O continente branco: viagem ao fim do mundo
JOSÉ HENRIQUE FERNANDEZ

Os primeiros aventureiros que se lançaram nas “estradas” do mundo sempre buscaram alargar fronteiras, fossem elas pessoais, de seu grupo local ou de sua nação. Em busca de interesses econômicos, bélicos, científicos, religiosos ou mesmo movidos apenas por curiosidade nata, os primeiros viajantes, com certeza, tinham algo em comum, o espírito aventureiro. É inegável o prazer que se tem pela aventura, pela busca de novas emoções, novos conhecimentos — e autoconhecimento —, novos relacionamentos, desenvolvimento de novas habilidades. E viajar propicia tudo isso.
Minha viagem também foi para ampliar fronteiras, as fronteiras do conhecimento. Sou físico e doutor em geofísica espacial e a viagem que vou narrar aqui foi uma viagem à Terra do Gelo Eterno, a Antártica...
Uma vez disse John Lennon: “estive em muitos lugares, mas só me encontrei em mim mesmo”. Bem, então eu acho que sempre estive ao sul do paralelo 60, pois, definitivamente, eu me encontrei comigo mesmo nas gélidas paisagens antárticas.
A primeira vez que estive lá foi no verão austral de 1995. Era então um mestrando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) indo coletar dados sobre a alta atmosfera terrestre na região da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). O Brasil, assim como todos os países membros do Tratado da Antártica com direito a voto, mantém uma estação científica na região.
Mas antes de chegarmos ao antitopo do mundo, deixem-me dizer primeiro como se faz para se chegar lá. Os candidatos a participante de uma expedição antártica devem primeiro passar por um treinamento preparatório no estado do Rio de Janeiro, o chamado TPA — Treinamento Pré-Antártico. A etapa preparatória para o verão antártico é realizada na paradisíaca Ilha da Marambaia. A Ilha é uma imensa base militar para as três forças, exército, marinha e aeronáutica. Tanto que lá só vivem os próprios militares e uma pequena comunidade aborígine de pescadores.
Eu cheguei à cidade do Rio de Janeiro numa fria manhã de agosto. Na Praça Barão de Ladário, em frente ao 1º Distrito Naval, encontrei-me com os demais pesquisadores que também iriam fazer o treinamento na Marambaia. Dois ônibus nos levaram até Mangaratiba, na baía de Sepetiba. Os coordenadores do treinamento, oficiais da Marinha, viajavam conosco.
Numa praia da pacata e bonita vila de Itacuruçá pegamos uma embarcação militar que cruzou a baía de Sepetiba e nos levou até a Ilha da Marambaia. Vimos alguns golfinhos durante a travessia e o frescor da brisa oceânica atenuava um pouco o ardor do sol que já brilhava alto naquele momento. Estavam conosco também, além dos pesquisadores e militares, um grupo de alpinistas do Clube Alpino Paulista (CAP), contratados pela Marinha para nos instruírem sobre alguns procedimentos básicos de escalada e sobrevivência no gelo — essa última parte, apenas instruções teóricas, claro! Afinal, estávamos no Rio de Janeiro. Lá na Antártica é sempre obrigatória a presença de um alpinista, tanto na nossa confortável estação quanto, e principalmente, nos acampamentos que alguns grupos de pesquisa também fazem pela região.
A chegada à Marambaia já foi sui generis. Uma visão paradisíaca se emoldurava aos nossos olhos à medida que a embarcação se aproximava do atracadouro. Vimos um enorme paredão de rochas se descortinando a nossa frente, no centro da ilha, e alguns alpinistas engraçadinhos brincavam com nossa ingenuidade, dizendo que lá seria o palco de uma de nossas futuras aventuras durante o treinamento. Eu até ensaiei em acreditar, mas logo percebi que aquilo seria um desafio grande demais para meros iniciantes na arte do alpinismo. De fato era uma brincadeira, o enorme paredão rochoso, quase vertical, devia ter mais de 80 metros em altura. Durante a etapa de Marambaia fizemos apenas um treinamento básico em escaladas, adquirindo noções sobre nós, instrumentação e nos aventurando em um rapel de uns 6 a 8 metros. Pode parecer baixo, mas, acreditem, foi muita adrenalina também, principalmente no início do rapel, naquele momento em que você fica em pé e de costas, bem na beira do precipício, e tem que começar a inclinar o corpo para trás, em direção ao vazio até ficar perpendicular ao paredão... Ufa! Arrepio-me só em recordar a sensação. Quem pratica esportes radicais ou quem já saltou em um bungee jump sabe bem sobre o que estou falando. É contra o instinto natural de sobrevivência...
Mas voltemos a nossa chegada à ilha. A embarcação atracou e saímos para o cais. Já havia um comitê de boas-vindas nos aguardando. Fomos conduzidos até nossos alojamentos na base da Marinha. A vila militar era bem aconchegante, tinha até uma igrejinha voltada para a praia, repleta de coqueiros e areia bem branca. As meninas ficaram no claustro e nós, homens, ficamos nos alojamentos militares, com quartos enormes cheios de fileiras de beliches. As bases da Marinha que conheci sempre foram muito bonitas. Geralmente localizadas em praias ou costas desertas ou proibidas, pela própria natureza militar da localidade, eram sempre muito bem cuidadas e possuíam um mastro de navio que fazia às vezes de mastro da bandeira, dando um charme especial ao conjunto.
Naquela semana que passei na Marambaia fiz amigos que guardarei para sempre. Foram seis dias inesquecíveis onde nos aventuramos em pistas de orientação — com bússola e mapa — pela ilha, nadamos com “roupa de astronauta”, pilotamos e desviramos botes, escalamos, voamos de helicóptero, sim, isso também fazia parte do treinamento, precisávamos ter instruções sobre como embarcar e desembarcar da aeronave em segurança e, é claro, já que o rotor estava ligado... Por que não dar uma voltinha? Os pilotos, para nos darem ainda mais emoção, como se já não bastasse estar voando de helicóptero com as portas abertas num lugar tão lindo quanto aquele, ainda davam, com as aeronaves, mergulhos e rasantes no mar. Pura adrenalina!
Fizemos também turismo pela ilha durante nossas “horas de folga”. A região era especialmente bonita e aconchegante. Lugar preservado e longe dos tumultos e aflições da vida urbana. Sem poluição, trânsito, multidões ou insegurança. À noite, depois de passarmos pelo azimute 9, um barzinho da ilha, podíamos deitar nas alvas areias da praia e ver o esplendor da Via Láctea no céu, coisa impossível de se fazer nas grandes cidades devido à forte iluminação artificial e à poluição dessas áreas. Na ilha havia também as ruínas de um quilombo. Era lá que os escravos vindos da África passavam um período de quarentena antes de desembarcarem em terras continentais. O lugar havia sido restaurado e servia como centro de visitações. Estávamos também vivenciando parte das primeiras páginas da História do Brasil.
Voltando ao TPA, havia conosco, para a integração do pessoal em treinamento, dois psicólogos da Marinha, na verdade um psicólogo e uma psicóloga. Isso também fazia parte do Pré-Antártica, pois lá no gelo, estaríamos em ambiente de confinamento e o sucesso da missão também dependeria do bom clima entre as pessoas que estivessem “presas” na Estação. Além disso, havia grupos de militares que estavam em processo de seleção. O novo grupo da base militar que ficaria na Antártica durante todo o ano seguinte estava sendo escolhido durante o treinamento. As brincadeiras criadas pelos psicólogos para promover a integração das pessoas também foram um ponto alto da etapa da Marambaia. Se havia ali alguém que fosse tímido, deixou de ser naquele TPA. Apenas para citar uma dessas empolgantes atividades, nós todos estávamos divididos em três grandes grupos, o Alfa, o Bravo e o Charlie. Eu estava no Alfa. Em um belo dia, os psicólogos nos levaram a um galpão no interior do qual havia um quadrado perfeito de um metro de lado — ou seja, de área igual a 1 m² — pintado a giz no chão. Objetivo da tarefa, fazer com que todos os elementos do grupo ocupassem simultaneamente o interior do quadrado. Bem, éramos cerca de 30 pessoas por grupo. Depois de muito aperto — literalmente —, foi interessante comparar as estratégias empregadas pelas equipes. A nossa tentou fazer uma pirâmide humana, colocando os mais fortes por baixo e os mais leves por cima, por camadas. Conseguimos, com a cooperação e esforço de todos. A Bravo resolveu interpretar o texto do desafio, “todos no interior do quadrado”, mas ninguém disse nada sobre estar ou não de corpo inteiro lá dentro. Assim, todos colocaram apenas uma parte do corpo dentro do quadrado e também completaram a tarefa. Os integrantes da equipe Charlie fizeram algo parecido, porém, digamos, foram mais filosóficos. Disseram que todos eram um só — grupo — e que um só representaria todos. Deram-se bem! Não se apertaram, colocaram apenas um elemento, escolhido por voto, no interior do quadrado e também completaram a prova. Não havia vencedores nem vencidos, era apenas uma atividade de integração.
Para finalizar essa tarefa, os psicólogos nos contaram a parábola dos porcos-espinhos que me permito reproduzir aqui, pois acredito que resuma brilhantemente o que é a convivência num ambiente de confinamento. Vamos lá: “Num lugar muito distante e isolado havia uma comunidade de porcos-espinhos. Eles viviam felizes e contentes, até que um dia veio a Era Glacial e congelou a vila onde viviam. Os porcos-espinhos começaram a morrer de frio até que perceberam que se eles se agrupassem poderiam sobreviver compartilhando o calor de todos. E assim todos se agruparam e as mortes deixaram de ocorrer. Tudo ia bem até que os espinhos de uns começaram a cutucar outros... Incomodados com as espetadas, os porcos-espinhos resolveram se separar. Mas com isso, as mortes pelo frio voltaram a ocorrer. Os que sobraram decidiram então se reagrupar, entretanto, dessa vez, mantendo uma distância mínima, segura, do seu próximo: a distância da privacidade individual.” Cooperação mútua e união, respeitando-se a privacidade alheia, assim seria o convívio na Antártica, um lugar também inóspito e muito frio como a vila dos porcos-espinhos pós-advento da Era Glacial.
Bem, voltemos ao TPA. Após seis dias intensos em atividades físicas e psicológicas, houve um churrasco na noite do sábado — chegamos lá numa segunda-feira — com direito a fogueira de São João e tudo. Foi realmente tudo muito bom. E muitos, naquela noite, estavam se despedindo. Alguns retornariam para seus Estados natais, Brasil afora, em suas bases ou universidades. Outros continuariam o treinamento, mas agora em outro local, para a etapa de inverno. A Marambaia havia sido apenas a etapa do treinamento para o verão antártico. O reencontro se daria apenas no embarque da viagem rumo às Terras Austrais.
Os que foram para o Treinamento de Inverno, eu inclusive, compuseram um grupo agora já bastante reduzido em relação ao grupo inicial — aproximadamente metade — e tomaram um ônibus com destino ao Pico das Agulhas Negras, que está entre os 10 pontos culminantes do Brasil, fronteira entre Minas, Rio e São Paulo.
Em Resende começamos a subir o Pico. O ônibus nos deixou apenas na metade do caminho, não aguentou a subida. O restante do percurso, fizemos a pé. À medida que subíamos, a paisagem ia se alterando paulatinamente. A vegetação, antes densa e alta, ia ficando cada vez mais rara e rasteira, até que, praticamente em nosso destino final, desapareceu quase que por completo. Aquela visão era surreal, parecia que estávamos dentro da cratera de um vulcão. Só faltavam algumas labaredas brotando do solo para aquilo se parecer com O inferno de Dante. Tudo muito seco e cinza, apenas alguns arbustos aqui e ali, e mesmo assim, com aspecto seco. O terreno era todo rochoso e quando chegamos fazia um frio intenso, pois além de ser inverno, estávamos a quase 2.600 metros de altitude — o pico está a 2.792 metros.
