassirer extraída da obra Filosofia das formas simbólicas (2004) para reforçar o caráter estético do personagem.
A concorrência ao protagonismo em Batman, o cavaleiro das trevas pode-se explicar a partir da dupla conceitual que indica a oposição entre o traço apolíneo de Batman e o traço dionisíaco do Coringa. O primeiro assinala o sereno impulso contemplativo e formal; o segundo, o doloroso, obscuro e dissoluto impulso orgiástico. O apolíneo e o dionisíaco vêem a significar no filme o reaparecimento do lado “noir” do cinema3. A presença simultânea de instâncias olímpicas no atlético “mascarado” e o misterioso e do inebriante “cara pintada” são um exemplo desta performance expressiva esculpida no estilo noir que o próprio Coringa vai iluminar.
Tanto no dinamismo ínsito na criação artística do personagem Coringa, quanto na exposição do infinito no finito no devir do deus Dionísio na idade do mundo, demonstra como toda a potência criadora, seja divina ou humana, brota da confluência de uma “força produtiva cega”, o mais puro estilo Coringa de ser, e de uma “força reflexiva, limitante e formadora”. Ambas forças ou impulsos representam no filme as oscilações humanas, incapazes do equi-líbrio e da síntese, entretanto, a decadência do herói e a emergente ascensão do antagonismo, convertem este Batman em um modelo concreto daquilo que a modernidade causou na sociedade em termos de efeito receptivo. A dupla conceitual apolíneo/dionisíaco foi também consagração teórica de Friedrich Nietzsche (1844-1900), que enuncia sequencialmente, a morte de Deus, do sujeito e do autor, deixando o protagonista órfão, apátrida —sem referenciais e com a certeza de haver “perdido” seu objeto de desejo para sempre.
Levado pelo pessimismo de Arthur Shopenhauer (1788-1860) a “desfazer pedra a pedra o genial edifício da cultura apolínea”, Nietzsche reduz a tragédia humana à condição desses dois impulsos cósmicos originários: a harmoniosa criação das formas do apolíneo transfigura o mundo de aparência estética por meio do sonho, tornando suportável o conhe-cimento do trágico, da dolorosa e des-medida força do dionisíaco —o êxtase.
Assim, a modernidade consagra os outrora “rejeitados” —ver o semblante do Coringa —pelo viés da arte, protegendo, desta forma, o ser humano dos êxitos desmedidos da ciência e da técnica que deram à luz a tecnologia no mundo con-temporâneo. Por esta razão, Nietzsche chega a afirmar que “a existência e o mundo só são justificados enquanto fenômenos estéticos”.
No esteio deste pensamento, o pro-tagonismo do Coringa define como dionisíaca a aceitação de seu papel em alternar a criação e a morte, permitindo que o processo de recepção estética do apolíneo e do dionisíaco se transforme em uma visão, além dos muros escuros de Gotham City e de suas promiscuas e legendárias insti-tuições sociais. Sem dúvida, o Coringa sublinha o primado anticristão de Dionísio, influenciando fortemente o espectador a pensar no mito do qual surge este enigmá-tico neoprotagonista e no sentido de superar a tentação da identificação imediata com ele para consentir o Batman como um sujeito “diferente” com o qual vale a pena brincar em toda e qualquer situação.

