A EPOPÉIA DA KOMBI AMARELA EM LITTLE MISS SUNSHINE

André Reche Terneiro
A trajetória de um grande herói é composta basicamente pelo rompimento e partida de sua vida habitual, o encontro com grandes obstáculos durante a aventura empreendida, o desafio final, motivo principal de sua partida, e, por fim, o retorno do herói à sua terra.
Esta fórmula para narrar os feitos de grandes heróis desde Homero, há mais de cinco mil anos atrás, é utilizada de maneira intensa dentro da literatura, e mais recentemente, foi absorvida por outro campo de expressão artística, o cinema.
Os heróis são formados pelos mais variados tipos de sentimentos e motivações para empreender uma aventura épica. Aquiles, o maior guerreiro presente na guerra de Tróia, lutava para cravar seu nome na história. Heitor, pelo lado troiano, não lutava por glória, mas por manter os muros de sua cidade e seus habitantes a salvo.
Em grande maioria, os heróis em suas trajetórias épicas, tanto na literatura quanto no cinema, tem por objetivo primário a manutenção da paz dentro das sociedades nas quais estão inseridos, ou simplesmente da humanidade, em grandes gestos altruístas. Hoje, com a queda dos valores morais e do mundo simbólico, se configura um novo tipo de herói, pautado em razões totalmente distintas à manutenção do equilíbrio e paz mundial, é um novo tipo de protagonismo motivado a deturpar o estilo de vida «perfeito», que regram o meio em que vivem.
E esta nova ótica protagonista é uma cisão a tudo construído até o momento, partindo da nomeação de tais heróis. Estes agora, são neo-protagonistas, que não se preocupam mais com o bem da humanidade, mas se opõem à ele. Não podem ser chamados de vilões pois seus atos transgressores não são da ordem do maléfico.
A partir da teoria do livro Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, este novo tipo de protagonismo pode ser relacionado ao «super-homem», principal discussão do livro do filósofo alemão. E não se trata do famoso super herói das histórias em quadrinhos, dos desenhos animados e do próprio cinema. Este super-homem é o ponto extremo da «linha» evolutiva do macaco ao homem. É aquele que se vê criador de valores e assim abandona o «tu deves» para dizer «eu quero» e se afirmar enquanto criador. O super-homem foge dos padrões do homem fraco que se desespera com a vida e busca sempre um porto fixo (a vida espiritual), onde tem a certeza de salvação, se livrando do desespero. O super-homem, evidenciado pelo neo-protagonismo no cinema, é um «leão» feroz que ruge, «eu quero», despertando o medo nos homens fracos. Medo da vontade livre que tudo quer e que sabe que deve destruir o velho para que o novo seja criado. As ações realizadas pelo neo-protagonista são de ordem questionadora das leis simbólicas vigentes, o que leva o espectador a questionar sua própria realidade, e este é o verdadeiro gesto altruísta do neo-protagonista.
E o cinema evidencia novamente um personagem que possui os traços do neo-protagonismo. Quem personifica tal identidade é Olive, uma garota de sete anos que trava batalha emblemática contra o ideal de contemplação do artificial, configurado na sociedade norte-americana.
Um pai fracassado que tenta vender programas para pessoas se tornarem vencedoras, uma mãe que tenta suportar todos os problemas, mas não dá conta do jantar, um irmão que não fala com ninguém há nove meses baseado em ácidas leituras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, além de um avô viciado em heroína, frustrado por ter transado durante toda sua vida com apenas uma mulher, e por fim, um tio intelectual gay que tenta suicídio após ver seu aluno amante sair com um professor de maior notoriedade.
Este é o fabuloso panorama da família Hoover que conta ainda com mais um componente: Olive, a pequena garota dos óculos grandes e tortos e dona de um sorriso amarelo.
O filme de 2006 Little Miss Sunshine, toma efetiva direção quando Olive é selecionada para participar do concurso de beleza e talentos Little Miss Sunshine, realizado na Califórnia. Como a família se encontra na espera da venda do programa «Nove passos para se tornar um vencedor» do pai, Richard, não há dinheiro para passagens de avião, e, para sair de Albuquerque e chegar à Califórnia, toda a família é enlatada em uma Kombi amarela em busca do sonho de Olive.