Já próximo à base do pico havia uma pequena unidade da Marinha e do Exército, sede do Batalhão Toneleros, um batalhão de operações especiais dos fuzileiros navais. Naquela época — Agosto de 1994 — ainda não havia alojamentos especiais para os “antárticos” em treinamento, como há hoje. De modo que ficamos em algumas tendas militares, previamente montadas, que abrigavam cerca de 10 a 12 pessoas cada uma. Nossas camas? Pequenos e delgados colchonetes que desenrolávamos e estendíamos diretamente no chão, no interior da tenda. Pela lei de Murphy — aquela que enuncia que tudo que pode dar errado certamente dará —, havia a saliência de uma enorme pedra soterrada bem debaixo do estreito e limitado local onde eu deveria estender meu colchonete. Para completar o cenário dantesco, havia uma lagoinha, que todos os dias amanhecia com uma fina camada de gelo na superfície, próxima à construção onde ficava nossa cozinha. O helicóptero Esquilo, da Marinha, que também foi enviado para essa etapa de inverno, nas Agulhas Negras, também amanhecia “congelado” todas as manhãs.
Como estávamos quase no topo da montanha, muitas vezes uma nuvem ou outra nos engolia, dando um ar londrino à paisagem e aumentando ainda mais a sensação do frio cortante. Por falar em frio, adivinhem? Não havia banho quente, claro! Era angustiante tomar banho todos os dias. A “cerimônia” do banho — cerimônia porque só rezando entrávamos embaixo daquela água — acontecia logo após as atividades da tarde, antes do sol sumir. Os militares nos davam alguns bizus, como por exemplo, entrar urrando e concentrar-se em outra coisa, pois, diziam, o frio era psicológico... Bem, tenho que discordar, o frio é fisiológico e não psicológico, não houve como ignorá-lo por mais que eu tenha tentado. Mas aquilo serviu como pré-adaptação ao gelo polar, se bem que, nem na Antártica senti tanto frio quanto naqueles dias nas Agulhas Negras.
Passamos mais cinco dias no Batalhão Toneleros, essa foi a etapa de inverno do TPA. Durante o período iluminado, fazíamos treinamento de alpinismo, agora sim, em atividades mais emocionantes do que aquelas escaladas iniciais na Marambaia. Houve tirolesa, rapéis mais altos e emocionantes — de até 30 metros —, treinamento de resgate de feridos, e escaladas, propriamente ditas, na rocha. Um amigo meu, o Christiano, se acidentou num rapel e fraturou o calcanhar, ainda bem que não foi nada muito grave. Felizmente havia uma unidade médica lá em cima e ele foi medicado imediatamente, mas o treinamento de inverno acabou para ele naquele dia. Ele havia sido, até então, um grande companheiro de aventuras, pois havia algumas atividades que eram opcionais, como o rapel de 30 metros, e sempre éramos, nós dois, os voluntários.
Os dois últimos dias do TPA foram reservados para irmos até as prateleiras — uma formação rochosa bastante interessante — num dia e até o cume do pico das Agulhas Negras no outro. Fomos divididos em dois grupos, assim num dia um grupo ia até as prateleiras enquanto o outro ficava com o cume, e no dia seguinte a situação se inverteria. Eu estava no grupo que subiu até as prateleiras no primeiro dia. A subida não foi difícil, apenas um obstáculo ou outro mais complicado, mas nada que requeresse muita experiência em escaladas. Já o esplendor da visão que tivemos quando chegamos ao nosso destino não foi nem um pouco proporcional à dificuldade de se chegar lá. Aquilo foi maravilhoso, um mar de nuvens se estendeu a nossos pés quando chegamos às prateleiras. O tapete de nuvens parecia feito de algodão. Parecia que, se você se jogasse em direção a elas cairia em um imenso colchão macio. Naquele momento entendi perfeitamente como se sente um alpinista ao chegar ao cume de uma montanha. Aquela visão, aquele espetáculo, não tem preço. Não há palavras que exprimam o sentimento que nos tomou naquele momento, pois tudo aquilo foi inarrável. E isso porque eu ainda não sabia o que nos esperava no dia seguinte...
A subida ao cume do Pico das Agulhas Negras foi ainda mais emocionante. Nem todos do grupo chegaram lá. Houve um trecho em que precisamos aplicar algumas técnicas de escalada, como, por exemplo, fazer uma chaminé. Obviamente eu fui um dos voluntários. Sofri um pouco, mas valeu cada gota de suor derramado. Quando cheguei ao cume, com mais umas três pessoas do grupo científico, alguns alpinistas já estavam lá. O cenário foi desconcertante. Se das prateleiras já podíamos ver aquele enorme mar de nuvens, do cume percebemos que não havia nenhum ponto acima de onde estávamos. O horizonte se estendia ao longe e o resto do mundo abaixo de nós. Um dos alpinistas soltou um urro ensurdecedor, abrindo os braços. Foi uma reação em cadeia; todos os que estavam lá fizeram o mesmo. Terapia para quê? Aquilo era muito melhor. Depois de aproveitarmos o momento, único, de se estar naquele lugar maravilhoso, assinamos um livro que fica permanentemente no cume, protegido dentro de uma caixa de alumínio. Os que chegam lá têm o privilégio de poder assinar o livro e deixar uma mensagem. A minha está lá, e, só para aguçar a curiosidade do leitor, não vou reportá-la aqui. Quem um dia subir até o cume do Agulhas Negras, vá até a data 16 de agosto de 1994 e veja o que um então jovem estudante de física escreveu nas já amareladas linhas daquele simbólico livro.
Outro churrasco, desta vez na sexta-feira, encerrou também a etapa de inverno. Como dizem os alpinistas, a escalada não acaba no cume, mas no sopé da montanha novamente. A exemplo da nossa chegada, descemos um pedaço a pé e depois pegamos um ônibus que nos levou até a rodoviária de Itatiaia, no estado do Rio de Janeiro. Estávamos exaustos, porém realizados; aquele treinamento, por si só, já antecipava a aventura maior que estava por vir... A viagem à Terra do Gelo Eterno. Assim, voltamos para nossas casas naquele mês de agosto para, alguns meses depois, em janeiro, no verão, alguns de nós nos reencontrarmos de novo.
A viagem para a Antártica começou no Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador no Rio de Janeiro, num setor militar, o Correio Aéreo Nacional (CAN), isolado e distante dos terminais civis do Galeão. Uma viatura do INPE nos levou, na véspera, até um alojamento, o CEFAN da Marinha, onde passamos a noite. Quando, ainda de madrugada, chegamos ao CAN, pudemos ver, da viatura, a aeronave C-130, o Hércules, da FAB, estacionada ao lado do terminal do CAN.
O avião militar com pintura camuflada jazia imponente, iluminado pelas potentes lâmpadas da pista, pois ainda não havia amanhecido. Fomos deixados no terminal do CAN pelo motorista do INPE, que regressou na sequência a São José dos Campos. Encontramos algumas pessoas, na maioria militares, que já estavam lá também para o voo do Hércules.
À medida que as pessoas iam chegando, as histórias e estórias do TPA voltavam à tona. Como foi bom reencontrar o pessoal. Houve um briefing do voo, passado pelo capitão e sua equipe, para conhecermos as coordenadas das diversas “pernadas” da viagem de avião até a Antártica. A primeira pernada seria do Rio até Pelotas, com aproximadamente três horas de voo. Em Pelotas, receberíamos as vestimentas especiais para o ambiente antártico e, naquele dia, lá pernoitaríamos. Após o briefing, o embarque foi liberado e fomos, em fila, até o Hércules. Quando subi os pequenos degraus da escotilha dianteira de acesso, meu coração começou a bater mais forte. Era a primeira vez que eu entrava numa aeronave daquelas. Tudo estava temperado por um sabor de novidade e aventura. O interior do avião era escuro, mesmo com as lâmpadas internas ligadas. Parecia mesmo uma aeronave militar. Nenhum luxo. Fiações e encanamentos à mostra — imagino que para facilidade de acesso em caso de reparo. Afinal era uma aeronave militar e foi concebida para operar também em condições adversas.
Na parte anterior da aeronave os assentos estavam reservados para as autoridades convidadas — Ministros, Senadores, Deputados e Oficiais Generais das três forças — e para o pessoal da Marinha que fazia a coordenação do voo. Lá na frente também ficava a Tia Alice, uma senhora muito simpática que havia trabalhado na VARIG como comissária de bordo durante muitos anos e agora estava aposentada, trabalhando como voluntária nos voos que a FAB fazia para a Antártica. Tia Alice não perdia um voo para a Antártica, sempre ajudando na coordenação e gentilmente nos servindo os quitutes aéreos. Isso ajudava a minimizar o desconforto de um voo militar. Na parte central do Hércules ficavam os pesquisadores e demais pessoas que iriam permanecer na EACF, como as pessoas do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ) que constantemente vão à Antártica para realizar reparos e ampliação nas instalações da Estação.
Essa parte central da aeronave era dividida em duas subpartes longitudinais. Cada parte com duas fileiras de assentos tipo paraquedista, uma voltada para a outra. Nós, pesquisadores, chamávamos isso de efeito zíper, pois, para sentarmos, tínhamos que entrelaçar as pernas, uma sim, uma não, ou, caso contrário, não caberíamos lá. O espírito aventureiro já começava no voo. Finalmente, na parte traseira do avião, estavam as nossas caixas com equipamentos e as bagagens individuais. Lá também seriam colocadas as andainas, uns sacos compridos de tecido reforçado — enormes trouxas — para transporte das vestimentas especiais que pegaríamos em Pelotas.
O voo do Rio à Pelotas foi tranquilo. Nunca poderia imaginar que um avião aparentemente desengonçado daqueles tivesse tanta estabilidade. Não houve nenhuma turbulência e podíamos ouvir as quatro hélices dos turbo-propulsores roncando ferozmente, tanto que foram distribuídos protetores auriculares para os passageiros. Conversar dentro do Hércules em voo, somente se você estivesse muito próximo de seu interlocutor e ainda assim, a base de grito. Havia um banheiro, também nos fundos do avião, instalado em uma pequena cabine. Chegar até lá é que era um pouco difícil. Tínhamos literalmente que passar por cima de todo mundo, tomando cuidado para não pisar em ninguém.
Aproximadamente 2 horas e 40 minutos após a decolagem no Rio, estávamos pousando em Pelotas no Rio Grande do Sul. O aeroporto era pequeno, mas muito charmoso. Descemos do Hércules e, caminhando pela pista, alcançamos o terminal de passageiros do aeroporto. Ninguém resistiu ao impulso de tirar fotos do imponente Hércules, ainda com os motores ligados, imóvel, sobrepondo o horizonte. No terminal, uma equipe de apoio já nos aguardava. Eram da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG) — universidade que abrigava também a Estação de Apoio Antártico (ESANTAR), sediada na cidade de Rio Grande, um pouco ao sul de Pelotas. Era na ESANTAR que nossas vestimentas especiais ficavam. Quando chegava um voo da FAB para a Antártica, o pessoal da ESANTAR ia a Pelotas levando as andainas com as vestimentas para os tripulantes. Cada pesquisador ou participante da missão solicitava suas vestimentas a Brasília antes da viagem. Brasília enviava as solicitações à ESANTAR que preparava as andainas. Nossa responsabilidade naquele momento era receber a andaina e verificar se tudo estava OK. Assim o terminal virou um enorme trocador. Todo mundo provando as vestimentas especiais. Caso alguma peça não servisse, ainda teríamos a oportunidade de troca, lá mesmo no terminal, onde podíamos trocar peças com os outros participantes da missão, ou mais tarde, na visita que faríamos a Rio Grande para a ESANTAR e o Museu Antártico, que também fica naquela cidade.
Assim que todos terminaram a sessão de prova, tomamos um ônibus fretado que nos levou até o Hotel Manta. No Hotel fizemos o check-in e fomos liberados para o almoço. A ida a Rio Grande ficou marcada para as 14 horas. Fui almoçar com meus amigos do TPA. Não deu muito tempo para conhecer a cidade de Pelotas, pois todos iríamos para Rio Grande. Assim, almoçamos o famoso churrasco gaúcho e ainda, de sobremesa, não dispensamos os saborosos, e também muito famosos, doces pelotenses. Às 14 horas estávamos todos no lobby do hotel aguardando o embarque. O mesmo ônibus que nos trouxe do aeroporto nos levou a Rio Grande. A viagem por si só já foi interessante. Vimos a Lagoa dos Patos, enorme, no caminho.
