A cura da alma em Nietzsche

ANDRÉ RECHE TERNEIRO

O que se pretende neste artigo é sondar o conceito de verdade da alma em Nietzsche a partir do filme Quando Nietzsche chorou, utilizando-se da relação de dois personagens centrais que são Joseph Breuer e o próprio Nietzsche. O best-seller Quando Nietzsche Chorou ganhou versão também para o teatro no ano de 2006 no Brasil. O espetáculo exibido no Teatro Imprensa, teve no elenco Cássio Scapin (Friedrich Nietzsche), Nelson Baskerville (Josef Breuer), Lígia Cortez (Mathilde) e Flávio Tolezani (Freud). Além de uma participação especial em vídeo de Ana Paula Arósio (Lou Salomé).
O espetáculo, realização da Cie Brasil, é uma adaptação do livro escrito pelo psiquiatra Irvin D. Yalom, em 1992 (mais de 200 mil exemplares vendidos no Brasil). A peça é uma ficção com personagens reais, que também configura o suposto encontro entre o filósofo alemão Friedrich Nietzsche e o médico vienense Joseph Breuer, professor e grande precursor do pensamento Freudiano.


Quando Nietzsche Chorou no “Sonhar de Olhos Abertos” do Cinema

A trama fílmica tem início quando Lou Salomé, amor incondicional de Nietzsche, pede a Breuer que examine o filósofo que sofria de fortes dores de cabeça. Mas o pedido da bela mulher consistia também em que o médico conseguisse desfazer a idéia suicida de Nietzsche por ela tê-lo deixado. O ano era de 1882, e Breuer não tinha nenhum conhecimento das teorias de Nietzsche. Aliás, pouquíssimas pessoas se atentavam para os escritos do filósofo naquela época. Como Salomé sabia da irredutibilidade de Nietzsche, pediu que o médico não contasse a ele do encontro com a bela moça, caso contrário Nietzsche desistiria do tratamento.
Lou Salomé relaciona as dores de cabeça do mestre que conheceu nas aulas ministradas por ele na Universidade da Basiléia, com a melancolia que Nietzsche carregava, por achar que ele arrematara todo o pessimismo da humanidade.
Breuer então, lê as obras de Nietzsche para entender o que se passa no pensamento de seu paciente, e, a partir daí, nota-se que as reuniões do médico com o filósofo resultarão em uma relação de mão dupla. As seções entre os dois começam, porém Nietzsche passava por momentos difíceis de ordem financeira. Breuer, após ter lido as teorias do filósofo, entende que pode usufruir dos métodos propostos por seu paciente, e acorda com Nietzsche, que este fique um mês internado em sua clínica para tratamento. Em troca, Nietzsche discutiria suas teorias com Breuer. Inicialmente Nietzsche luta contra tal acordo, não entendendo o interesse do médico. Breuer então diz ao filósofo que também necessita de uma cura para seu desespero e para os pensamentos hostis que vinham a sua cabeça. Nietzsche então, aceita as condições e se interna na clínica do médico.
Paralelo aos encontros com Nietzsche, Breuer tem sempre por perto seu mais caro aluno, Sigmund Freud. Em conversas com este, o médico afirma que tem a esperança de livrar Nietzsche das dores que o atormentavam, no corpo e na alma, e que esperava, a partir dos encontros, superar a própria dor.
Apesar de ser um médico muito bem sucedido, reconhecido socialmente, Breuer, no primeiro encontro com Nietzsche, revela que perdeu a noção pela qual viver. O filósofo insiste que não tem como ajudá-lo, mas o médico rebate complementando que a medicina não pode curá-lo.
Nietzsche argumenta em seu livro Vontade de Potência, que o homem deve optar por dois caminhos: ou escolhe a fé religiosa e toda tradição moral que esta carrega consigo, aceitando as crenças sem discussões – quaisquer que sejam – que lhe tenham legado os seus antepassados, procura – e encontra – o fenômeno subjetivo da fé, a paz e tranqüilidade da alma, sem que essa fé prove, no entanto, o que quer que seja em favor da verdade objetiva dessa crença, ou escolhe ao contrário, o caminho solitário e doloroso do buscador, que quer não a felicidade e a paz, mas a verdade, a verdade a todo preço, seja ela terrível ou medonha.
Tal busca pela verdade, pelo que está fora da camisa de força social, é o caminho que enreda a discussão entre o médico de grande prestígio Joseph Breuer, e o filósofo Friedrich Nietzsche, durante toda a obra cinematográfica.
Não há ninguém no campo das ciências sociais e humanas com a magnitude filosófica, como a do “desconstrutor de ídolos” que é Friedrich Nietzsche. Profeta da crise do sujeito desumanizado, Nietzsche formula toda sua teoria filosófica a partir do ponto que deveria ser mais caro ao ser humano, a verdade ou a busca por ela.
A verdade estabelecida pelo poder vigente nas distintas eras da humanidade, no caso a igreja e também, no contexto moderno-contemporâneo, o aperfeiçoamento tecno-científico, que se utiliza do poder maquínico para escravizar o homem a partir da falta de sua subjetividade, é aquilo que o grande homem de Nietzsche, Zaratustra, vai profetizar como um tempo passado, e quem se manter atrelado à esse tempo também será ultrapassado. O homem deve ser superado; o que o macaco é para o homem, o homem é para o super-homem, proclama em tom profético a criação máxima de Nietzsche.
Para demonstrar a teoria do filósofo, o filme Quando Nietzsche chorou ambienta um encontro fictício, porém de riqueza épica que só inquieta a apaixonados por buscar respostas aos questionamentos existencialistas, e verificar o modelo de vida que pauta as ações do ser humano.