O veículo parece mais uma bomba pronta para explodir, com discussões sobre ser vencedor, homossexualismo, suicídio, a quantidade ideal de mulheres com quem transar durante uma vida e outros temas. E a «bomba amarela» quebra diversas vezes pelo caminho, fazendo de cada parada uma corrida geral para fazer o veículo funcionar novamente. O grande problema era empurrar e depois correr atrás da Kombi para entrar nela.
Durante a viagem, acontecimentos interessantes vão rodeando Olive, que, com uma meiguice arrebatadora parece estar em outro plano, não dando atenção ao que se configura.
Richard recebe um telefonema avisando que seu programa para vencedores não foi comprado e ele está falido. O tio Frank encontra o antigo namorado em um posto, passando por grande constrangimento, pois ainda levava as ataduras que protegiam seus pulsos cortados.
Mas o grande acontecimento durante a viagem é protagonizado pelo avô e coreógrafo de Olive. Quando a família está próxima à Califórnia, se instalam em um hotel para na manhã seguinte acompanharem o concurso. Vovô sofre uma overdose e morre durante a noite. A assistente social do hospital onde o corpo estava comunicou que eles não poderiam seguir viagem até que o morto fosse sepultado e a burocracia finalizada, resultando em um atraso fatal para o sonho de Olive.
Richard olha nos olhos de Olive e diz que sua filha não será uma perdedora. Os Hoover roubam o corpo do hospital e o colocam no porta-malas da Kombi para prosseguir viagem.
O sonho do irmão de Olive, Dwayne, era ser piloto. Durante o trajeto, Olive faz algumas brincadeiras sobre cores com o irmão, e o tio Frank, próximo, detecta que Dwayne é daltônico. Frank lhe dá a triste notícia que daltônicos não podem se tornar pilotos. Dwayne tem um ataque e Richard pára a Kombi. Cego de ódio, o garoto desce dizendo que odeia a família e que decidira ficar ali, naquele ponto sozinho. Olive vai até ele, encosta em seu ombro, não diz nada. Dwayne se levanta, pega a irmã no colo, entra novamente na Kombi, pede desculpas a todos e a viagem prossegue.
Finalmente a família chega ao concurso e é claro, atrasados. Depois de uma pequena discussão para regularizar a situação de Olive, todos relaxam.
Dwayne e Frank andam pela praia e conversam sobre fracasso, Proust e esperança, enquanto Sheryl, a mãe, prepara Olive para sua apresentação.
Richard e Dwayne, depois de assistirem algumas apresentações de outras candidatas ficam aterrorizados com a artificialidade do concurso, como as meninas eram preparadas para vencer tal competição, e pedem a Sheryl que proíba a apresentação de Olive, temendo um massacre. A decisão foi tomada por Olive, que decide se apresentar.
Assim, entre princesas bronzeadas artificialmente, com cabelos preparados como de uma miss Universo, Olive se apresentou e foi um desastre. Com uma performance erótica composta por rebolados e streap tease, a platéia aterrorizada deixava o recinto. Uma briga se instaurou para que Olive saísse do palco, mas seu pai não permitira. Olive continua a dançar, recebendo o apoio do tio, do irmão, da mãe e do pai, que sobem ao palco e concluem a dança com a garota.
Diferentemente dos contos de fadas, Olive não vence o concurso e, após o fim da música, todos são expulsos e voltam para Albuquerque. Todos menos vovô, que é enterrado pouco antes da viagem de volta.
No filme Little Miss Sunshine é clara a presença do neo-protagonismo, que é personificado por Olive. Ela é o ponto neutro de uma família absolutamente desajustada socialmente, dando a impressão em certos momentos da produção fílmica de estar no meio de um furacão.
O contexto familiar primariamente caótico de Olive contrasta com ícones do cinema que se baseavam em estruturas familiares sólidas para alcançar o sucesso, evidenciando o primeiro traço neo-protagonista.