Em Rio Grande, conhecemos o Museu Antártico e o Museu Oceanográfico — ambos ficam juntos, nas mesmas instalações. Passeio interessante, especialmente para quem se interessa por biologia marinha e coisas relacionadas ao mar. O Museu Antártico, por sua vez, é um museu construído em contêineres, exatamente da mesma forma como foi originalmente construída a nossa Estação Antártica. Dentro dos contêineres, painéis explicativos e objetos vindos da EACF, contando a história da Estação e explicando a geografia e a biologia da região.
Na sequência, o ônibus nos levou até o campus principal da FURG, onde se localizava a ESANTAR. Lá pudemos ter uma noção do tamanho do programa antártico brasileiro. Eram instalações que abrigavam todo nosso material antártico, desde as vestimentas especiais, passando pelo material de alpinismo até veículos polares. Todos os corredores decorados com fotografias premiadas da região antártica. As autoridades que estavam no voo puderam ver com seus próprios olhos como estava sendo utilizada a verba que eles mesmos votavam e aprovavam em Brasília. Quem precisou fazer alguma troca de material aproveitou a oportunidade.
No final da tarde, o corpo já mostrava sinais de cansaço, apesar da mente ainda estar afiada com tanto estímulo gerado por tantas novidades. Voltamos, com o crepúsculo, para Pelotas. No início da noite, o grupo se reuniu na tradicional Churrascaria Lobão para um jantar de confraternização. Retornando ao hotel, fomos instruídos a fechar a conta à noite mesmo, pois sairíamos muito cedo no dia seguinte. Quando me recostei à noite na cama do hotel, me sentia cansado, mas incrivelmente leve e feliz. Aquela viagem maravilhosa estava sendo uma terapia, e isso porque eu ainda nem podia imaginar o que viria a seguir...
Às 05h30 da manhã o café começou a ser servido. O mezanino do hotel, no primeiro andar, abrigava a área do café, depois do deck da piscina. O café continental foi revigorante, muitas frutas tropicais e sucos frescos. Como não sabíamos o que nos aguardaria nos próximos meses confinados na Terra do Gelo, saboreamos aquelas frutas como iguarias inestimáveis. Afinal, aquele seria nosso último café ainda em terras brasileiras.
Às 8 horas em ponto, o Hércules C130 levantava voo no aeroporto de Pelotas. Essa seria a pernada mais longa de toda viagem. Cerca de 6 horas de voo até a aterrissagem em Punta Arena, Chile, no estreito de Magalhães, literalmente no fim do mundo. Como não havia muito que fazer durante o voo, as pessoas tentavam dormir, ouviam música ou liam algum livro. Eu fui procurar uma pequena escotilha perto das malas e das andainas para ver a paisagem lá embaixo. O Hércules sobrevoou a costa argentina durante quase toda a viagem. E eventualmente podíamos ver alguma cidade lá embaixo.
Às 13 horas aterrissamos em Punta Arenas. Nunca estive em uma cidade onde o vento soprasse tão forte. Era verão no hemisfério sul, entretanto em Punta Arenas o frio era uma constante. Lá, nessa época do ano a temperatura média é de cerca de 10°C. Ao desembarcarmos na pista, já trajados como viajantes antárticos, com nossas vestimentas especiais, que por sinal nos identificavam, pois tinham a bandeira brasileira bordada num dos ombros do casaco, nos sentíamos como verdadeiros viajantes do fim do mundo. O vento era tão forte que precisou de algum tempo para que nossos cérebros se acostumassem com a nova situação de equilíbrio. Outro efeito dessa ventania toda foi a eletrostática. Com os cabelos esvoaçantes, adquiríamos rapidamente carga elétrica, e bastava tocar em alguém, ou em algo metálico, para surgirem faíscas de descarga. Esse fenômeno se deve a alta latitude da localidade onde estávamos. O Sol aquece mais eficientemente as regiões tropicais — entre os trópicos de Câncer e Capricórnio —, o que provoca, nessas regiões, uma zona de baixa pressão que “puxa” massas de ar de regiões de maiores latitudes — maior pressão —, criando os ventos. Após os entraves burocráticos, afinal estávamos em solo estrangeiro agora, fomos liberados para seguir para os hotéis. E, por falar em burocracia, em 1995 ainda havia alguns resquícios, no Chile, da Era Pinochet, e fotos na pista do aeroporto não eram permitidas. Assim só pudemos começar as disparar os “cliques” já no ônibus que nos levou até o centro de Punta Arenas.
A viagem até o hotel foi um espetáculo a parte. Margeamos o tempo todo o estreito de Magalhães, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico. De estreito não tinha nada. De onde estávamos, podíamos sim avistar o outro lado, mas muito ao longe — e depois eu descobri que sua travessia leva de 3 a 5 horas, dependendo da correnteza. Tia Alice fez as vezes de guia turístico e, no microfone do ônibus, foi nos contando fatos históricos, geográficos e pitorescos da cidade. Como a história de Sara Brown, uma ilustre e rica mecenas da cidade, que financiou a construção de um cemitério sob a condição de que seu enterro fosse o último a passar pelos portões do cemitério. Após seu enterro, para satisfazer seu desejo, os portões do cemitério foram lacrados, entretanto, novos portões laterais foram construídos, e assim o cemitério continuou a ser usado e visitado, aliás, local muito agradável, arborizado e sereno.
Fiquei num hostal, o Calafate, que ficava bem no centro de Punta Arenas, em frente à mansão que fora a morada de Sara Brown e hoje abriga um museu. Calafate é o nome de um arbusto que nasce na região que produz uma fruta da qual se fazem doces e geleias. Dizem os chilenos que comer um Calafate em Punta Arenas atrai boa sorte. Aliás, existe outra famosa crendice local, a do pé do índio da praça. Bem próximo ao nosso hostal, havia a bonita praça central da cidade. No centro dessa praça há um monumento em homenagem a Fernão de Magalhães, o navegador português que foi o primeiro europeu a passar por aquelas bandas, em busca do tão sonhado canal que ligaria os dois oceanos. Em baixo da estátua em bronze de Magalhães, existe um índio sentado como o pé projetado para fora do pedestal. O dedão do pé do índio está reluzente de tanto as pessoas passarem a mão nele. É que, reza a lenda que, quem passar a mão no pé do índio, certamente voltará a Punta Arenas. Todos os antárticos seguem o ritual. Na ida, para poderem regressar, e na volta, para poderem participar de outra missão e, portanto, retornarem a Punta Arenas.
Depois de fazermos o check-in no hostal, estávamos liberados. O embarque para a Antártica aconteceria apenas no dia seguinte. Os militares precisavam fazer as últimas modificações e verificações na aeronave e consultar a meteorologia para saberem se seria viável uma tentativa de pouso na Antártica no dia seguinte. Enquanto isso, estávamos livres para passear pelo local. Fomos ao mirante, não muito longe do hostal, de onde pudemos ver a cidade emoldurada numa só visão. Punta Arenas é também conhecida como a cidade dos telhados coloridos; a visão que tínhamos do mirante justificava a fama. O Chile, que sempre foi uma das melhores economias da América Latina, tem cidades apaixonantes. Punta Arenas era uma delas. A cidade era extremamente charmosa e acolhedora. As pessoas locais também. O frio fazia com que todos os ambientes fossem acolhedores. Desde um simples barzinho até o Shopping Center. E por falar em compras, outro local muito visitado pelos brasileiros na cidade é a Zona Franca.
Punta Arenas sempre foi um importante porto chileno, por se situar num estreito que une dois grandes oceanos. Antes da construção do canal do Panamá, era a única rota marítima que ligava as duas costas americanas. Ainda hoje, continua sendo um importante porto para o Chile e para os demais países da América do Sul. A Zona Franca fica perto do porto. Pode-se chegar até lá de táxi, ônibus ou com as famosas lotações. As lotações são carros — como táxis — que fazem itinerários fixos; se há vaga, o motorista para nos pontos, como se fosse um ônibus. Como as vagas se esgotam rapidamente, o motorista segue viagem sem parar até que algum passageiro desça. Isso faz das lotações um transporte muito mais ágil do que os ônibus, e muito barato também, custava cerca de 1 real por passageiro. A Zona Franca, à época, era um paraíso para as compras. O real estava forte — em paridade com o dólar — e por ser uma Zona Franca, os produtos eram mais baratos pela ausência de impostos de aduana. Ainda hoje continua sendo uma tentação passar por lá.
Outra característica do Chile são os bons e baratos restaurantes. Saímos naquela noite para comer salmão fresco. Jantamos no restaurante do Hotel Savoy, local onde sempre fica a tripulação militar de nossa aeronave. Os pratos são muito bem servidos, mais do que suficientes para uma pessoa, e saborosos. Recomendo também a centolla, um caranguejo gigante de águas profundas e de carne tenra, o loco, uma espécie de lesma, e o côngrio, um peixe típico das águas daquela região. Alguns pediram, para beber, pisco chileno, um destilado de uva, parecido com nossa cachaça, mas de sabor distinto e muito bom. Outros foram de vinho, entre eles eu. Afinal os vinhos chilenos são os melhores da América do Sul e, no Chile, são nacionais e, portanto, baratos. Depois desse deleite gastronômico regado a muitas conversas sobre como seriam nossos próximos dias nas terras do gelo, retornamos às nossas “habitações”.
Na manhã seguinte — novamente — bem cedo, estávamos todos preparados e trajados já para o desembarque na Antártica, que exigiria ainda mais rigor quanto às camadas de roupas por sob o pesado casaco da ESANTAR. Infelizmente a meteorologia não permitiu o vôo naquele dia. Uma frente fria levou muito nevoeiro e fortíssimos ventos para a região da aterrissagem. Como a operação de pouso na Antártica é considerada uma operação de risco, as condições meteorológicas devem ser as melhores possíveis para permitir o toque da aeronave no “solo”. Às vezes, em face da previsão de uma possível janela de tempo bom, o vôo é realizado sob o risco de o Hércules retornar sem ter pousado. Naquela minha primeira missão, ficamos sete dias em Punta Arenas antes de o tempo melhorar na região da Península Antártica. Nossa Estação fica numa ilha chamada Ilha Rei George, na Shetland do Sul, Península Antártica, e o local da aterrissagem fica ao sul da ilha, numa base área chilena na Antártica, chamada de Base Presidente Eduardo Frei Montalva — ou simplesmente “Frei”.
Depois de uma semana conhecendo todos os pontos turísticos do estreito de Magalhães, como pinguineiras e navios naufragados, e até termos atravessado o estreito para a Terra do Fogo, estávamos ansiosos para irmos à Antártica; até que, na manhã no oitavo dia, aconteceu. O tempo havia melhorado na Ilha Rei George e as possibilidades de sucesso no pouso eram muito boas. Foi assim que às 7 horas daquela fria manhã, finalmente decolamos rumo ao gelo eterno. A travessia do Estreito de Drake, o braço de mar que separa a Terra do Fogo da Antártica, uma das regiões de mais difícil navegação do planeta, durou cerca de 3 horas pelo ar. Quem vai por mar passa por maus bocados. Amigos meus, que fizeram essa travessia com navio, disseram que a embarcação adernar mais de 20 graus é comum, chegando a adernar até 45 graus numa tempestade, quase no limite do naufrágio. Nosso navio mesmo — o Ary Rongel — teve laboratórios a bordo destruídos algumas vezes por conta de mares agitados.
Após três angustiantes horas, nas quais ainda não tínhamos certeza absoluta se conseguiríamos pousar, finalmente a sirene interna do Hércules toca. Isso significava que deveríamos apertar os cintos. Senti a respiração funda de todos a bordo. Podíamos sentir a ponta da aeronave apontar para baixo, fazia um frio intenso lá dentro, pois, para acelerar nossa adaptação, a cabina não havia sido climatizada. Sentíamos sucessivos frios na barriga, que depois eu vim a descobrir que faziam parte do procedimento de pouso na Antártica, o chamado crash controlado, ou seja, queda controlada. Como o avião não pode correr muito na gélida pista, que se estende num platô limitado por dois penhascos, o piloto deixa a aeronave em pequenos intervalos de queda livre — por isso o frio na barriga —, assim quando acontece o toque na pista, o Hércules precisa correr não mais do que 100 metros para parar. Foi o que ocorreu, tão logo sentimos o toque, dessa vez muito mais violento, bastaram mais alguns poucos instantes e o avião parou de correr e começou a taxiar ao som das palmas de todos. Estávamos oficialmente no Continente Branco!
