Solstício na Inglaterra
Queria viver pelos cinco cantos do mundo.
O conforto para os olhos e para a mente, a sabedoria colocada em prática e tudo o que todos falam. Nada disso descreveria o grande prazer de sentir novas atmosferas. Andar e percorrer caminhos em fila indiana, em procissão. Seria o caminho a Santiago? Essa peregrinação ao mais profundo do autoconhecimento. Descobrir os diversos seres e matérias existentes seria uma viagem de quilômetros e mais quilômetros dentro de nossa desconhecida alma.
Às 3 horas o relógio despertou, anunciando que a viagem deveria começar. Enquanto seguia pela estrada, tive a sensação de que ainda estava dormindo. Ainda não sei como peguei a mochila e tudo o que precisava para registrar aquela aventura, sabia apenas que estava a caminho e que nada havia sido esquecido. A viagem foi longa, e a ansiedade tomava conta do meu corpo, que começava a despertar. É imensurável a grande visão e transposição da alma, tão surreal quanto pedras, de mais de quarenta toneladas, colocadas, em formato de círculos, umas sobre as outras. Em que acreditariam os celtas, e seus sacerdotes druidas, ao construir tão grandiosa perfeição, há mais de 3 mil anos? O que eles queriam? Seria tudo aquilo um monumento religioso? Seria, aquelas pedras, um grande calendário? Ou seria tudo, apenas ruínas de algo ainda maior?
Tocar naquelas pedras era tudo o que nós, eu, e milhares de pessoas, de diferentes lugares, grupos, religiões e tribos, queríamos naquele 21 de junho de 2006. Uma única vez por ano pode-se entrar e ficar mais perto do que se imagina das pedras, o monumental Stonehenge — para ser mais preciso —, que fica a cerca de 60 quilômetros da capital inglesa. O monumento está localizado em uma região longe de tudo. No meio do nada. É preciso caminhar quilômetros até chegar ao maior sítio arqueológico do mundo.
Viajando na própria “viagem” do local, o maior desespero da mente era olhar as pessoas que ali estavam. Eram seres estranhos que me faziam questionar: Que tribo é essa? Parecia um baile à fantasia, com pessoas de todas as tribos numa única sintonia e, todos, à espera de um milagre. Era difícil acreditar que veríamos o sol nascendo, como num eclipse, no meio da pedra principal. De dentro do círculo a visão seria nítida, e era isso o que aumentava a probabilidade de que aquilo tudo fosse um grande calendário. Seria sim, um grande instrumento astronômico. Mas o céu, cinza, dizia não ao que seria o eclipse das pedras com o sol. Instantaneamente deixei de olhar o céu e comecei a olhar as pessoas. Parei de pensar e comecei a sentir uma nova atmosfera, em que bruxas, deuses, magos e artistas dividiam o mesmo espaço. Muitas pessoas, cansadas, já estavam sentadas nos arredores das pedras. Outras, deitadas. E muitas, já no caminho contrário. Algumas se amontoavam dentro do círculo de pedras, e, do lado de fora, um grupo de vinte ou mais hare krishnas tocavam mantras. Eram tambores, chocalhos, cajados e adornos de um mundo de faz de conta. A multidão de pessoas, conversado umas com as outras, era diferente de tudo que já vi. Parecia que elas tinham todo o tempo do mundo para estarem ali. Senti-me o único a correr contra o tempo, mas logo fui entrando no jogo e, ao sentar no gramado, relaxei. Era gritante a miscelânea de idiomas que ecoavam naquele templo a céu aberto. Parecia que cada grupo falava um dialeto; as palavras se confundiam, e esse som, ali produzido, refletia cada passo que era dado na grama ao redor de nosso grupo.
Meus olhos pareciam ainda cansados da noite pequena e curta que passei. Meus cílios se tocavam frequentemente, e a boca abria descontrolada a cada minuto, fazendo com que a vontade de enxergar ainda mais um pouco fosse distanciada. Fiquei ali, sentado, longe de tudo, ouvindo aquela música acústica vindo lá de longe, de onde as pedras estavam. Parecia canção de ninar. Logo adormeci, sentado em meio a “um mundo” de pessoas que andavam em todas as direções. Um gramado fino e rasteiro se perdia de vista naquele local. Era tão verde que nem mesmo o sereno da madrugada foi capaz de colorir sua essência. Abri os olhos e enxerguei um grupo de rastafáris, todos embriagados pela longa noite de espera pelo sol. Muitos ali viraram a noite, a festejar, comemorando a chegada de mais um ciclo — talvez fosse isso na visão dos celtas da época. Os casacos se confundiam com mantas e adornos africanos, e as botas sujas, cobertas pela grama fina, pareciam ter corrido os quatro cantos daquele local.