A conotação de neo-protagonista também cabe a Olive por motivos físicos. Construiu-se no imaginário cultural das sociedades hodiernas, o modelo ideal de beleza, tão bem caracterizado no filme Little Miss Sunshine. As meninas que concorrem com Olive no concurso são preparadas de forma extremamente artificial, dando a conotação de um evento extremamente competitivo e frustrante para as possíveis derrotadas, ao invés de deixar em evidência o real encantamento proporcionado por uma criança, que é o da inocência e ingenuidade. Além disso, Olive possui traços físicos nada condizentes com os exigidos no concurso, pois é gorda, de dentes amarelos e óculos tortos.
O comportamento humano em sociedade é um tema que permeia importantes obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que não tem seu nome citado dentro do filme de forma alegórica. Em suas teorias, o autor faz claramente uma divisão entre os que se adaptam ao contexto social ao qual fazem parte, e os que rompem e se rebelam com o que lhes é imposto.
Em seu livro Humano, Demasiado Humano, Nietzsche divide os espíritos humanos entre espíritos livres e espíritos cativos. É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência social, seu meio, sua posição. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra. Geralmente, o testemunho da maior qualidade e agudeza intelectual do espírito livre está em seu rosto, de modo tão claro que os espíritos cativos compreendem muito bem. Olive é um espírito livre, e carrega em seu rosto o sorriso amarelo, que ferrenhamente se opõe ao estereótipo da beleza dos dentes brancos, que é tão presente nas sociedades atuais.
Outro autor citado no filme, e que em suas teorias trabalha sobre o tema comportamental humano, é Proust. Em sua obra Em Busca do Tempo Perdido, o escritor francês analisa a questão do estereótipo, dizendo abertamente que o ser humano se pauta nas escolhas e no condicionamento do outro, não permitindo a descoberta do sentido de sua própria vida. Proust diz que nunca se recupera o tempo perdido, e que, ou se aproveita o presente efetivamente ou o homem está perdido. É clara a alusão a todas as garotas do concurso, que não procuram o real sentido de suas vidas, se pautando em padrões pré estabelecidos, sem saber a origem destes padrões e se são os que realmente devem ser seguidos.
A neo-protagonista então, vai de encontro com tudo o que a sociedade e especificamente o concurso impõem e de forma transgressora, choca com sua performance nada corriqueira dentro do Little Miss Sunshine.
Dá-se neste ponto a efetiva valia do filme, na crítica à artificialidade social contemporânea, no culto ao corpo, sendo um tapa de luvas no rosto daqueles que enxergam apenas o que é superficial, raso, sem importância, não capturando o cativante e verdadeiro sorriso amarelo de Olive.
Ainda em seu livro Humano, Demasiado Humano, Nietzsche diz que há mulheres que, por mais que pesquisemos, não tem interior, são puras máscaras, seres quase espectrais, inevitavelmente insatisfatórias. Em Little Miss Sunshine, o concurso se configura como um ritual de iniciação do culto às máscaras, dentro do contexto social e cultural norte-americano. Um ninho de mulheres espectrais.
Olive realiza uma trajetória épica digna de uma heroína, pois atravessa vasta distância dentro de uma Kombi amarela, fugindo dos padrões do «american way of life», além de estar no centro dos mais complexos questionamentos morais levantados por sua excêntrica família, para, no ponto culminante de sua jornada, lutar contra todo um sistema comportamental imposto durante décadas. E qual a arma desta neo-protagonista para enfrentar tamanho desafio?
Um sorriso, um sorriso de espírito livre, um sorriso amarelo de sol, porque é o que há de legítimo e sincero nesta interessante produção fílmica vencedora de um Oscar em 2006.
(*) André Reche Terneiro, Professor Licenciado em Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela Universidade Paulista - UNIP; Mestrando em Comunicação e Mídia com ênfase em cinema na linha de pesquisa «contribuições da mídia para interação entre grupos sociais», sob orientação do Professor Doutor Juan Droguett; Monitor de pós-graduação em Cinema pela Universidade Paulista – UNIP.