Minutos depois, a parte traseira da aeronave começou a se abrir lentamente. O mecanismo hidráulico fazia um ruído característico e, aos poucos, a nossa primeira visão da Antártica se descortinava pela abertura na cauda do avião. O frio era intenso e o vento ainda mais forte do que o de Punta Arenas. Quando o desembarque foi liberado as pessoas começaram a sair, maravilhadas, do Hércules. Cheguei à escotilha principal e fiquei em pé, no alto da escada olhando o que havia lá fora. Por uns instantes achei que o frio intenso havia congelado o tempo. Tudo parecia em câmera lenta. O branco da neve refletia intensamente a luz dos dias eternos do verão antártico. Sentia-me como um astronauta que acaba de chegar a um planeta diferente. Aquele instante não deve ter durado mais do que três segundos, mas parece-me que durou muito mais. Talvez pela quantidade enorme de novas informações que estava recebendo e interpretando. Não sei. Somente uma única vez na vida, antes daquela, tive sensação semelhante, quando caí de uma ponte, de bicicleta, na casa de minha avó. A queda durou uma fração de segundo, pois a ponte não era muito alta, mas, para mim, parece que durou uma eternidade. Pude ver tudo ao meu redor e perceber, como se fosse em câmera lenta, as ondulações da água que se aproximava. Naquele primeiro vislumbre da Antártica a sensação se repetiu.
O que aconteceu depois foi o oposto. Como se alguém tivesse, do slow motion, apertado a tecla fast advance. Uma correria. Queríamos tirar mais fotos, mas fomos rapidamente direcionados ao hangar. Lá nossos amigos e companheiros de projeto, que seriam rendidos por nós em suas funções, estavam nos aguardando. Tivemos poucos minutos para conversar com eles, para que recebêssemos as diretivas de como estavam os experimentos que iríamos assumir. Logo depois, fomos direcionados até a praia, onde trajamos os famosos mustangs laranjas — as roupas de astronauta da Marambaia — para sermos levados de bote até o navio de apoio oceanográfico Ary Rongel, que já nos aguardava na baía de Maxwell, em frente à base Frei. Enquanto isso, os helicópteros esquilo do navio — o Ary Rongel tem duas aeronaves dessas — iam e vinham, levando as autoridades convidadas para a EACF que estava a cerca de 30 minutos de voo, de Frei. Enquanto aguardávamos, de mustang, o bote na praia de Frei, vimos nossos primeiros pinguins. O frio era intenso e nossos movimentos limitados pelo mustang, mas mesmo assim seguimos os “bichanos”, a certa distância, gastando vários rolos de filmes em fotos. Não estávamos ainda na era das máquinas digitais e os filmes eram uma limitação forte à quantidade de fotos que poderíamos tirar, afinal, não havia shoppings na Antártica. Mesmo assim, o primeiro pinguim a gente nunca esquece.
A viagem de bote foi uma aventura, os ventos na Antártica eram ainda mais fortes do que os de Punta Arenas. Isso fazia com que o mar ficasse crespo, cheio de carneirinhos, como os marinheiros chamavam a ondinhas que se formavam na superfície. Nós, vestidos com o mustang, quase não podíamos nos mover, devido ao frio e as múltiplas camadas de roupas, e o barco galopando como se fosse um cavalo rebelde. Entretanto, a paisagem era deslumbrante. Tudo coberto por neve, apenas aqui e ali uma porção de solo rochoso desnudo. Isso porque estávamos em pleno verão. A ilha Rei George é recoberta por geleiras e menos de 10% de sua superfície fica exposta no verão, os outros 90% ficam permanentemente sob o gelo eterno. Naquele dia fazia -2°C, mas a sensação térmica era de -15°C, devido aos fortes ventos. Chegamos à popa do navio e pude perceber que o nosso Ary, que ao longe parecia pequeno, não era tão pequeno assim. Havia uma escadinha de corda, que pendia da parte de trás do navio, que deveríamos escalar. Devia ter uns 5 metros de altura, mas estávamos com aquela roupa de astronauta e luvas e, além disso, portávamos nossa bagagem de mão e notebooks. Fiquei um pouco receoso com aquela subida, já imaginando como seria cair naquelas águas congelantes que estavam a zero grau. Mas tudo deu certo. Fomos ajudados pelos militares a bordo e subimos sãos e salvos até o deck.
O Ary Rongel estava, na época, em sua primeira missão antártica, a XIII Expedição Brasileira à Antártica, substituindo o histórico e recém-aposentado, Barão de Teffé, que foi o nosso primeiro navio polar. Ele havia sido construído na Noruega em 1981 e batizado como Polar Queen, porém, depois de ter sido comprado pela marinha, passou a se chamar Ary Rongel, em homenagem a um almirante brasileiro que navegara pela região do estreito de Magalhães. A bordo do Ary, fomos para a Praça D´Armas, local de refeições e lazer dos oficiais. Passamos por vários porões e compartimentos e pensei se saberia refazer aquele caminho, que mais parecia um labirinto, quando precisasse. Já na Praça D´Armas, pudemos nos reaquecer e saborear uma deliciosa refeição, preparada para nós, que já estávamos famintos. Comida brasileira, com gostinho de Brasil, em plena Antártica. Os pesquisadores que iriam ficar em definitivo no navio foram para seus camarotes descansar. O restante de nós, que não teria camarote, pois ficaria em terra — ou melhor, em gelo —, saiu para excursionar o navio. Fomos até a ponte de comando, ou passadiço, como chamam o militares, para acompanhar as manobras. Naquele momento, todos os pesquisadores já haviam embarcado e estava sendo efetuado o embarque da carga. As manobras seguiam em ritmo acelerado. Todas as autoridades já estavam em Ferraz, e por lá ficariam apenas algumas horas, pois o Hércules precisava decolar e retornar a Punta Arenas.
Umas três horas depois da aterrissagem, todas as manobras com o navio haviam sido concluídas e as autoridades visitantes estavam retornando para Frei, para que o Hércules pudesse retornar ao Chile. Tão logo o C 130 decolou, o navio começou a navegar rumo a Ferraz. Estávamos a seis horas de mar de nosso destino final e a expectativa era grande para conhecermos o local onde passaríamos os próximos 45 dias. Durante a pernada de navio de Frei a Ferraz, fiquei um bom tempo no convés, observando aquela paisagem quase alienígena. Apesar do frio, literalmente congelante, a visão era hipnótica. Não conseguia sair dali. Via os growlers, os pequenos pedaços de gelo no mar, passando pelo casco do navio. Até que ele surgiu, imponente, majestoso, monumental... Um enorme iceberg apareceu ao longe, e, mesmo ao longe, monumental. À medida que nos aproximávamos daquele paredão branco, ele parecia cada vez mais majestoso. Quando estávamos bem perto, pudemos ver que, do outro lado ele tinha uma espécie de túnel, dentro do qual caberiam embarcações inteiras. Na entrada do túnel, havia piscinas de gelo com fundo bem azul. Aliás, o azul era a segunda cor, depois do branco, mais predominante naquelas paisagens. O gelo das geleiras era azulado ao longe, efeito da difração da luz pelo já bem compactado gelo velho da base dos glaciares. Estávamos dentro de um enorme freezer, em pleno verão austral. Tudo era gelo, rocha, mar e céu. Não havia uma vegetação, nada. A única coisa verde que veríamos seriam os liquens e musgos antárticos, que em algumas áreas forravam o solo como verdadeiros tapetes verdes. Fomos para mar aberto, e de lá seguimos para a baía do Almirantado, onde fica nossa Estação.
Algumas horas depois de termos zarpado, adentrávamos a Baía do Almirantado, que, apesar de ser menor do que a Baía da Guanabara no Rio, em superfície, possui profundidades até 10 vezes maiores. Em alguns pontos da Baía do Almirantado, a profundidade chega a 650 metros. A Ilha Rei George é uma ilha vulcânica, uma gigantesca montanha submarina com o cume emerso.
À medida que o navio avançava pela Baía do Almirantado, nossa ansiedade também crescia, até que alguém anunciou que a Estação Comandante Ferraz já era visível ao fundo. Bem no final da Baía do Almirantado, existe uma pequena península, em forma de língua, a península Keller, onde fica a nossa Estação. Rodeada por grandes geleiras, a Keller apresentava, no verão, quase toda a superfície descoberta. Local estratégico para a instalação de uma Estação. Coisa que os ingleses muito bem sabiam, pois havia sido eles quem primeiro se estabeleceram na Keller. Colada à nossa Estação, estava a Base G, inglesa, uma antiga Estação Baleeira, que depois se transformara em Estação Científica até ser abandonada. Quando os brasileiros chegaram, no início dos anos 80, a Base G já fazia muito que estava desocupada, mas ainda jazia, quase que intocada, coroando a destreza da engenharia inglesa. Hoje a Base G não existe mais, ela foi desmontada anos depois dessa minha primeira missão antártica, e parte da madeira da base foi reaproveitada em obras de nossa Estação. Mas em 1995, ela ainda estava lá, imponente.
Voltando ao Ary, por binóculo já conseguíamos avistar Ferraz. Nesse momento, o convés do navio lotou. Nenhum dos pesquisadores novatos, antárticos de primeira viagem, queria perder o espetáculo da chegada. O Ary, gigante vermelho, se aproximava da verde-alaranjada Comandante Ferraz. O matiz de cores de nossa Estação contrastava com o branco do gelo e neve. Minutos antes de atracarmos em frente à Ferraz, algo incrível aconteceu: começou a nevar. Enormes flocos de neve começaram a cair e o vento deu uma trégua como que, em uma combinação da natureza, para saudar nossa chegada. A água cristalina do mar ao nosso redor e os pedaços de gelo flutuando, coalhando o oceano em nosso entorno, causam sensações inesquecíveis. Aquela neve caindo, unida ao silêncio que se fez com o cessar dos fortes ventos, me deu uma sensação de muita paz. Foi então que percebi que já era meia noite, mas não havia nada no céu que indicasse isso, a luminosidade não havia diminuído perceptivelmente. Ainda assim, Ferraz acendera as luzes de identificação e, ao longe, pudemos perceber que uma embarcação deixava a praia da Estação, repleta de gelo, e vinha em nossa direção. Era a lancha Skua, que estava vindo nos transportar para o nosso lar dos próximos 45 dias. Foi assim que eu cheguei à Antártica, na Estação Brasileira Comandante Ferraz. E aqueles 45 dias foram alguns dos melhores dias de toda a minha vida. As aventuras que por lá passei, as pesquisas que lá realizamos e o cotidiano de pesquisador em campo, no gelo, eu deixo para outra história... Mas saiba leitor que aprendi muito lá, não apenas no aspecto técnico e científico, mas principalmente no humano.
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José Henrique Fernandez
Formado em 1995, pelo Instituto de Física da Universidade São Paulo, é bacharel em Física com especialização em Pesquisa Básica em Física. Mestre em Geofísica Espacial pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais em 1997, e Doutor, também em Geofísica Espacial, em 2002, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais com especialização na Stanford University (EUA), no STAR-LAB. Suas pesquisas de mestrado e doutorado focaram-se no fenômeno de precipitação de elétrons da magnetosfera para a alta atmosfera terrestre induzida por relâmpagos — Lightning Electron Precipitation (LEP) — e em sua associação com a atividade geomagnética. Como continuidade de suas pesquisas no doutorado, realizou pós-doutoramento no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais iniciando novo modelo teórico sobre os mecanismos de equilíbrio dos cinturões de radiação de Van Allen, inserindo os eventos LEP como importante mecanismo de perda de população de elétrons dos cinturões e introduzindo o fenômeno como ferramenta de diagnóstico dos regimes do clima geoespacial. Continua participando de cooperações internacionais com a Stanford University e participou de diversas expedições científicas à Antártica. Atualmente é Professor-Assistente Doutor da Universidade de Taubaté (UNITAU) e membro da equipe de pesquisadores do grupo MagTer também da UNITAU.