O Embate entre Ciência e Filosofia

O primeiro encontro que se dá entre os protagonistas resulta em um certo rigor de ambas as partes. Nietzsche pede a Breuer que tire o avental e o estetoscópio para que conversem. Ao invés de se referir ao médico como doutor, Nietzsche simplesmente o chama de senhor, o que tira Breuer do sério. O que o paciente pretende com isso é colocar Breuer em um patamar igual ao seu, um patamar humano, demasiado humano, sem qualquer imagem ou representação que a sociedade tenha lhe concedido. Breuer salienta que tem a sensação de viver em um mundo que não foi escolhido por ele. Aí se dá a efetiva ação de Nietzsche em literalmente “despir” o médico de qualquer relação com aquela sociedade que lhe impõe um modo de agir, para tentar encontrar sua essência.
Em um outro encontro, andando pela clínica de Breuer, Nietzsche questiona-o entre escolher o conforto e a verdade. Breuer rebate, contestando a teoria, e dizendo se ambos conceitos se excluem mutuamente. Nietzsche responde que se o homem opta pelo prazer do crescimento profissional, econômico, social, pode preparar-se para sofrer. Quem quer dor, angústia, deve se esconder por trás da cortina social. O amigo da verdade não deve pretender calma, paz e felicidade, pois a verdade pode ser muito feia e repulsiva.
Em mais um diálogo, dos tantos que se procedem de forma trivial entre Breuer e Freud, o pupilo diz ao mestre que leu as obras de Nietzsche e que o considera o maior conhecedor da humanidade. Podemos nos distanciar tanto de nossa própria vida que ela se congele no quadro, e seja para nós pura contemplação, sem mais podermos mudar tal pintura, é o que diz Nietzsche, e que agora ambos discutem e refletem.
Em mais um encontro com Breuer, Nietzsche pergunta se o médico conseguiu atingir as metas que estabeleceu para sua vida, e se era efetivamente feliz. Breuer, de forma reflexiva, responde que é um médico rico e bem sucedido, mas feliz, não. Nietzsche faz outra pergunta, agora sobre como Breuer escolheu suas metas. O médico diz que as metas são parte de sua cultura, estão no ar, se respira isso. Nietzsche, para o médico, representa a figura de Morpheu, o deus do sono que pretende fazer de Breuer o autor da história de sua vida.
Depois de uma certa freqüência nos encontros, Breuer conclui que entre os dois, ele se tornou o caso mais urgente. Breuer começa digerir a teoria nietzschiana de maneira mais efetiva, e analisa sua realidade como uma ilusão, e seu próprio ser como um produto, numa configuração social na qual tudo tem de ser consciente para ser bom, um racionalismo segundo Sócrates, nada mais quer saber das profundezas do ser.
O médico explicitava a Nietzsche os seus sonhos, nos quais estava sempre presente Bertha, uma ex-paciente sua, pela qual se apaixonou. O sonho para grandes pensadores como Lacan tem papel fundamental na configuração dos desejos mais recônditos do ser humano. Quando acordamos para a realidade após um sonho, costumamos dizer a nós mesmo que “foi apenas um sonho”, com isso, cegando-nos para o fato de que, em nossa realidade cotidiana de vigília, não somos nada senão a consciência desse sonho. Foi somente no sonho que nos aproximamos da estrutura de fantasia que determina nossa atividade, nosso modo de agir na realidade.
Um dos sonhos de Breuer que merece ser descrito, pois valida a citação de Lacan, retirada da obra de Slavoj Zizek nomeada Um mapa da Ideologia, e referida acima, é um no qual Nietzsche aparece como general de uma guarnição. Quando o protagonista do sonho entra em um dos alojamentos de seus soldados, se depara com um deles tentando suicídio. O rapaz estava em pé com a ponta da espingarda em sua própria boca. Nietzsche pergunta em tom sereno:
– O que está fazendo soldado?
E o soldado responde:
– Tentando me matar general!
E Nietzsche conclui:
– Ótimo! Continue então.
Por que Nietzsche intercederia? Como é dito durante o filme: “morrer ou viver, quem se importa”. A realidade ilusória que se criou transformou o homem em algo muito distante de sua própria verdade, sua individualidade. Naquele ato, Nietzsche vê uma ação de solidão, de vontade livre, permitindo que aquela vontade seja aflorada, ao invés de profetizar o suicídio do rapaz como algo que resultará na ida de sua alma direto ao inferno. Óbvio, que esta passagem se apresenta como uma metáfora para que se fixe conceitualmente o que Nietzsche quer dizer sobre a vontade livre; que se respeite a individualidade, a crença que cada um coloca em suas ações, ao invés de se pautar nos preceitos fundamentados pelos padrões sociais.