Tudo parecia um sonho, extremamente irreal. Tudo muito diferente. Talvez fosse o sono, ou os restos de sonhos. Avistei, bem longe, fora de toda aquela confusão, um senhor vestido de mago. Ali mago existia, e era real. Fui ao encontro dele, aproveitando para despertar daquele sono e tentar saber um pouco sobre tudo o que estava acontecendo. Cada passo dado em direção àquele ser, que trazia um capuz cobrindo a cabeça e um pedaço de galho de uma árvore velha na mão, era intuitivo e temeroso. Seu cajado, escurecido pelo tempo, era todo decorado com sinais e símbolos desenhados, que faziam aquilo parecer uma relíquia e a única coisa que aquele velho possuía. Dava medo. E a adrenalina causada por esse medo era tudo o que eu sentia ao chegar perto daquele “bruxo”. Demorou, mas consegui falar um “oi”, que saíra baixo, entre os dentes. Não consegui despertá-lo de sua concentração, e, por um momento, eu quis fugir dali. A energia ficou pesada, pois eu ainda não tinha visto seu rosto. O que mais aguçava a minha curiosidade era sua enorme barba, na altura do tórax. Fiquei parado ao lado e não falei nada. Fiquei “mudo” e tentei me concentrar, para fugir dos pensamentos que insistiam para que eu saísse correndo. Foram “eternos” 20 minutos, até a súbita e inconsciente reação que me fez deparar com os olhos daquele homem, que já há algum tempo me observava. Era medo o que eu sentia, não da matéria, mas do espírito. Medo de conhecer algo novo. Assim, vi um sorriso, indiferente, surgir nos lábios dele. Talvez tenha sido um sorriso de lamento, porém eu não sabia ao certo o que ele queria dizer com aquela expressão que me fez abandonar o medo e a aflição. Não tive coragem de falar nada, nem de fazer nada. Apenas senti a respiração que, agora muito calma, fazia com que os meus pulmões representassem algo perfeito, dado o prazer que experimentei ao respirar aquele ar tão puro, diferente daquele que pairava em meio à bagunça que estava nas pedras. Foi eterno o “olho no olho” com aquele senhor de mais de 60 anos. Resolvi ir embora daquele emaranhado de sensações que fez com que eu me esquecesse temporariamente o meu lado turista e fotógrafo. Dei as costas para o velho mago e, quando imaginava que tudo tinha acabado, o ouvi dizer em alto e bom tom: “Ele está chegando!” Minha reação instantânea foi me virar e olhar para trás, mas percebi que a distância que me separava do mago — ou bruxo, ou senhor, não sabia mais do que chamar aquela figura — não correspondia ao tempo que caminhei. Havia uma distância enorme entre nós. Por fim, não acreditei no que meus ouvidos escutaram. Mesmo assim, aquela frase ficou por um longo tempo ecoando em meus pensamentos. Talvez tenha sido um devaneio, por algum evento desconhecido. Cheguei a olhar diversas vezes para trás, e nada do mago sair do lugar. Até que passei a olhar, o tempo todo, na direção do velho, e ele sempre no mesmo lugar.
Já me encontrava no interior do círculo de pedras. Estava na hora de o sol sair, e no céu, cinza, surgiam riscos azuis. Era o indício de que o vento já afastava as nuvens, e de que, no azul, a qualquer momento, poderia surgir a imensa luz amarela. Do centro do monumento, ainda conseguia enxergar, bem ao longe, algo que mais parecia um inseto, mas que eu sabia tratar-se do velho, ainda compenetrado em seus rituais.
As pedras menores passaram a representar palcos, onde as estrelas eram seres normais trajados como druidas, com coroas de flores enfeitando a cabeça. Muitas pessoas em um mísero espaço constituíam o cenário. E eu era só mais uma “sardinha” daquela lata redonda. E a nossa única obrigação era olhar para o céu, pois a qualquer momento poderíamos ver o que tantos já haviam visto.
As pessoas não paravam de cantar, de sacudir seus chocalhos e de bater em seus tambores e pandeiros. Ali não havia nacionalidade definida. A única coisa que diferenciava as pessoas eram as tribos. Diversas tribos, de diferentes cores e religiões, mas todas amantes do sol. Nem eu sabia que era tão apaixonado por essa poderosa bola fumegante. A estrela de quinta grandeza, a nossa fonte de vida. Seria ele o Deus maior? Seria o Sol a maior força do universo? Sim, para nós terráqueos sim. E é provável que essas sejam as mesmas questões que, no interior daquele imenso círculo de pedras, já os celtas levantavam há mais de 3 mil anos. Fora realmente ali que a grande pergunta do existencialismo humano teve início. É tamanha essa verdade que, mesmo no século XXI, estando no centro daquela construção não há como não se perguntar “o que estamos fazendo aqui?”, “de onde viemos?” e “para onde iremos?”.