Viajar sempre foi um
fascínio para a alma humana.
Os primeiros aventureiros que se lançaram nas “estradas” do mundo sempre buscaram alargar fronteiras, fossem elas pessoais, de seu grupo local ou de sua nação. Em busca de interesses econômicos, bélicos, científicos, religiosos ou mesmo movidos apenas por curiosidade nata, os primeiros viajantes, com certeza, tinham algo em comum, o espírito aventureiro. É inegável o prazer que se tem pela aventura, pela busca de novas emoções, novos conhecimentos — e autoconhecimento —, novos relacionamentos, desenvolvimento de novas habilidades. E viajar propicia tudo isso.
Minha viagem também foi para ampliar fronteiras, as fronteiras do conhecimento. Sou físico e doutor em geofísica espacial e a viagem que vou narrar aqui foi uma viagem à Terra do Gelo Eterno, a Antártica...
Uma vez disse John Lennon: “estive em muitos lugares, mas só me encontrei em mim mesmo”. Bem, então eu acho que sempre estive ao sul do paralelo 60, pois, definitivamente, eu me encontrei comigo mesmo nas gélidas paisagens antárticas.
A primeira vez que estive lá foi no verão austral de 1995. Era então um mestrando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) indo coletar dados sobre a alta atmosfera terrestre na região da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). O Brasil, assim como todos os países membros do Tratado da Antártica com direito a voto, mantém uma estação científica na região.
Mas antes de chegarmos ao antitopo do mundo, deixem-me dizer primeiro como se faz para se chegar lá. Os candidatos a participante de uma expedição antártica devem primeiro passar por um treinamento preparatório no estado do Rio de Janeiro, o chamado TPA — Treinamento Pré-Antártico. A etapa preparatória para o verão antártico é realizada na paradisíaca Ilha da Marambaia. A Ilha é uma imensa base militar para as três forças, exército, marinha e aeronáutica. Tanto que lá só vivem os próprios militares e uma pequena comunidade aborígine de pescadores.
Eu cheguei à cidade do Rio de Janeiro numa fria manhã de agosto. Na Praça Barão de Ladário, em frente ao 1º Distrito Naval, encontrei-me com os demais pesquisadores que também iriam fazer o treinamento na Marambaia. Dois ônibus nos levaram até Mangaratiba, na baía de Sepetiba. Os coordenadores do treinamento, oficiais da Marinha, viajavam conosco.
Numa praia da pacata e bonita vila de Itacuruçá pegamos uma embarcação militar que cruzou a baía de Sepetiba e nos levou até a Ilha da Marambaia. Vimos alguns golfinhos durante a travessia e o frescor da brisa oceânica atenuava um pouco o ardor do sol que já brilhava alto naquele momento. Estavam conosco também, além dos pesquisadores e militares, um grupo de alpinistas do Clube Alpino Paulista (CAP), contratados pela Marinha para nos instruírem sobre alguns procedimentos básicos de escalada e sobrevivência no gelo — essa última parte, apenas instruções teóricas, claro! Afinal, estávamos no Rio de Janeiro. Lá na Antártica é sempre obrigatória a presença de um alpinista, tanto na nossa confortável estação quanto, e principalmente, nos acampamentos que alguns grupos de pesquisa também fazem pela região.
A chegada à Marambaia já foi sui generis. Uma visão paradisíaca se emoldurava aos nossos olhos à medida que a embarcação se aproximava do atracadouro. Vimos um enorme paredão de rochas se descortinando a nossa frente, no centro da ilha, e alguns alpinistas engraçadinhos brincavam com nossa ingenuidade, dizendo que lá seria o palco de uma de nossas futuras aventuras durante o treinamento. Eu até ensaiei em acreditar, mas logo percebi que aquilo seria um desafio grande demais para meros iniciantes na arte do alpinismo. De fato era uma brincadeira, o enorme paredão rochoso, quase vertical, devia ter mais de 80 metros em altura. Durante a etapa de Marambaia fizemos apenas um treinamento básico em escaladas, adquirindo noções sobre nós, instrumentação e nos aventurando em um rapel de uns 6 a 8 metros. Pode parecer baixo, mas, acreditem, foi muita adrenalina também, principalmente no início do rapel, naquele momento em que você fica em pé e de costas, bem na beira do precipício, e tem que começar a inclinar o corpo para trás, em direção ao vazio até ficar perpendicular ao paredão... Ufa! Arrepio-me só em recordar a sensação. Quem pratica esportes radicais ou quem já saltou em um bungee jump sabe bem sobre o que estou falando. É contra o instinto natural de sobrevivência...
Mas voltemos a nossa chegada à ilha. A embarcação atracou e saímos para o cais. Já havia um comitê de boas-vindas nos aguardando. Fomos conduzidos até nossos alojamentos na base da Marinha. A vila militar era bem aconchegante, tinha até uma igrejinha voltada para a praia, repleta de coqueiros e areia bem branca. As meninas ficaram no claustro e nós, homens, ficamos nos alojamentos militares, com quartos enormes cheios de fileiras de beliches. As bases da Marinha que conheci sempre foram muito bonitas. Geralmente localizadas em praias ou costas desertas ou proibidas, pela própria natureza militar da localidade, eram sempre muito bem cuidadas e possuíam um mastro de navio que fazia às vezes de mastro da bandeira, dando um charme especial ao conjunto.
Naquela semana que passei na Marambaia fiz amigos que guardarei para sempre. Foram seis dias inesquecíveis onde nos aventuramos em pistas de orientação — com bússola e mapa — pela ilha, nadamos com “roupa de astronauta”, pilotamos e desviramos botes, escalamos, voamos de helicóptero, sim, isso também fazia parte do treinamento, precisávamos ter instruções sobre como embarcar e desembarcar da aeronave em segurança e, é claro, já que o rotor estava ligado... Por que não dar uma voltinha? Os pilotos, para nos darem ainda mais emoção, como se já não bastasse estar voando de helicóptero com as portas abertas num lugar tão lindo quanto aquele, ainda davam, com as aeronaves, mergulhos e rasantes no mar. Pura adrenalina!
Fizemos também turismo pela ilha durante nossas “horas de folga”. A região era especialmente bonita e aconchegante. Lugar preservado e longe dos tumultos e aflições da vida urbana. Sem poluição, trânsito, multidões ou insegurança. À noite, depois de passarmos pelo azimute 9, um barzinho da ilha, podíamos deitar nas alvas areias da praia e ver o esplendor da Via Láctea no céu, coisa impossível de se fazer nas grandes cidades devido à forte iluminação artificial e à poluição dessas áreas. Na ilha havia também as ruínas de um quilombo. Era lá que os escravos vindos da África passavam um período de quarentena antes de desembarcarem em terras continentais. O lugar havia sido restaurado e servia como centro de visitações. Estávamos também vivenciando parte das primeiras páginas da História do Brasil.
Voltando ao TPA, havia conosco, para a integração do pessoal em treinamento, dois psicólogos da Marinha, na verdade um psicólogo e uma psicóloga. Isso também fazia parte do Pré-Antártica, pois lá no gelo, estaríamos em ambiente de confinamento e o sucesso da missão também dependeria do bom clima entre as pessoas que estivessem “presas” na Estação. Além disso, havia grupos de militares que estavam em processo de seleção. O novo grupo da base militar que ficaria na Antártica durante todo o ano seguinte estava sendo escolhido durante o treinamento. As brincadeiras criadas pelos psicólogos para promover a integração das pessoas também foram um ponto alto da etapa da Marambaia. Se havia ali alguém que fosse tímido, deixou de ser naquele TPA. Apenas para citar uma dessas empolgantes atividades, nós todos estávamos divididos em três grandes grupos, o Alfa, o Bravo e o Charlie. Eu estava no Alfa. Em um belo dia, os psicólogos nos levaram a um galpão no interior do qual havia um quadrado perfeito de um metro de lado — ou seja, de área igual a 1 m² — pintado a giz no chão. Objetivo da tarefa, fazer com que todos os elementos do grupo ocupassem simultaneamente o interior do quadrado. Bem, éramos cerca de 30 pessoas por grupo. Depois de muito aperto — literalmente —, foi interessante comparar as estratégias empregadas pelas equipes. A nossa tentou fazer uma pirâmide humana, colocando os mais fortes por baixo e os mais leves por cima, por camadas. Conseguimos, com a cooperação e esforço de todos. A Bravo resolveu interpretar o texto do desafio, “todos no interior do quadrado”, mas ninguém disse nada sobre estar ou não de corpo inteiro lá dentro. Assim, todos colocaram apenas uma parte do corpo dentro do quadrado e também completaram a tarefa. Os integrantes da equipe Charlie fizeram algo parecido, porém, digamos, foram mais filosóficos. Disseram que todos eram um só — grupo — e que um só representaria todos. Deram-se bem! Não se apertaram, colocaram apenas um elemento, escolhido por voto, no interior do quadrado e também completaram a prova. Não havia vencedores nem vencidos, era apenas uma atividade de integração.
Para finalizar essa tarefa, os psicólogos nos contaram a parábola dos porcos-espinhos que me permito reproduzir aqui, pois acredito que resuma brilhantemente o que é a convivência num ambiente de confinamento. Vamos lá: “Num lugar muito distante e isolado havia uma comunidade de porcos-espinhos. Eles viviam felizes e contentes, até que um dia veio a Era Glacial e congelou a vila onde viviam. Os porcos-espinhos começaram a morrer de frio até que perceberam que se eles se agrupassem poderiam sobreviver compartilhando o calor de todos. E assim todos se agruparam e as mortes deixaram de ocorrer. Tudo ia bem até que os espinhos de uns começaram a cutucar outros... Incomodados com as espetadas, os porcos-espinhos resolveram se separar. Mas com isso, as mortes pelo frio voltaram a ocorrer. Os que sobraram decidiram então se reagrupar, entretanto, dessa vez, mantendo uma distância mínima, segura, do seu próximo: a distância da privacidade individual.” Cooperação mútua e união, respeitando-se a privacidade alheia, assim seria o convívio na Antártica, um lugar também inóspito e muito frio como a vila dos porcos-espinhos pós-advento da Era Glacial.
Bem, voltemos ao TPA. Após seis dias intensos em atividades físicas e psicológicas, houve um churrasco na noite do sábado — chegamos lá numa segunda-feira — com direito a fogueira de São João e tudo. Foi realmente tudo muito bom. E muitos, naquela noite, estavam se despedindo. Alguns retornariam para seus Estados natais, Brasil afora, em suas bases ou universidades. Outros continuariam o treinamento, mas agora em outro local, para a etapa de inverno. A Marambaia havia sido apenas a etapa do treinamento para o verão antártico. O reencontro se daria apenas no embarque da viagem rumo às Terras Austrais.
Os que foram para o Treinamento de Inverno, eu inclusive, compuseram um grupo agora já bastante reduzido em relação ao grupo inicial — aproximadamente metade — e tomaram um ônibus com destino ao Pico das Agulhas Negras, que está entre os 10 pontos culminantes do Brasil, fronteira entre Minas, Rio e São Paulo.
Em Resende começamos a subir o Pico. O ônibus nos deixou apenas na metade do caminho, não aguentou a subida. O restante do percurso, fizemos a pé. À medida que subíamos, a paisagem ia se alterando paulatinamente. A vegetação, antes densa e alta, ia ficando cada vez mais rara e rasteira, até que, praticamente em nosso destino final, desapareceu quase que por completo. Aquela visão era surreal, parecia que estávamos dentro da cratera de um vulcão. Só faltavam algumas labaredas brotando do solo para aquilo se parecer com O inferno de Dante. Tudo muito seco e cinza, apenas alguns arbustos aqui e ali, e mesmo assim, com aspecto seco. O terreno era todo rochoso e quando chegamos fazia um frio intenso, pois além de ser inverno, estávamos a quase 2.600 metros de altitude — o pico está a 2.792 metros.