Voltando ao embate que se configura, Breuer continua a ter sonhos e não consegue dar conta de suportá-los, paralelo à sua realidade. Implora ajuda a Nietzsche que, por sua vez, pergunta se o médico está pronto para guerra. O filósofo consegue demonstrar que, aparentemente, Bertha é o desejo de Breuer de escapar de sua vida segura, da armadilha do tempo, considerado por Nietzsche como um fardo. A busca pela verdade se valida nos sonhos do médico com relação a Bertha. É nesse contexto que toda moral é criticada, porque o peso da tradição quer esmagar aqueles que não são experimentadores. Nietzsche apresenta uma grande provação que é decidir-se pela solidão ou a um “seja bem vindo” pelos “animais de rebanho”. Adverte que criar os próprios valores, emancipar-se das tradições, dos bons costumes, romper o invólucro social não é para “ovelhas', é para os espíritos livres. É preferir a intuição à crença.
Breuer se vê cada vez mais orientado pelas teorias de Nietzsche. Em uma noite de ópera, comenta com Freud que as seções com o novo paciente são o centro de seu dia. Complementa que Nietzsche tem tudo a lhe oferecer, enquanto ele não. A cura que se procede em Breuer a partir das conversas diárias tem um efeito muito mais efetivo do que o que se procede no doente com relação às dores de cabeça.
Outras questões que inquietam Breuer é como viver da maneira que profetiza Nietzsche; como é não ter uma casa, obrigações, esposa, responsabilidades? Essa forma de vida incontinente, sem regras, sem ser pautada em nenhum tipo de moral, está contida dentro de nós, segundo Breuer, e é concebida por nossos sonhos. Utilizando o texto de Slavoj Zizek sobre o sintoma social de Marx, contido no livro Um Mapa da Ideologia, o autor afirma que é somente no sonho que chegamos perto do verdadeiro despertar, isto é, do real de nosso desejo.
O desejo de Breuer era rever sua paciente, Bertha, rompendo assim com sua família, emprego e posição social, que lhe tanto concedia um status favorável. Ele sai de casa, viaja de trem até a clínica onde Bertha está internada, porém, chegando ao destino, ele se depara com Bertha beijando um jovem médico e lhe fazendo as mesmas juras de amor eterno outrora feitas a Breuer. Vem, rapidamente em sua mente, o desespero de ter abandonado a família e tudo mais para no fim, ver seu desejo refreado.
Breuer volta, mas não para casa. Troca sua roupa preta por um terno um tanto quanto despojado, faz a barba que lhe concedia um ar imperioso e sério, e consegue um emprego como garçom em um restaurante da cidade. De repente, atendendo aos clientes, Freud o chama. O rapaz está sentado com Lou Salomé. Freud reconhece Breuer, que, por sua vez, corre desesperado ao ver o jovem. Freud inicia uma perseguição atrás do médico, quando Breuer se joga em um lago em tentativa de suicídio. Quando os dois emergem na água, Breuer acorda da hipnose que Sigmund Freud o mantinha, a pedido dele mesmo. A hipnose, responsável por relaxar e diminuir a receptividade a outras influências, foi utilizada pelo médico com auxílio de Freud para que ele conseguisse buscar sua verdade. Ao ver Bertha beijando outro médico, se ver sem sua profissão, Breuer vê que aquilo não representa o que ele realmente deseja. No retorno à consciência, ele dá o verdadeiro valor, que na sua opinião sua esposa e filhos mereciam, e começa a enxergar o seu mundo de outra forma.
Em uma última conversa com Nietzsche, Breuer agradece a ajuda do filósofo pela busca que realmente lhe valia. Nietzsche, solitário, embarca em um trem para sua “amada” Turim para encontrar o maior de seus profetas: Zaratustra. Na cidade italiana a qual Nietzsche externava sua admiração, ele concebeu sua maior criação, um personagem que tem como representatividade o leão e sua força, em oposição ao dócil e servil ícone tão criticado por esta mente de vontade livre, que era a ovelha e a idéia de rebanho.