As três fases oníricas do Coringa

Partindo do princípio que o Coringa, efetivamente adjudica-se o protagonismo no filme Batman, o cavaleiro das trevas, apresentam-se três tipos de imagens audiovisuais que correspondem à imagem mental construída pelo espectador a partir de um fenômeno natural —sombra, reflexo, visão —ou pela ação humana intencional. Nesse sentido, a imagem onírica do Coringa é plena e enquadrada, assim como sua origem nas Histórias em Quadrinhos que possibilitou a “transposição” e “adaptação” desse tipo de imagem em um construto cinematográfico4.
Desta forma, a imagem do Coringa tem uma dupla realidade perceptiva, é bidimensional na superfície da tela e tridimensional na profundidade re-presentada. Portanto, no filme de Batman, o Coringa é plano e profundo ao mesmo tempo, sendo esta dialética o aspecto mais original apresentado por todos os intérpretes deste personagem, talvez pelo momento que vive a sociedade, cansada de estereótipos criados pela indústria do cinema para regular a conduta de seus espectadores, conforme um modo americano de ser bonzinho e comportado, daí a transgressão do Coringa cobrar sentido.
O sentido captado como signo, cujos caracteres não são tão perceptíveis; como representação quando figura coisas concretas, sendo um substituto analógico da realidade e das formas convencionais; como símbolo, figurando coisas abstratas, desconhecidas e invisíveis, possíveis só no âmbito do onírico —dos sonhos.
E o filme no aspecto formal de sua produção traz algumas características que apontam para esse sentido: o narrativo, porque suas imagens encadeiam-se segundo uma lógica, abduzida pelo protagonismo, transformada em analógica nesse jogo sucessivo do movimento, produzindo uma forte impressão de realidade. Por fim, a fase em que se opera o trabalho de omitir a narração e a re-presentação a favor da “diegese”, narrativa de fatos relacionados à história re-presentada na tela ou à apresentação em projeção diante dos espectadores.
Contudo, é a montagem o meio formal e expressivo mais técnico do cinema. No âmago deste princípio da produção, induzimos que o êxito do Coringa marca o vinculo essencial que une os dois fenômenos relacionados com a noção de representação, a já mencionada analogia e os efeitos receptivos provocados no espectador. Trata-se de efeitos do real que são produzidos na base da realidade, por um conjunto de indícios historicamente determinados e convencionais —“co-dificados” —o espectador infere um “juízo estético”. Nada mais apropriado para definir este conceito que a obra Crítica da razão pura (1781) de Immanuel Kant (1724-1804) na qual o autor afirma que o juízo é um princípio essencial à natureza humana. Nada pode condicionar nossas experiências estéticas ou os produtos artísticos que consumimos, assim Kant busca distanciar-se do conhecimento que sempre foi sua pedra angular, o resultado, a noção filosofal de “juízo estético” que se fundamenta na subjetividade, ou seja, refere-se ao sujeito, a suas sensações, emoções e sentimentos. O juízo estético é indiferente à existência do objeto, não requer a posse, nem o consumo, a utilidade ou a bondade do objeto contemplado. Muito pelo contrário, para o juízo estético a representação do objeto é um fim em relação ao “jogo livre” de suas faculdades cognitivas, portanto implica prazer, livre de interesses privados.
Baseados na obra de Gilles Deleuze; Imagem —Movimento e Imagem —Tempo, três categorias da imagem vêm a representar para nós as fases oníricas do Coringa, esse “simpático” personagem que literalmente usurpou o protagonismo do filme e que iluminou as cenas de Batman, o cavaleiro das trevas. Estas imagens são modalidades da imagem movimento que correspondem à figuração do Coringa no filme, à forma visível de sua representação significante, enquanto efígie materialmente produzida:
1) a imagem —pulsão que se caracteriza pelo naturalismo com que o Coringa atua no seu meio, mas também remete à violência original, uma hipótese discutida pela psicanálise e que nos faz pensar na causa de todo o atrevimento do Coringa na tentativa de rasgar a boca de suas vítimas.
2) a imagem —ação designa a figuração da força ou do ato, caracteriza o “realismo fantástico” no filme. Deleuze distingue duas modalidades deste tipo de imagem: uma fundada na “grande forma” que vai da situação à ação; a outra, fundada na “pequena forma”, vai da ação à situação e para uma nova ação, isso explica o caráter “caricaturesco” do duelo que o Coringa estabelece com seu arquiinimigo Batman.
3) a imagem —afeição corresponde à figuração da qualidade ou potência do personagem, ela é definida, segundo Deleuze, ligada ao rosto do Coringa, quase sempre em primeiro plano e de acordo com essa acepção “intenso”, parecendo sob o domínio de um pensamento fixo e terrível, mas imutável e patético sendo este o grau de sublimação da pura sensação, profundo estado psíquico irredutível ao estilo retórico no cinema.
O patético da ação psicótica do Coringa é a representação “sublime” de sua au-tonomia moral, ou seja, da independência em relação às leis da natureza, tornando-se o fundamento do prazer específico da arte na tragédia. Assim, a qualidade onírica atribuída a este personagem —protagonista, reside no teorema freudiano de que o sonho é “a via real de acesso ao inconsciente”. O Coringa encarna esse traço essencial do in-consciente, ser o fruir livre de imagens em movimento.
Para Sigmund Freud (1856-1939), o sonho resulta de um trabalho de elaboração no fim do qual os desejos recalcados da vida diurna conseguem-se exprimir, embora se disfarçando para enganar a censura e serem aceitos na consciência, portanto, Batman é o duplo do Coringa a quem corresponde assumir o peso desse estigma. O Coringa “dribla” com esperteza o disfarce e os nuances sisudos da lei social de Gotham City para viver o jogo constante de seu desejo.
Distingue-se o sonho ou conteúdo manifesto do latente, sendo o primeiro, a narrativa do sonhador no momento de acordar; o segundo, corresponde ao sentido —a ação do Coringa, cujos elementos oníricos estão “aquém” do seu rosto maquiado e de seu sarcástico sorriso. Esse trabalho do sonho tão bem delineado por Freud e seu método interpretativo que marca a passagem do protagonismo moralizador no sentido manifesto de suas condutas para o protagonismo ético do Coringa que visa, sobretudo, o fim de trazer o recalcado Batman para seu mundo de jogo, sonhos e fantasias, pois o Coringa representa o onírico no caráter visual destas produções do inconsciente, fruindo com grande liberdade de movimento, como no sonho em que as imagens não têm vínculos temporais, nem espaciais, muito menos lógicos. Havendo sempre no mundo do jogo deste personagem ausência de um princípio causal, os efeitos do Coringa se produzem na base das relações de contiguidade da imaginação.