Já próximo à base do pico havia uma pequena unidade da Marinha e do Exército, sede do Batalhão Toneleros, um batalhão de operações especiais dos fuzileiros navais. Naquela época — Agosto de 1994 — ainda não havia alojamentos especiais para os “antárticos” em treinamento, como há hoje. De modo que ficamos em algumas tendas militares, previamente montadas, que abrigavam cerca de 10 a 12 pessoas cada uma. Nossas camas? Pequenos e delgados colchonetes que desenrolávamos e estendíamos diretamente no chão, no interior da tenda. Pela lei de Murphy — aquela que enuncia que tudo que pode dar errado certamente dará —, havia a saliência de uma enorme pedra soterrada bem debaixo do estreito e limitado local onde eu deveria estender meu colchonete. Para completar o cenário dantesco, havia uma lagoinha, que todos os dias amanhecia com uma fina camada de gelo na superfície, próxima à construção onde ficava nossa cozinha. O helicóptero Esquilo, da Marinha, que também foi enviado para essa etapa de inverno, nas Agulhas Negras, também amanhecia “congelado” todas as manhãs.
Como estávamos quase no topo da montanha, muitas vezes uma nuvem ou outra nos engolia, dando um ar londrino à paisagem e aumentando ainda mais a sensação do frio cortante. Por falar em frio, adivinhem? Não havia banho quente, claro! Era angustiante tomar banho todos os dias. A “cerimônia” do banho — cerimônia porque só rezando entrávamos embaixo daquela água — acontecia logo após as atividades da tarde, antes do sol sumir. Os militares nos davam alguns bizus, como por exemplo, entrar urrando e concentrar-se em outra coisa, pois, diziam, o frio era psicológico... Bem, tenho que discordar, o frio é fisiológico e não psicológico, não houve como ignorá-lo por mais que eu tenha tentado. Mas aquilo serviu como pré-adaptação ao gelo polar, se bem que, nem na Antártica senti tanto frio quanto naqueles dias nas Agulhas Negras.
Passamos mais cinco dias no Batalhão Toneleros, essa foi a etapa de inverno do TPA. Durante o período iluminado, fazíamos treinamento de alpinismo, agora sim, em atividades mais emocionantes do que aquelas escaladas iniciais na Marambaia. Houve tirolesa, rapéis mais altos e emocionantes — de até 30 metros —, treinamento de resgate de feridos, e escaladas, propriamente ditas, na rocha. Um amigo meu, o Christiano, se acidentou num rapel e fraturou o calcanhar, ainda bem que não foi nada muito grave. Felizmente havia uma unidade médica lá em cima e ele foi medicado imediatamente, mas o treinamento de inverno acabou para ele naquele dia. Ele havia sido, até então, um grande companheiro de aventuras, pois havia algumas atividades que eram opcionais, como o rapel de 30 metros, e sempre éramos, nós dois, os voluntários.
Os dois últimos dias do TPA foram reservados para irmos até as prateleiras — uma formação rochosa bastante interessante — num dia e até o cume do pico das Agulhas Negras no outro. Fomos divididos em dois grupos, assim num dia um grupo ia até as prateleiras enquanto o outro ficava com o cume, e no dia seguinte a situação se inverteria. Eu estava no grupo que subiu até as prateleiras no primeiro dia. A subida não foi difícil, apenas um obstáculo ou outro mais complicado, mas nada que requeresse muita experiência em escaladas. Já o esplendor da visão que tivemos quando chegamos ao nosso destino não foi nem um pouco proporcional à dificuldade de se chegar lá. Aquilo foi maravilhoso, um mar de nuvens se estendeu a nossos pés quando chegamos às prateleiras. O tapete de nuvens parecia feito de algodão. Parecia que, se você se jogasse em direção a elas cairia em um imenso colchão macio. Naquele momento entendi perfeitamente como se sente um alpinista ao chegar ao cume de uma montanha. Aquela visão, aquele espetáculo, não tem preço. Não há palavras que exprimam o sentimento que nos tomou naquele momento, pois tudo aquilo foi inarrável. E isso porque eu ainda não sabia o que nos esperava no dia seguinte...
A subida ao cume do Pico das Agulhas Negras foi ainda mais emocionante. Nem todos do grupo chegaram lá. Houve um trecho em que precisamos aplicar algumas técnicas de escalada, como, por exemplo, fazer uma chaminé. Obviamente eu fui um dos voluntários. Sofri um pouco, mas valeu cada gota de suor derramado. Quando cheguei ao cume, com mais umas três pessoas do grupo científico, alguns alpinistas já estavam lá. O cenário foi desconcertante. Se das prateleiras já podíamos ver aquele enorme mar de nuvens, do cume percebemos que não havia nenhum ponto acima de onde estávamos. O horizonte se estendia ao longe e o resto do mundo abaixo de nós. Um dos alpinistas soltou um urro ensurdecedor, abrindo os braços. Foi uma reação em cadeia; todos os que estavam lá fizeram o mesmo. Terapia para quê? Aquilo era muito melhor. Depois de aproveitarmos o momento, único, de se estar naquele lugar maravilhoso, assinamos um livro que fica permanentemente no cume, protegido dentro de uma caixa de alumínio. Os que chegam lá têm o privilégio de poder assinar o livro e deixar uma mensagem. A minha está lá, e, só para aguçar a curiosidade do leitor, não vou reportá-la aqui. Quem um dia subir até o cume do Agulhas Negras, vá até a data 16 de agosto de 1994 e veja o que um então jovem estudante de física escreveu nas já amareladas linhas daquele simbólico livro.
Outro churrasco, desta vez na sexta-feira, encerrou também a etapa de inverno. Como dizem os alpinistas, a escalada não acaba no cume, mas no sopé da montanha novamente. A exemplo da nossa chegada, descemos um pedaço a pé e depois pegamos um ônibus que nos levou até a rodoviária de Itatiaia, no estado do Rio de Janeiro. Estávamos exaustos, porém realizados; aquele treinamento, por si só, já antecipava a aventura maior que estava por vir... A viagem à Terra do Gelo Eterno. Assim, voltamos para nossas casas naquele mês de agosto para, alguns meses depois, em janeiro, no verão, alguns de nós nos reencontrarmos de novo.
A viagem para a Antártica começou no Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador no Rio de Janeiro, num setor militar, o Correio Aéreo Nacional (CAN), isolado e distante dos terminais civis do Galeão. Uma viatura do INPE nos levou, na véspera, até um alojamento, o CEFAN da Marinha, onde passamos a noite. Quando, ainda de madrugada, chegamos ao CAN, pudemos ver, da viatura, a aeronave C-130, o Hércules, da FAB, estacionada ao lado do terminal do CAN.
O avião militar com pintura camuflada jazia imponente, iluminado pelas potentes lâmpadas da pista, pois ainda não havia amanhecido. Fomos deixados no terminal do CAN pelo motorista do INPE, que regressou na sequência a São José dos Campos. Encontramos algumas pessoas, na maioria militares, que já estavam lá também para o voo do Hércules.
À medida que as pessoas iam chegando, as histórias e estórias do TPA voltavam à tona. Como foi bom reencontrar o pessoal. Houve um briefing do voo, passado pelo capitão e sua equipe, para conhecermos as coordenadas das diversas “pernadas” da viagem de avião até a Antártica. A primeira pernada seria do Rio até Pelotas, com aproximadamente três horas de voo. Em Pelotas, receberíamos as vestimentas especiais para o ambiente antártico e, naquele dia, lá pernoitaríamos. Após o briefing, o embarque foi liberado e fomos, em fila, até o Hércules. Quando subi os pequenos degraus da escotilha dianteira de acesso, meu coração começou a bater mais forte. Era a primeira vez que eu entrava numa aeronave daquelas. Tudo estava temperado por um sabor de novidade e aventura. O interior do avião era escuro, mesmo com as lâmpadas internas ligadas. Parecia mesmo uma aeronave militar. Nenhum luxo. Fiações e encanamentos à mostra — imagino que para facilidade de acesso em caso de reparo. Afinal era uma aeronave militar e foi concebida para operar também em condições adversas.
Na parte anterior da aeronave os assentos estavam reservados para as autoridades convidadas — Ministros, Senadores, Deputados e Oficiais Generais das três forças — e para o pessoal da Marinha que fazia a coordenação do voo. Lá na frente também ficava a Tia Alice, uma senhora muito simpática que havia trabalhado na VARIG como comissária de bordo durante muitos anos e agora estava aposentada, trabalhando como voluntária nos voos que a FAB fazia para a Antártica. Tia Alice não perdia um voo para a Antártica, sempre ajudando na coordenação e gentilmente nos servindo os quitutes aéreos. Isso ajudava a minimizar o desconforto de um voo militar. Na parte central do Hércules ficavam os pesquisadores e demais pessoas que iriam permanecer na EACF, como as pessoas do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ) que constantemente vão à Antártica para realizar reparos e ampliação nas instalações da Estação.
Essa parte central da aeronave era dividida em duas subpartes longitudinais. Cada parte com duas fileiras de assentos tipo paraquedista, uma voltada para a outra. Nós, pesquisadores, chamávamos isso de efeito zíper, pois, para sentarmos, tínhamos que entrelaçar as pernas, uma sim, uma não, ou, caso contrário, não caberíamos lá. O espírito aventureiro já começava no voo. Finalmente, na parte traseira do avião, estavam as nossas caixas com equipamentos e as bagagens individuais. Lá também seriam colocadas as andainas, uns sacos compridos de tecido reforçado — enormes trouxas — para transporte das vestimentas especiais que pegaríamos em Pelotas.
O voo do Rio à Pelotas foi tranquilo. Nunca poderia imaginar que um avião aparentemente desengonçado daqueles tivesse tanta estabilidade. Não houve nenhuma turbulência e podíamos ouvir as quatro hélices dos turbo-propulsores roncando ferozmente, tanto que foram distribuídos protetores auriculares para os passageiros. Conversar dentro do Hércules em voo, somente se você estivesse muito próximo de seu interlocutor e ainda assim, a base de grito. Havia um banheiro, também nos fundos do avião, instalado em uma pequena cabine. Chegar até lá é que era um pouco difícil. Tínhamos literalmente que passar por cima de todo mundo, tomando cuidado para não pisar em ninguém.
Aproximadamente 2 horas e 40 minutos após a decolagem no Rio, estávamos pousando em Pelotas no Rio Grande do Sul. O aeroporto era pequeno, mas muito charmoso. Descemos do Hércules e, caminhando pela pista, alcançamos o terminal de passageiros do aeroporto. Ninguém resistiu ao impulso de tirar fotos do imponente Hércules, ainda com os motores ligados, imóvel, sobrepondo o horizonte. No terminal, uma equipe de apoio já nos aguardava. Eram da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG) — universidade que abrigava também a Estação de Apoio Antártico (ESANTAR), sediada na cidade de Rio Grande, um pouco ao sul de Pelotas. Era na ESANTAR que nossas vestimentas especiais ficavam. Quando chegava um voo da FAB para a Antártica, o pessoal da ESANTAR ia a Pelotas levando as andainas com as vestimentas para os tripulantes. Cada pesquisador ou participante da missão solicitava suas vestimentas a Brasília antes da viagem. Brasília enviava as solicitações à ESANTAR que preparava as andainas. Nossa responsabilidade naquele momento era receber a andaina e verificar se tudo estava OK. Assim o terminal virou um enorme trocador. Todo mundo provando as vestimentas especiais. Caso alguma peça não servisse, ainda teríamos a oportunidade de troca, lá mesmo no terminal, onde podíamos trocar peças com os outros participantes da missão, ou mais tarde, na visita que faríamos a Rio Grande para a ESANTAR e o Museu Antártico, que também fica naquela cidade.
Assim que todos terminaram a sessão de prova, tomamos um ônibus fretado que nos levou até o Hotel Manta. No Hotel fizemos o check-in e fomos liberados para o almoço. A ida a Rio Grande ficou marcada para as 14 horas. Fui almoçar com meus amigos do TPA. Não deu muito tempo para conhecer a cidade de Pelotas, pois todos iríamos para Rio Grande. Assim, almoçamos o famoso churrasco gaúcho e ainda, de sobremesa, não dispensamos os saborosos, e também muito famosos, doces pelotenses. Às 14 horas estávamos todos no lobby do hotel aguardando o embarque. O mesmo ônibus que nos trouxe do aeroporto nos levou a Rio Grande. A viagem por si só já foi interessante. Vimos a Lagoa dos Patos, enorme, no caminho.