A Projeção do encontro ficcionário entre Breuer e Nietzsche

O filme é trazido à discussão para evidenciar toda a crítica que Nietzsche constrói sobre os valores estabelecidos, que afastam o homem de sua subjetividade, e o transformam em uma massa de fácil manipulação.
Em outro capítulo do livro Um mapa da ideologia de Slavoj Zizek, intitulado “Adorno, pós-estruturalismo e a crítica da identidade”, o escritor Peter Dews coloca Nietzsche como um ferrenho opositor da rigidez opressora da consciência. Para ele, todo o sentido, a coerência e o movimento teológico são projetados num mundo que, em si, é vazio, sem objetivo, indiferente e caótico.
Desde o início de sua obra, Nietzsche preocupou-se em combater a idéia do conhecimento como mera reprodução de uma realidade objetiva, acreditando que as formas de conhecimento estão, e devem estar, necessariamente a serviço dos interesses humanos, sendo moldados por eles. Porém, Nietzsche, ao longo de toda sua obra, frisaria a aversão da mente humana ao caos, seu medo da intuição direta e suas tentativas, daí resultantes, de simplificar o mundo, esquematizá-lo, enquadrá-lo, reduzindo a diversidade à identidade. Em outras palavras, o ser humano se sente seguro em esquemas que lhe conferem o máximo de controle, transformando assim, qualquer coisa fora do padrão estabelecido, no caso como já foi dito no início do artigo, pela igreja e hoje, pelos meios tecno-científicos, como algo estranho, indevido, digno de eliminação.
Há, contudo, uma tendência pragmática forte em Nietzsche, que sugere que esse processo de ordenação e simplificação não ocorre apenas em virtude de uma necessidade “existencial” de segurança, mas também da própria sobrevivência.
Para que determinada espécie se mantenha e aumente seu poder, sua concepção da realidade deve abranger o suficiente do calculável e do constante para que ela possa fundamentar nisso um esquema de comportamento. A utilidade da preservação, e não alguma necessidade abstrato teórica de não ser enganado, destaca-se com a motivação por trás do desenvolvimento dos órgãos do conhecimento. Simplificando, “a verdade” é o tipo de erro sem o qual uma certa espécie não pode sobreviver.
Vivemos o sonho ideológico, com a determinação da ideologia como uma construção de estilo onírico que nos impede de ver a verdadeira situação, a realidade como tal. Em vão tentamos sair do sonho ideológico, abrindo os olhos e procurando ver a realidade tal como realmente é, jogando fora os óculos ideológicos. A única maneira de romper com o poder do sonho ideológico concedido a nós, é confrontar o real de nosso desejo que se anuncia nesse sonho.
A cura da alma que Nietzsche propões a seus leitores, àqueles que buscam respostas, é que ela não está em Nietzsche. A necessidade de saber a verdade deve ainda nos arrastar para muitas aventuras, e, para Nietzsche, devemos prosseguir nessa busca como andarilhos, solitários em nossa busca, orientados por nossos sonhos que revelam a mais pura essência humana, e se um dia a nossa verdade nos for revelada ao fim de nossa aventura, poderemos sair debaixo da sombra da árvore, e sentir que os raios de sol também nos acariciam, assim como fez Breuer na trama fílmica Quando Nietzsche Chorou.


Por que Nietzsche Chorou?

Para Nietzsche, corpo e alma são de uma mesma realidade, se fundem em um fluxo de energias realizadoras de movimento. Nossa alma, segundo ele, está doente. Está doente porque só encontraremos nossa verdade em um outro plano, o metafísico. Segundo ele, tudo aquilo que até agora os homens têm considerado seriamente não é nem mesmo a realidade, não é mais do que imaginação, constitui mais precisamente uma ladainha de mentiras produzidas pelos maus instintos de naturezas doentias, nefastas no mais amplo sentido da palavra; assim, todos os conceitos de “Deus”, virtude, culpa, além, verdade, eternidade, têm envenenado corpo e alma humana nesse “mundo de cultos” configurados pela trajetória do ser. Cultuamos deuses, ídolos nos mais diferentes âmbitos, cultuamos a ciência, esquecemos a essência; Nietzsche chora por isso...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

__________, Friedrich. Para Além do Bem e do Mal. São Paulo: Martin Claret, 2007.

__________, Friedrich. Vontade de Potência. São Paulo: Escala, 1998.

ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.

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