A trajetória de um grande herói é composta basicamente pelo rompimento e partida de sua vida habitual, o encontro com grandes obstáculos durante a aventura empreendida, o desafio final, motivo principal de sua partida, e, por fim, o retorno do herói à sua terra.
Esta fórmula para narrar os feitos de grandes heróis desde Homero, há mais de cinco mil anos atrás, é utilizada de maneira intensa dentro da literatura, e mais recentemente, foi absorvida por outro campo de expressão artística, o cinema.
Os heróis são formados pelos mais variados tipos de sentimentos e motivações para empreender uma aventura épica. Aquiles, o maior guerreiro presente na guerra de Tróia, lutava para cravar seu nome na história. Heitor, pelo lado troiano, não lutava por glória, mas por manter os muros de sua cidade e seus habitantes a salvo.
Em grande maioria, os heróis em suas trajetórias épicas, tanto na literatura quanto no cinema, tem por objetivo primário a manutenção da paz dentro das sociedades nas quais estão inseridos, ou simplesmente da humanidade, em grandes gestos altruístas. Hoje, com a queda dos valores morais e do mundo simbólico, se configura um novo tipo de herói, pautado em razões totalmente distintas à manutenção do equilíbrio e paz mundial, é um novo tipo de protagonismo motivado a deturpar o estilo de vida «perfeito», que regram o meio em que vivem.
E esta nova ótica protagonista é uma cisão a tudo construído até o momento, partindo da nomeação de tais heróis. Estes agora, são neo-protagonistas, que não se preocupam mais com o bem da humanidade, mas se opõem à ele. Não podem ser chamados de vilões pois seus atos transgressores não são da ordem do maléfico.
A partir da teoria do livro Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, este novo tipo de protagonismo pode ser relacionado ao «super-homem», principal discussão do livro do filósofo alemão. E não se trata do famoso super herói das histórias em quadrinhos, dos desenhos animados e do próprio cinema. Este super-homem é o ponto extremo da «linha» evolutiva do macaco ao homem. É aquele que se vê criador de valores e assim abandona o «tu deves» para dizer «eu quero» e se afirmar enquanto criador. O super-homem foge dos padrões do homem fraco que se desespera com a vida e busca sempre um porto fixo (a vida espiritual), onde tem a certeza de salvação, se livrando do desespero. O super-homem, evidenciado pelo neo-protagonismo no cinema, é um «leão» feroz que ruge, «eu quero», despertando o medo nos homens fracos. Medo da vontade livre que tudo quer e que sabe que deve destruir o velho para que o novo seja criado. As ações realizadas pelo neo-protagonista são de ordem questionadora das leis simbólicas vigentes, o que leva o espectador a questionar sua própria realidade, e este é o verdadeiro gesto altruísta do neo-protagonista.
E o cinema evidencia novamente um personagem que possui os traços do neo-protagonismo. Quem personifica tal identidade é Olive, uma garota de sete anos que trava batalha emblemática contra o ideal de contemplação do artificial, configurado na sociedade norte-americana.
Um pai fracassado que tenta vender programas para pessoas se tornarem vencedoras, uma mãe que tenta suportar todos os problemas, mas não dá conta do jantar, um irmão que não fala com ninguém há nove meses baseado em ácidas leituras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, além de um avô viciado em heroína, frustrado por ter transado durante toda sua vida com apenas uma mulher, e por fim, um tio intelectual gay que tenta suicídio após ver seu aluno amante sair com um professor de maior notoriedade.
Este é o fabuloso panorama da família Hoover que conta ainda com mais um componente: Olive, a pequena garota dos óculos grandes e tortos e dona de um sorriso amarelo.
O filme de 2006 Little Miss Sunshine, toma efetiva direção quando Olive é selecionada para participar do concurso de beleza e talentos Little Miss Sunshine, realizado na Califórnia. Como a família se encontra na espera da venda do programa «Nove passos para se tornar um vencedor» do pai, Richard, não há dinheiro para passagens de avião, e, para sair de Albuquerque e chegar à Califórnia, toda a família é enlatada em uma Kombi amarela em busca do sonho de Olive.