Em Rio Grande, conhecemos o Museu Antártico e o Museu Oceanográfico — ambos ficam juntos, nas mesmas instalações. Passeio interessante, especialmente para quem se interessa por biologia marinha e coisas relacionadas ao mar. O Museu Antártico, por sua vez, é um museu construído em contêineres, exatamente da mesma forma como foi originalmente construída a nossa Estação Antártica. Dentro dos contêineres, painéis explicativos e objetos vindos da EACF, contando a história da Estação e explicando a geografia e a biologia da região.
Na sequência, o ônibus nos levou até o campus principal da FURG, onde se localizava a ESANTAR. Lá pudemos ter uma noção do tamanho do programa antártico brasileiro. Eram instalações que abrigavam todo nosso material antártico, desde as vestimentas especiais, passando pelo material de alpinismo até veículos polares. Todos os corredores decorados com fotografias premiadas da região antártica. As autoridades que estavam no voo puderam ver com seus próprios olhos como estava sendo utilizada a verba que eles mesmos votavam e aprovavam em Brasília. Quem precisou fazer alguma troca de material aproveitou a oportunidade.
No final da tarde, o corpo já mostrava sinais de cansaço, apesar da mente ainda estar afiada com tanto estímulo gerado por tantas novidades. Voltamos, com o crepúsculo, para Pelotas. No início da noite, o grupo se reuniu na tradicional Churrascaria Lobão para um jantar de confraternização. Retornando ao hotel, fomos instruídos a fechar a conta à noite mesmo, pois sairíamos muito cedo no dia seguinte. Quando me recostei à noite na cama do hotel, me sentia cansado, mas incrivelmente leve e feliz. Aquela viagem maravilhosa estava sendo uma terapia, e isso porque eu ainda nem podia imaginar o que viria a seguir...
Às 05h30 da manhã o café começou a ser servido. O mezanino do hotel, no primeiro andar, abrigava a área do café, depois do deck da piscina. O café continental foi revigorante, muitas frutas tropicais e sucos frescos. Como não sabíamos o que nos aguardaria nos próximos meses confinados na Terra do Gelo, saboreamos aquelas frutas como iguarias inestimáveis. Afinal, aquele seria nosso último café ainda em terras brasileiras.
Às 8 horas em ponto, o Hércules C130 levantava voo no aeroporto de Pelotas. Essa seria a pernada mais longa de toda viagem. Cerca de 6 horas de voo até a aterrissagem em Punta Arena, Chile, no estreito de Magalhães, literalmente no fim do mundo. Como não havia muito que fazer durante o voo, as pessoas tentavam dormir, ouviam música ou liam algum livro. Eu fui procurar uma pequena escotilha perto das malas e das andainas para ver a paisagem lá embaixo. O Hércules sobrevoou a costa argentina durante quase toda a viagem. E eventualmente podíamos ver alguma cidade lá embaixo.
Às 13 horas aterrissamos em Punta Arenas. Nunca estive em uma cidade onde o vento soprasse tão forte. Era verão no hemisfério sul, entretanto em Punta Arenas o frio era uma constante. Lá, nessa época do ano a temperatura média é de cerca de 10°C. Ao desembarcarmos na pista, já trajados como viajantes antárticos, com nossas vestimentas especiais, que por sinal nos identificavam, pois tinham a bandeira brasileira bordada num dos ombros do casaco, nos sentíamos como verdadeiros viajantes do fim do mundo. O vento era tão forte que precisou de algum tempo para que nossos cérebros se acostumassem com a nova situação de equilíbrio. Outro efeito dessa ventania toda foi a eletrostática. Com os cabelos esvoaçantes, adquiríamos rapidamente carga elétrica, e bastava tocar em alguém, ou em algo metálico, para surgirem faíscas de descarga. Esse fenômeno se deve a alta latitude da localidade onde estávamos. O Sol aquece mais eficientemente as regiões tropicais — entre os trópicos de Câncer e Capricórnio —, o que provoca, nessas regiões, uma zona de baixa pressão que “puxa” massas de ar de regiões de maiores latitudes — maior pressão —, criando os ventos. Após os entraves burocráticos, afinal estávamos em solo estrangeiro agora, fomos liberados para seguir para os hotéis. E, por falar em burocracia, em 1995 ainda havia alguns resquícios, no Chile, da Era Pinochet, e fotos na pista do aeroporto não eram permitidas. Assim só pudemos começar as disparar os “cliques” já no ônibus que nos levou até o centro de Punta Arenas.
A viagem até o hotel foi um espetáculo a parte. Margeamos o tempo todo o estreito de Magalhães, que liga os oceanos Atlântico e Pacífico. De estreito não tinha nada. De onde estávamos, podíamos sim avistar o outro lado, mas muito ao longe — e depois eu descobri que sua travessia leva de 3 a 5 horas, dependendo da correnteza. Tia Alice fez as vezes de guia turístico e, no microfone do ônibus, foi nos contando fatos históricos, geográficos e pitorescos da cidade. Como a história de Sara Brown, uma ilustre e rica mecenas da cidade, que financiou a construção de um cemitério sob a condição de que seu enterro fosse o último a passar pelos portões do cemitério. Após seu enterro, para satisfazer seu desejo, os portões do cemitério foram lacrados, entretanto, novos portões laterais foram construídos, e assim o cemitério continuou a ser usado e visitado, aliás, local muito agradável, arborizado e sereno.
Fiquei num hostal, o Calafate, que ficava bem no centro de Punta Arenas, em frente à mansão que fora a morada de Sara Brown e hoje abriga um museu. Calafate é o nome de um arbusto que nasce na região que produz uma fruta da qual se fazem doces e geleias. Dizem os chilenos que comer um Calafate em Punta Arenas atrai boa sorte. Aliás, existe outra famosa crendice local, a do pé do índio da praça. Bem próximo ao nosso hostal, havia a bonita praça central da cidade. No centro dessa praça há um monumento em homenagem a Fernão de Magalhães, o navegador português que foi o primeiro europeu a passar por aquelas bandas, em busca do tão sonhado canal que ligaria os dois oceanos. Em baixo da estátua em bronze de Magalhães, existe um índio sentado como o pé projetado para fora do pedestal. O dedão do pé do índio está reluzente de tanto as pessoas passarem a mão nele. É que, reza a lenda que, quem passar a mão no pé do índio, certamente voltará a Punta Arenas. Todos os antárticos seguem o ritual. Na ida, para poderem regressar, e na volta, para poderem participar de outra missão e, portanto, retornarem a Punta Arenas.
Depois de fazermos o check-in no hostal, estávamos liberados. O embarque para a Antártica aconteceria apenas no dia seguinte. Os militares precisavam fazer as últimas modificações e verificações na aeronave e consultar a meteorologia para saberem se seria viável uma tentativa de pouso na Antártica no dia seguinte. Enquanto isso, estávamos livres para passear pelo local. Fomos ao mirante, não muito longe do hostal, de onde pudemos ver a cidade emoldurada numa só visão. Punta Arenas é também conhecida como a cidade dos telhados coloridos; a visão que tínhamos do mirante justificava a fama. O Chile, que sempre foi uma das melhores economias da América Latina, tem cidades apaixonantes. Punta Arenas era uma delas. A cidade era extremamente charmosa e acolhedora. As pessoas locais também. O frio fazia com que todos os ambientes fossem acolhedores. Desde um simples barzinho até o Shopping Center. E por falar em compras, outro local muito visitado pelos brasileiros na cidade é a Zona Franca.
Punta Arenas sempre foi um importante porto chileno, por se situar num estreito que une dois grandes oceanos. Antes da construção do canal do Panamá, era a única rota marítima que ligava as duas costas americanas. Ainda hoje, continua sendo um importante porto para o Chile e para os demais países da América do Sul. A Zona Franca fica perto do porto. Pode-se chegar até lá de táxi, ônibus ou com as famosas lotações. As lotações são carros — como táxis — que fazem itinerários fixos; se há vaga, o motorista para nos pontos, como se fosse um ônibus. Como as vagas se esgotam rapidamente, o motorista segue viagem sem parar até que algum passageiro desça. Isso faz das lotações um transporte muito mais ágil do que os ônibus, e muito barato também, custava cerca de 1 real por passageiro. A Zona Franca, à época, era um paraíso para as compras. O real estava forte — em paridade com o dólar — e por ser uma Zona Franca, os produtos eram mais baratos pela ausência de impostos de aduana. Ainda hoje continua sendo uma tentação passar por lá.
Outra característica do Chile são os bons e baratos restaurantes. Saímos naquela noite para comer salmão fresco. Jantamos no restaurante do Hotel Savoy, local onde sempre fica a tripulação militar de nossa aeronave. Os pratos são muito bem servidos, mais do que suficientes para uma pessoa, e saborosos. Recomendo também a centolla, um caranguejo gigante de águas profundas e de carne tenra, o loco, uma espécie de lesma, e o côngrio, um peixe típico das águas daquela região. Alguns pediram, para beber, pisco chileno, um destilado de uva, parecido com nossa cachaça, mas de sabor distinto e muito bom. Outros foram de vinho, entre eles eu. Afinal os vinhos chilenos são os melhores da América do Sul e, no Chile, são nacionais e, portanto, baratos. Depois desse deleite gastronômico regado a muitas conversas sobre como seriam nossos próximos dias nas terras do gelo, retornamos às nossas “habitações”.
Na manhã seguinte — novamente — bem cedo, estávamos todos preparados e trajados já para o desembarque na Antártica, que exigiria ainda mais rigor quanto às camadas de roupas por sob o pesado casaco da ESANTAR. Infelizmente a meteorologia não permitiu o vôo naquele dia. Uma frente fria levou muito nevoeiro e fortíssimos ventos para a região da aterrissagem. Como a operação de pouso na Antártica é considerada uma operação de risco, as condições meteorológicas devem ser as melhores possíveis para permitir o toque da aeronave no “solo”. Às vezes, em face da previsão de uma possível janela de tempo bom, o vôo é realizado sob o risco de o Hércules retornar sem ter pousado. Naquela minha primeira missão, ficamos sete dias em Punta Arenas antes de o tempo melhorar na região da Península Antártica. Nossa Estação fica numa ilha chamada Ilha Rei George, na Shetland do Sul, Península Antártica, e o local da aterrissagem fica ao sul da ilha, numa base área chilena na Antártica, chamada de Base Presidente Eduardo Frei Montalva — ou simplesmente “Frei”.
Depois de uma semana conhecendo todos os pontos turísticos do estreito de Magalhães, como pinguineiras e navios naufragados, e até termos atravessado o estreito para a Terra do Fogo, estávamos ansiosos para irmos à Antártica; até que, na manhã no oitavo dia, aconteceu. O tempo havia melhorado na Ilha Rei George e as possibilidades de sucesso no pouso eram muito boas. Foi assim que às 7 horas daquela fria manhã, finalmente decolamos rumo ao gelo eterno. A travessia do Estreito de Drake, o braço de mar que separa a Terra do Fogo da Antártica, uma das regiões de mais difícil navegação do planeta, durou cerca de 3 horas pelo ar. Quem vai por mar passa por maus bocados. Amigos meus, que fizeram essa travessia com navio, disseram que a embarcação adernar mais de 20 graus é comum, chegando a adernar até 45 graus numa tempestade, quase no limite do naufrágio. Nosso navio mesmo — o Ary Rongel — teve laboratórios a bordo destruídos algumas vezes por conta de mares agitados.
Após três angustiantes horas, nas quais ainda não tínhamos certeza absoluta se conseguiríamos pousar, finalmente a sirene interna do Hércules toca. Isso significava que deveríamos apertar os cintos. Senti a respiração funda de todos a bordo. Podíamos sentir a ponta da aeronave apontar para baixo, fazia um frio intenso lá dentro, pois, para acelerar nossa adaptação, a cabina não havia sido climatizada. Sentíamos sucessivos frios na barriga, que depois eu vim a descobrir que faziam parte do procedimento de pouso na Antártica, o chamado crash controlado, ou seja, queda controlada. Como o avião não pode correr muito na gélida pista, que se estende num platô limitado por dois penhascos, o piloto deixa a aeronave em pequenos intervalos de queda livre — por isso o frio na barriga —, assim quando acontece o toque na pista, o Hércules precisa correr não mais do que 100 metros para parar. Foi o que ocorreu, tão logo sentimos o toque, dessa vez muito mais violento, bastaram mais alguns poucos instantes e o avião parou de correr e começou a taxiar ao som das palmas de todos. Estávamos oficialmente no Continente Branco!