Considerações finais

O espectador que vivencia a experiência identificatória com o Coringa, simpatiza com a proposta pela situação em que se encontra: obscuridade da sala, isolamento do corpo, “abandono psicológico” e o caráter irreal das imagens, suscitando adesão empática, próxima de um certo estado de comunhão relaxada que lembra a relação de quem sonha com seu sonho. Um dos teóricos que compara sistematicamente o sonho e o filme é Christian Metz que conclui que o onírico está mais próximo do devaneio — do sonhar acordado. Essas ideias Juan Droguett as retoma no seu livro Sonhar de olhos abertos (2004), para explorar a metáfora do sonhar, a partir da qual podemos concluir que o Coringa é essa alegoria do eterno sonhador, deslocando-se em relação a seu objeto —Batman e a falta abolida do espectador fisgado pelo jogo do olhar e do sorriso do Coringa, convertido na enunciação onírica do filme que faz deste o protagonista de seus próprios desejos.

NOTAS
1 A palavra mímesis deriva de mimos —mímica, ator que canta, dança e recita; está ligada ao radical de imago. Duas acepções marcam o contexto em que é usada esta palavra: o narratológico em que o recitante “mima” as personagens adotando sua linguagem, seus gestos e até seus dribles de pensamento. Notoriamente, o Coringa adquire esta conotação como imagem de uma figura feita por imitação —carta do baralho —sendo ao mesmo tempo, representação e expressão; imitativa e narrativa; repetição e criação —condensação e deslocamento. A outra acepção em que mímesis aparece é no contexto da representação visual, concebida como a manifestação sensível de uma realidade oculta à custas de uma confusão sempre ameaçadora entre imitação das aparências e “imitação” do caráter (AUMONT e MARIE, 2006:190). Nesse sentido, a confusão que o Coringa provoca no espectador tem a ver com seu caráter ambivalente, seja na função de “protagonista” ou na dimensão lúdica em que se define a natureza de seu personagem.

2 O gótico é um estilo que se caracteriza por uma estranha mescla, de misticismo religioso e orgulho civil, de medo ao inferno e da vontade de sobreviver à própria condição material. Essa sensação bizarra aflora na poderosa fantasia das quimeras e das gárgulas que enfeitam as pontiagudas catedrais de arcos ogivais como no Ecce Homo —Florença/Itália em que o Cristo coroado de espinhos é, ao mesmo tempo, símbolo das angústias e das esperanças do ser humano desse tempo. O que tem de gótico no filme de Batman? Uma afirmação do sentido da morte em que o dramático e o popular combinam no apogeu do capitalismo e de um humanismo, cuja visão de mundo fundamenta-se na experiência individual e na reflexão crítica. Portanto, estabelece-se neste filme uma nova ordem no protagonismo, na participação e na identificação dos espectadores.

3 Do estilo noir —negro, fazem parte, as ficções policiais da década de 30, romances e filmes que se caracterizam pela violência e a visão desiludida da sociedade liberal na era da depressão. Esse gênero de misteriosos filmes explora aspectos sociológicos —detetives viris, mas sentimentais; pros-titutas sensuais, mas perigosas; corrupção da polícia, dos meios e da política vigente —e narratológicos, neles literalmente se brinca com a arte de confundir as pistas e o protagonista ser, como neste caso, a encarnação da própria charada, uma reedição da esfinge de Delfos, só que não tão séria no moderno templo do cinema.



André Reche Terneiro — Mestrando em Comunicação na linha de pesquisa “contribuição da mídia para interação entre grupos sociais”, com o projeto de dissertação “O Neo-Protagonista —O Novo Super-Homem no Cinema”. Professor de Língua Portuguesa. Monitor de pós-graduação em Cinema. Membro da Escola Crítica de Cinema sob coordenação do Professor Doutor Juan Guillermo D. Droguett.

Juan Droguett — Pós-Doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e em Educação pela Universidade de Salamanca —Espanha. Pesquisador em cinema, com livros publicados, entre eles, Sonhar de olhos abertos —cinema e psicanálise (2004). Membro da Associação Internacional de Semiótica do Espaço —Universidade de Genebra —Suíça. Escritor nas áreas de comunicação, filosofia, psicanálise e educação com publicações no Brasil e no exterior.


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