Havia uma magia fora do comum em Stonehenge e eu, a todo o momento, “desligava” o olhar do céu para procurar, entre as pessoas, aquele senhor que me dera um sorriso de pena sob um olhar de lupa. E ele sempre lá, no mesmo local, enquanto eu continuava a me perguntar diversas coisas. Senti que sairia dali com fortes dores de cabeça, como sempre acontece quando visito museus. Era uma “overdose” de tipos e sensações; um turbilhão de verdades e de mentiras, de vaidade e de simplicidade. E o desfecho de tudo aquilo já era sabido: não passaria de uma enorme fila de carros, com todos, ao mesmo tempo, querendo somente retornar a seus lares. Eu, então, já começava a perceber que tínhamos perdido a viagem. Pois pedras eram pedras e o sol era o sol.
Sol
Já não havia quem não estivesse impaciente. O sol ainda não tinha nascido, e nem mostrava sinais de que o faria. Apesar de o dia já estar bem claro, o azul ainda não havia conseguido superar a imensa massa cinza que teimava em reinar no céu. O velho finalmente havia desaparecido do lugar. Parecia que todos os milhares de pessoas que se aglomeravam ali, naquele momento, tinham os olhos voltados para a mesma direção, o ponto mais alto da pedra principal, onde os primeiros raios amarelos, graciosos, se apresentariam. Súbito, uma série de acontecimentos enérgicos em Stonehenge: a multidão, em alvoroço, ao mesmo tempo em que contemplava o tão aguardado sol, “desfazia-se” em gritos e aplausos, como num enorme coro. Houve de fato uma reação automática, não havendo ninguém que tenha sido capaz de conter a voz ao primeiro raio da nossa estrela maior. Enfim nascia o sol, mostrando-se no meio da pedra principal. E foi mágico ver todo mundo gritando e ovacionando o eclipse das pedras com o sol. Era o dia em que o sol iria ficar mais tempo no céu da Inglaterra.
Foi assim que aquele 21 de junho, o dia mais longo do ano, começou para mim e para todas aquelas milhares de pessoas, reunidas, como num ritual místico, por uma verdadeira comunhão e pela adoração ao sol. Era justamente por isso que estávamos ali. E ver o sol, naquela ocasião, foi muito especial. Ele, que todos os dias está lá no céu, veio naquele 21 de junho como um milagreiro, um santo ou um deus, encontrar-se com as pedras de Stonehenge, impressionantes pelo tamanho e pela forma em que foram dispostas — literalmente, pedras sobre pedras —, como se fizessem parte da brincadeira na qual se enfileiram peças de dominó e se empurra a primeira para que se desenrole, em sequência, a queda de todas as outras.
O sol já não aparecia, pois uma grande nuvem encobria sua “cara”, deixando à mostra apenas alguns raios que fugiam pelas laterais. O eclipse havia se extinguido de todo e as pessoas já davam as costas para as pedras. Foi então que ficou mais clara a diversidade de tipos humanos que ali estavam, ocultos na multidão. Muitos drogados dormiam ao relento, e, do meio daquela grande confusão, surgiu um homem tocando saxofone. De onde poderia ter saído aquele homem, com um instrumento tão clássico, e percorrendo com ele — diga-se de passagem, não tão leve — sabe-se lá quantos quilômetros? Ficaram ainda mais claras as diferenças das viagens, das aventuras, das versões de lugares, coisas e pessoas. Não sei com o que fiquei mais impressionado. Se com as pedras gigantes, fixadas para sempre no solo inglês; se com o sol, estampado temporariamente no céu; ou se com as pessoas que, espalhadas por todas as partes, ajudam a compor esse mundo de sonhos, fantasias e diferentes realidades. Só sei que ninguém foi capaz de me apresentar um argumento, suficientemente aceitável, que explicasse ou justificasse a presença das misteriosas pedras ali, dispostas de um modo tão peculiar.
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Reinaldo Reigrimar
Escritor e compositor. Foi correspondente da revista Griffe em Londres por cinco anos. Técnico em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Organizador do livro Griffensaios e co-autor dos livros O feitiço do cinema — ensaios de Griffe sobre a sétima arte (2009), pela Editora Saraiva/Arx, Corpos estéticos (2008) e Griffespaços (2007).
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