O veículo parece mais uma bomba pronta para explodir, com discussões sobre ser vencedor, homossexualismo, suicídio, a quantidade ideal de mulheres com quem transar durante uma vida e outros temas. E a «bomba amarela» quebra diversas vezes pelo caminho, fazendo de cada parada uma corrida geral para fazer o veículo funcionar novamente. O grande problema era empurrar e depois correr atrás da Kombi para entrar nela.
Durante a viagem, acontecimentos interessantes vão rodeando Olive, que, com uma meiguice arrebatadora parece estar em outro plano, não dando atenção ao que se configura.
Richard recebe um telefonema avisando que seu programa para vencedores não foi comprado e ele está falido. O tio Frank encontra o antigo namorado em um posto, passando por grande constrangimento, pois ainda levava as ataduras que protegiam seus pulsos cortados.
Mas o grande acontecimento durante a viagem é protagonizado pelo avô e coreógrafo de Olive. Quando a família está próxima à Califórnia, se instalam em um hotel para na manhã seguinte acompanharem o concurso. Vovô sofre uma overdose e morre durante a noite. A assistente social do hospital onde o corpo estava comunicou que eles não poderiam seguir viagem até que o morto fosse sepultado e a burocracia finalizada, resultando em um atraso fatal para o sonho de Olive.
Richard olha nos olhos de Olive e diz que sua filha não será uma perdedora. Os Hoover roubam o corpo do hospital e o colocam no porta-malas da Kombi para prosseguir viagem.
O sonho do irmão de Olive, Dwayne, era ser piloto. Durante o trajeto, Olive faz algumas brincadeiras sobre cores com o irmão, e o tio Frank, próximo, detecta que Dwayne é daltônico. Frank lhe dá a triste notícia que daltônicos não podem se tornar pilotos. Dwayne tem um ataque e Richard pára a Kombi. Cego de ódio, o garoto desce dizendo que odeia a família e que decidira ficar ali, naquele ponto sozinho. Olive vai até ele, encosta em seu ombro, não diz nada. Dwayne se levanta, pega a irmã no colo, entra novamente na Kombi, pede desculpas a todos e a viagem prossegue.
Finalmente a família chega ao concurso e é claro, atrasados. Depois de uma pequena discussão para regularizar a situação de Olive, todos relaxam.
Dwayne e Frank andam pela praia e conversam sobre fracasso, Proust e esperança, enquanto Sheryl, a mãe, prepara Olive para sua apresentação.
Richard e Dwayne, depois de assistirem algumas apresentações de outras candidatas ficam aterrorizados com a artificialidade do concurso, como as meninas eram preparadas para vencer tal competição, e pedem a Sheryl que proíba a apresentação de Olive, temendo um massacre. A decisão foi tomada por Olive, que decide se apresentar.
Assim, entre princesas bronzeadas artificialmente, com cabelos preparados como de uma miss Universo, Olive se apresentou e foi um desastre. Com uma performance erótica composta por rebolados e streap tease, a platéia aterrorizada deixava o recinto. Uma briga se instaurou para que Olive saísse do palco, mas seu pai não permitira. Olive continua a dançar, recebendo o apoio do tio, do irmão, da mãe e do pai, que sobem ao palco e concluem a dança com a garota.
Diferentemente dos contos de fadas, Olive não vence o concurso e, após o fim da música, todos são expulsos e voltam para Albuquerque. Todos menos vovô, que é enterrado pouco antes da viagem de volta.
No filme Little Miss Sunshine é clara a presença do neo-protagonismo, que é personificado por Olive. Ela é o ponto neutro de uma família absolutamente desajustada socialmente, dando a impressão em certos momentos da produção fílmica de estar no meio de um furacão.
O contexto familiar primariamente caótico de Olive contrasta com ícones do cinema que se baseavam em estruturas familiares sólidas para alcançar o sucesso, evidenciando o primeiro traço neo-protagonista.
