Uma certa função dos universais

Reinaldo Sampaio Pereira


Você já se questionou sobre como é possível a aquisição e a transmissão do conhecimento? Sobre quais as condições necessárias para podermos adquirir e transmitir conhecimento? Por que conseguimos transmitir certo tipo de conhecimento e os animais irracionais não? Atribuir à razão o que nos possibilita adquirir e transmitir conhecimento parece consistir em boa estratégia para responder tais questões, pois apresenta a faculdade em muito responsável pela aquisição e transmissão do conhecimento. Mas essa resposta parece insuficiente para quem espera saber como opera essa faculdade, de modo a nos possibilitar certo tipo de operação que não é própria aos animais irracionais. A Filosofia possui uma disciplina, a Teoria do Conhecimento, que examina, de múltiplas perspectivas, em discussões bastante complexas, o problema sobre como é possível conhecer.

Atentemos para um dos elementos de uma das muitas explicações da Teoria do Conhecimento sobre o problema de como opera a razão na aquisição e transmissão do conhecimento: os universais. Tendo-os em mira, levantemos alguns poucos questionamentos para sugerirmos uma certa insuficiência da linguagem (seja ela escrita, oral, corporal, gestual, etc) na aquisição e transmissão do conhecimento. Para tal, partamos do princípio que não nos parece exagerado afirmar que o que, em grande medida, possibilita o conhecimento são os universais. Mas em que eles consistem e como eles podem engendrar a possibilidade do conhecimento?

Estamos aqui considerando universal o que se opõe ao particular. Por exemplo: um certo cachorro, o Rex do João, é um particular. A ideia de cachorro, um universal. Um certo homem, João, morador da rua ‘x’ e da cidade ‘y’, é um particular. A ideia de homem, um universal. O particular faz referência a um indivíduo, seja ele um homem, um cachorro ou uma cadeira. O universal faz referência a uma ideia que abarca uma multiplicidade de indivíduos que participam desta ideia. A ideia de homem, por exemplo, abarca a multiplicidade de indivíduos que dela participam, como João, Pedro, Antônio, etc.

Visto rapidamente em que consiste um universal, questionemos: será possível formular e transmitir proposições significativas sem fazer uso de universais, recorrendo apenas a particulares? Formulações simples e banais, como ‘a mesa é azul’, são construídas com universais. Mesmo em inúmeras formulações em que se predica de particulares o predicado é um universal, como quando afirmamos que Rex é um cachorro. Sendo assim, os universais parece serem, em muito, condições necessárias para conseguirmos formular e transmitir proposições significativas acerca das coisas, seja quando predicamos de um particular (como na proposição ‘Rex é um cachorro’) seja quando predicamos de um universal (como quando afirmamos ‘a mesa é azul’).

Observemos que na comunicação entre duas ou mais pessoas, seja ela oral, escrita ou por quaisquer sinais, o que é transmitido do emissor ao receptor não são objetos, sensações ou sentimentos, mas símbolos que representam os objetos, sensações e sentimentos. Notemos que esses símbolos podem se reportar a particulares ou a universais. Se dissermos a outra pessoa que existe um João de RG número ‘x’, se essa pessoa não conhecer este João, nada ela poderá saber sobre as particularidades de João. Nada o receptor saberá sobre as particularidades que diferencia o João de RG ‘x’ do José ou do Antônio. Para fazermos com que o receptor comece a perceber as características do João de RG ‘x’ é preciso que prediquemos de tal João, que especifiquemos atributos que lhe são próprios e que ajudem o receptor a começar a formar uma certa ideia de como é tal João, dos atributos que o particularizam.

Como não transmitimos coisas, sensações ou sentimentos aos nossos interlocutores, é preciso que codifiquemos o que pretendemos transmitir ao receptor (nosso interlocutor), para que ele consiga se aproximar da ideia que estamos querendo transmitir a ele. Deste modo, uma primeira condição para instaurar o processo de comunicação, de transmissão de informação, é a transformação do objeto em símbolos (que remetem ao objeto), isto é, faz-se necessário codificar, de certo modo, o objeto.

Tendo sido o objeto codificado, então ele, enquanto uma certa ideia, está apto a ser transmitido ao receptor. Mas, para que haja a comunicação com o interlocutor a partir dessa transmissão, é forçoso que o receptor consiga decodificar os símbolos codificados pelo transmissor (conseguindo identificar os objetos aos quais se reportam os símbolos), compreendendo minimamente a informação passada. Para que seja possível essa codificação e posterior decodificação (portanto a transmissão do conhecimento), tanto o emissor quanto o receptor devem se valer das mesmas regras, dos mesmos códigos. Se as regras ou os códigos não forem os mesmos para ambos, a comunicação se torna deficiente ou até mesmo fica impossibilitada. Isso é facilmente perceptível quando duas pessoas tentam se comunicar quando uma não compreende a língua da outra. Nesse exemplo, a comunicação (se os códigos são radicalmente distintos, sem qualquer conhecimento de ambas em relação ao código da outra) se torna impossível. Mas, diante de tal dificuldade, se o emissor gesticula (isto é, codifica o objeto em certos símbolos, em gestos) e o receptor entende o código, conseguindo decodificar os símbolos (os gestos) transmitidos, a comunicação é instaurada.

Muito do que codificamos para podermos nos fazer entender são universais, ainda que para predicar de um particular. Se os particulares exigem os universais mesmo na formulação de proposições que especificam características próprias a eles (os particulares), como será possível plena compreensão de formulações como ‘João é alto’, ou então ‘Maria está amando’, ou ‘Pedro é um menino’, se alto, amor e menino são universais e, portanto, podem ser atribuídos a uma multiplicidade de particulares abarcados pela ideia de alto, amor e menino (há vários tipos de altitude, de amor, de menino)? Que precisões possuem as informações transmitidas nessas proposições e, sobretudo, que imprecisões elas possuem?

Se, por exemplo, Maria diz que está amando, sabemos, a partir dessa informação, que ela está nutrindo certo tipo de sentimento que é distinto de vários outros, e podemos ter certa compreensão de algumas sensações e comportamentos que podem acompanhar o seu sentimento de amor. Mas será que temos como saber o que Maria está sentindo quando ela se vale do universal ‘amor’ para se reportar ao seu sentimento? Será que o que Maria (com os seus sentimentos e sensações particulares) está sentindo ao dizer que está amando é o mesmo que sentem João, Pedro ou Antônia, quando dizem que estão amando? Será que esse universal ‘amor’ permite precisa compreensão do sentimento particular de cada um que está amando? Que compreensão nos é permitida e qual nos é vedada quando Maria diz que está amando ou então quando dizemos que Pedro é um menino? Em que medida os universais que, por um lado, são necessários para a transmissão do conhecimento, possibilita a aproximação do objeto a ser conhecido? Não seria a linguagem, que necessita recorrer aos universais, em muito, insuficiente para a transmissão com precisão de uma boa quantidade de informações?

É evidente que o problema, de uma certa perspectiva, vai sendo amenizado na medida em que outros universais vão sendo predicados do objeto a ser conhecido. No exemplo supramencionado, Maria poderia oferecer outros universais para tentar descrever o sentimento de amor que ela está sentindo. Mas será possível a Maria transmitir ao receptor exatamente o que significa para ela (considerando hipoteticamente que ela saiba, de fato, exatamente tal significado) a afirmação que ela está amando? Será possível a Maria (por mais que o seu discurso seja longo, repleto de universais) oferecer ao interlocutor com precisão o que ela está sentindo quando diz que está amando? Será que a linguagem permite tal precisão?

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