Minutos depois, a parte traseira da aeronave começou a se abrir lentamente. O mecanismo hidráulico fazia um ruído característico e, aos poucos, a nossa primeira visão da Antártica se descortinava pela abertura na cauda do avião. O frio era intenso e o vento ainda mais forte do que o de Punta Arenas. Quando o desembarque foi liberado as pessoas começaram a sair, maravilhadas, do Hércules. Cheguei à escotilha principal e fiquei em pé, no alto da escada olhando o que havia lá fora. Por uns instantes achei que o frio intenso havia congelado o tempo. Tudo parecia em câmera lenta. O branco da neve refletia intensamente a luz dos dias eternos do verão antártico. Sentia-me como um astronauta que acaba de chegar a um planeta diferente. Aquele instante não deve ter durado mais do que três segundos, mas parece-me que durou muito mais. Talvez pela quantidade enorme de novas informações que estava recebendo e interpretando. Não sei. Somente uma única vez na vida, antes daquela, tive sensação semelhante, quando caí de uma ponte, de bicicleta, na casa de minha avó. A queda durou uma fração de segundo, pois a ponte não era muito alta, mas, para mim, parece que durou uma eternidade. Pude ver tudo ao meu redor e perceber, como se fosse em câmera lenta, as ondulações da água que se aproximava. Naquele primeiro vislumbre da Antártica a sensação se repetiu.
O que aconteceu depois foi o oposto. Como se alguém tivesse, do slow motion, apertado a tecla fast advance. Uma correria. Queríamos tirar mais fotos, mas fomos rapidamente direcionados ao hangar. Lá nossos amigos e companheiros de projeto, que seriam rendidos por nós em suas funções, estavam nos aguardando. Tivemos poucos minutos para conversar com eles, para que recebêssemos as diretivas de como estavam os experimentos que iríamos assumir. Logo depois, fomos direcionados até a praia, onde trajamos os famosos mustangs laranjas — as roupas de astronauta da Marambaia — para sermos levados de bote até o navio de apoio oceanográfico Ary Rongel, que já nos aguardava na baía de Maxwell, em frente à base Frei. Enquanto isso, os helicópteros esquilo do navio — o Ary Rongel tem duas aeronaves dessas — iam e vinham, levando as autoridades convidadas para a EACF que estava a cerca de 30 minutos de voo, de Frei. Enquanto aguardávamos, de mustang, o bote na praia de Frei, vimos nossos primeiros pinguins. O frio era intenso e nossos movimentos limitados pelo mustang, mas mesmo assim seguimos os “bichanos”, a certa distância, gastando vários rolos de filmes em fotos. Não estávamos ainda na era das máquinas digitais e os filmes eram uma limitação forte à quantidade de fotos que poderíamos tirar, afinal, não havia shoppings na Antártica. Mesmo assim, o primeiro pinguim a gente nunca esquece.
A viagem de bote foi uma aventura, os ventos na Antártica eram ainda mais fortes do que os de Punta Arenas. Isso fazia com que o mar ficasse crespo, cheio de carneirinhos, como os marinheiros chamavam a ondinhas que se formavam na superfície. Nós, vestidos com o mustang, quase não podíamos nos mover, devido ao frio e as múltiplas camadas de roupas, e o barco galopando como se fosse um cavalo rebelde. Entretanto, a paisagem era deslumbrante. Tudo coberto por neve, apenas aqui e ali uma porção de solo rochoso desnudo. Isso porque estávamos em pleno verão. A ilha Rei George é recoberta por geleiras e menos de 10% de sua superfície fica exposta no verão, os outros 90% ficam permanentemente sob o gelo eterno. Naquele dia fazia -2°C, mas a sensação térmica era de -15°C, devido aos fortes ventos. Chegamos à popa do navio e pude perceber que o nosso Ary, que ao longe parecia pequeno, não era tão pequeno assim. Havia uma escadinha de corda, que pendia da parte de trás do navio, que deveríamos escalar. Devia ter uns 5 metros de altura, mas estávamos com aquela roupa de astronauta e luvas e, além disso, portávamos nossa bagagem de mão e notebooks. Fiquei um pouco receoso com aquela subida, já imaginando como seria cair naquelas águas congelantes que estavam a zero grau. Mas tudo deu certo. Fomos ajudados pelos militares a bordo e subimos sãos e salvos até o deck.
O Ary Rongel estava, na época, em sua primeira missão antártica, a XIII Expedição Brasileira à Antártica, substituindo o histórico e recém-aposentado, Barão de Teffé, que foi o nosso primeiro navio polar. Ele havia sido construído na Noruega em 1981 e batizado como Polar Queen, porém, depois de ter sido comprado pela marinha, passou a se chamar Ary Rongel, em homenagem a um almirante brasileiro que navegara pela região do estreito de Magalhães. A bordo do Ary, fomos para a Praça D´Armas, local de refeições e lazer dos oficiais. Passamos por vários porões e compartimentos e pensei se saberia refazer aquele caminho, que mais parecia um labirinto, quando precisasse. Já na Praça D´Armas, pudemos nos reaquecer e saborear uma deliciosa refeição, preparada para nós, que já estávamos famintos. Comida brasileira, com gostinho de Brasil, em plena Antártica. Os pesquisadores que iriam ficar em definitivo no navio foram para seus camarotes descansar. O restante de nós, que não teria camarote, pois ficaria em terra — ou melhor, em gelo —, saiu para excursionar o navio. Fomos até a ponte de comando, ou passadiço, como chamam o militares, para acompanhar as manobras. Naquele momento, todos os pesquisadores já haviam embarcado e estava sendo efetuado o embarque da carga. As manobras seguiam em ritmo acelerado. Todas as autoridades já estavam em Ferraz, e por lá ficariam apenas algumas horas, pois o Hércules precisava decolar e retornar a Punta Arenas.
Umas três horas depois da aterrissagem, todas as manobras com o navio haviam sido concluídas e as autoridades visitantes estavam retornando para Frei, para que o Hércules pudesse retornar ao Chile. Tão logo o C 130 decolou, o navio começou a navegar rumo a Ferraz. Estávamos a seis horas de mar de nosso destino final e a expectativa era grande para conhecermos o local onde passaríamos os próximos 45 dias. Durante a pernada de navio de Frei a Ferraz, fiquei um bom tempo no convés, observando aquela paisagem quase alienígena. Apesar do frio, literalmente congelante, a visão era hipnótica. Não conseguia sair dali. Via os growlers, os pequenos pedaços de gelo no mar, passando pelo casco do navio. Até que ele surgiu, imponente, majestoso, monumental... Um enorme iceberg apareceu ao longe, e, mesmo ao longe, monumental. À medida que nos aproximávamos daquele paredão branco, ele parecia cada vez mais majestoso. Quando estávamos bem perto, pudemos ver que, do outro lado ele tinha uma espécie de túnel, dentro do qual caberiam embarcações inteiras. Na entrada do túnel, havia piscinas de gelo com fundo bem azul. Aliás, o azul era a segunda cor, depois do branco, mais predominante naquelas paisagens. O gelo das geleiras era azulado ao longe, efeito da difração da luz pelo já bem compactado gelo velho da base dos glaciares. Estávamos dentro de um enorme freezer, em pleno verão austral. Tudo era gelo, rocha, mar e céu. Não havia uma vegetação, nada. A única coisa verde que veríamos seriam os liquens e musgos antárticos, que em algumas áreas forravam o solo como verdadeiros tapetes verdes. Fomos para mar aberto, e de lá seguimos para a baía do Almirantado, onde fica nossa Estação.
Algumas horas depois de termos zarpado, adentrávamos a Baía do Almirantado, que, apesar de ser menor do que a Baía da Guanabara no Rio, em superfície, possui profundidades até 10 vezes maiores. Em alguns pontos da Baía do Almirantado, a profundidade chega a 650 metros. A Ilha Rei George é uma ilha vulcânica, uma gigantesca montanha submarina com o cume emerso.
À medida que o navio avançava pela Baía do Almirantado, nossa ansiedade também crescia, até que alguém anunciou que a Estação Comandante Ferraz já era visível ao fundo. Bem no final da Baía do Almirantado, existe uma pequena península, em forma de língua, a península Keller, onde fica a nossa Estação. Rodeada por grandes geleiras, a Keller apresentava, no verão, quase toda a superfície descoberta. Local estratégico para a instalação de uma Estação. Coisa que os ingleses muito bem sabiam, pois havia sido eles quem primeiro se estabeleceram na Keller. Colada à nossa Estação, estava a Base G, inglesa, uma antiga Estação Baleeira, que depois se transformara em Estação Científica até ser abandonada. Quando os brasileiros chegaram, no início dos anos 80, a Base G já fazia muito que estava desocupada, mas ainda jazia, quase que intocada, coroando a destreza da engenharia inglesa. Hoje a Base G não existe mais, ela foi desmontada anos depois dessa minha primeira missão antártica, e parte da madeira da base foi reaproveitada em obras de nossa Estação. Mas em 1995, ela ainda estava lá, imponente.
Voltando ao Ary, por binóculo já conseguíamos avistar Ferraz. Nesse momento, o convés do navio lotou. Nenhum dos pesquisadores novatos, antárticos de primeira viagem, queria perder o espetáculo da chegada. O Ary, gigante vermelho, se aproximava da verde-alaranjada Comandante Ferraz. O matiz de cores de nossa Estação contrastava com o branco do gelo e neve. Minutos antes de atracarmos em frente à Ferraz, algo incrível aconteceu: começou a nevar. Enormes flocos de neve começaram a cair e o vento deu uma trégua como que, em uma combinação da natureza, para saudar nossa chegada. A água cristalina do mar ao nosso redor e os pedaços de gelo flutuando, coalhando o oceano em nosso entorno, causam sensações inesquecíveis. Aquela neve caindo, unida ao silêncio que se fez com o cessar dos fortes ventos, me deu uma sensação de muita paz. Foi então que percebi que já era meia noite, mas não havia nada no céu que indicasse isso, a luminosidade não havia diminuído perceptivelmente. Ainda assim, Ferraz acendera as luzes de identificação e, ao longe, pudemos perceber que uma embarcação deixava a praia da Estação, repleta de gelo, e vinha em nossa direção. Era a lancha Skua, que estava vindo nos transportar para o nosso lar dos próximos 45 dias. Foi assim que eu cheguei à Antártica, na Estação Brasileira Comandante Ferraz. E aqueles 45 dias foram alguns dos melhores dias de toda a minha vida. As aventuras que por lá passei, as pesquisas que lá realizamos e o cotidiano de pesquisador em campo, no gelo, eu deixo para outra história... Mas saiba leitor que aprendi muito lá, não apenas no aspecto técnico e científico, mas principalmente no humano.
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José Henrique Fernandez
Formado em 1995, pelo Instituto de Física da Universidade São Paulo, é bacharel em Física com especialização em Pesquisa Básica em Física. Mestre em Geofísica Espacial pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais em 1997, e Doutor, também em Geofísica Espacial, em 2002, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais com especialização na Stanford University (EUA), no STAR-LAB. Suas pesquisas de mestrado e doutorado focaram-se no fenômeno de precipitação de elétrons da magnetosfera para a alta atmosfera terrestre induzida por relâmpagos — Lightning Electron Precipitation (LEP) — e em sua associação com a atividade geomagnética. Como continuidade de suas pesquisas no doutorado, realizou pós-doutoramento no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais iniciando novo modelo teórico sobre os mecanismos de equilíbrio dos cinturões de radiação de Van Allen, inserindo os eventos LEP como importante mecanismo de perda de população de elétrons dos cinturões e introduzindo o fenômeno como ferramenta de diagnóstico dos regimes do clima geoespacial. Continua participando de cooperações internacionais com a Stanford University e participou de diversas expedições científicas à Antártica. Atualmente é Professor-Assistente Doutor da Universidade de Taubaté (UNITAU) e membro da equipe de pesquisadores do grupo MagTer também da UNITAU.
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