A conotação de neo-protagonista também cabe a Olive por motivos físicos. Construiu-se no imaginário cultural das sociedades hodiernas, o modelo ideal de beleza, tão bem caracterizado no filme Little Miss Sunshine. As meninas que concorrem com Olive no concurso são preparadas de forma extremamente artificial, dando a conotação de um evento extremamente competitivo e frustrante para as possíveis derrotadas, ao invés de deixar em evidência o real encantamento proporcionado por uma criança, que é o da inocência e ingenuidade. Além disso, Olive possui traços físicos nada condizentes com os exigidos no concurso, pois é gorda, de dentes amarelos e óculos tortos.
O comportamento humano em sociedade é um tema que permeia importantes obras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que não tem seu nome citado dentro do filme de forma alegórica. Em suas teorias, o autor faz claramente uma divisão entre os que se adaptam ao contexto social ao qual fazem parte, e os que rompem e se rebelam com o que lhes é imposto.
Em seu livro Humano, Demasiado Humano, Nietzsche divide os espíritos humanos entre espíritos livres e espíritos cativos. É chamado de espírito livre aquele que pensa de modo diverso do que se esperaria com base em sua procedência social, seu meio, sua posição. Ele é a exceção, os espíritos cativos são a regra. Geralmente, o testemunho da maior qualidade e agudeza intelectual do espírito livre está em seu rosto, de modo tão claro que os espíritos cativos compreendem muito bem. Olive é um espírito livre, e carrega em seu rosto o sorriso amarelo, que ferrenhamente se opõe ao estereótipo da beleza dos dentes brancos, que é tão presente nas sociedades atuais.
Outro autor citado no filme, e que em suas teorias trabalha sobre o tema comportamental humano, é Proust. Em sua obra Em Busca do Tempo Perdido, o escritor francês analisa a questão do estereótipo, dizendo abertamente que o ser humano se pauta nas escolhas e no condicionamento do outro, não permitindo a descoberta do sentido de sua própria vida. Proust diz que nunca se recupera o tempo perdido, e que, ou se aproveita o presente efetivamente ou o homem está perdido. É clara a alusão a todas as garotas do concurso, que não procuram o real sentido de suas vidas, se pautando em padrões pré estabelecidos, sem saber a origem destes padrões e se são os que realmente devem ser seguidos.
A neo-protagonista então, vai de encontro com tudo o que a sociedade e especificamente o concurso impõem e de forma transgressora, choca com sua performance nada corriqueira dentro do Little Miss Sunshine.
Dá-se neste ponto a efetiva valia do filme, na crítica à artificialidade social contemporânea, no culto ao corpo, sendo um tapa de luvas no rosto daqueles que enxergam apenas o que é superficial, raso, sem importância, não capturando o cativante e verdadeiro sorriso amarelo de Olive.
Ainda em seu livro Humano, Demasiado Humano, Nietzsche diz que há mulheres que, por mais que pesquisemos, não tem interior, são puras máscaras, seres quase espectrais, inevitavelmente insatisfatórias. Em Little Miss Sunshine, o concurso se configura como um ritual de iniciação do culto às máscaras, dentro do contexto social e cultural norte-americano. Um ninho de mulheres espectrais.
Olive realiza uma trajetória épica digna de uma heroína, pois atravessa vasta distância dentro de uma Kombi amarela, fugindo dos padrões do «american way of life», além de estar no centro dos mais complexos questionamentos morais levantados por sua excêntrica família, para, no ponto culminante de sua jornada, lutar contra todo um sistema comportamental imposto durante décadas. E qual a arma desta neo-protagonista para enfrentar tamanho desafio?
Um sorriso, um sorriso de espírito livre, um sorriso amarelo de sol, porque é o que há de legítimo e sincero nesta interessante produção fílmica vencedora de um Oscar em 2006.
(*) André Reche Terneiro, Professor Licenciado em Língua Portuguesa e Língua Inglesa pela Universidade Paulista - UNIP; Mestrando em Comunicação e Mídia com ênfase em cinema na linha de pesquisa «contribuições da mídia para interação entre grupos sociais», sob orientação do Professor Doutor Juan Droguett; Monitor de pós-graduação em Cinema pela Universidade Paulista – UNIP.
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