Ataque cotidiano de vida

ANNA CAROLINA

No mundo, estava eu quentinha e confortável na minha São Paulo acinzentada, mas essa ânsia, essa carência de tudo, essa inquietação dos que reservam um tempo do dia para devaneios, fez-me abandoná-la para descobri-la. Parti para encontrar, em Londres, punks sujões, como os manuais de rock and roll indicavam. Se me perguntarem: foi ao Big Ben? Direi não; foi a Notting Hill? Não também. O que, afinal, foi fazer em Londres? Fui descobrir segredos, descobrir Jonnhy mais um pouco, descobrir a minha São Paulo acinzentada, e caminhar pelas ruas, também cinzas, de Londres. Andei, andei, pensei e pensei, como faço em todas essas viagens solitárias. Neguei-me a me misturar na massa de turistas que se empurravam em frente ao Big Ben e preferi observar as cores fortes da paisagem londrina que apareciam para quebrar a monotonia do cinza constante. As damas andavam cobertas por casacos pretos, e, de repente, surgia um batom vermelho gritante, e os ônibus e táxis, de um vermelho também gritante, apareciam para amenizar o incessante escuro do céu. Tentava entender por que instantaneamente gostava de Londres. Pensei que seriam as lembranças que ela me trazia de São Paulo, de sua rispidez inversa a esse romantismo mofado de Paris. As cidades são compostas por pequenas sutilezas e, talvez por isso, amei Londres.

Sei que lá algo aconteceu. Desabei, desmontei, me vi despida e assumindo o desejo de um cotidiano repetitivo, de uma vida média familiar repleta de prazeres banais que me apavoram, mas que talvez seja o meu desejo mais oculto. Ao redor de muitos, encontrava-me sempre fugindo, para ficar sozinha um pouquinho, em alguma padaria de esquina das ruas de São Paulo. Em Londres, decidi não mais fugir, nem sair correndo no meio da noite por estar “cagando” de medo de me apaixonar. Como se, em Londres, eu tivesse experimentado do meu próprio veneno, sabe? Era eu quem sempre saía correndo porque não tinha tempo, era eu quem tinha os olhos no umbigo e estava sempre atarefada e cheia de coisas individuais para fazer e, por isso, não tinha tempo para almoçar com Jonnhy. Era sempre eu quem saia no meio da noite, correndo de medo. Senti-me ridícula, medrosa em Londres, não do metrô ou do fato de estar em uma ilha linguística, mas por sair correndo no meio da noite e nunca ficar para o café da manhã ou, mais ambiciosamente, para o almoço. Prometi assumir Jonnhy se ele ainda me quisesse. Assumir suas imperfeições, que em Londres ficaram tão perfeitas. Como se em Londres, as fotos de monumentos turísticos sem pessoas tivessem ficado ainda mais insignificantes. O que me importa são as gentes, as doações. Porém, essa ânsia moderna, essa ambição vazia de contar os monumentos históricos visitados, nos consomem e nos inquietam, estamos sempre nos cobrando quanto à realização de um discurso construído, que é vazio de singularidade, mas que nos inquieta.

Tive medo de encontrar a poesia no cotidiano banal e saí fugida para revisitar, somente em pensamentos, agora constantes, os encontros especiais que as esquinas das ruas, somente de São Paulo, pareciam proporcionar-me. Estou de novo envergonhada pelo medo que tive de amar o cotidiano que aparentemente se alterava, e buscar o completo desconhecido achando que somente esse poderia dar-me poesia. Estou envergonhada por ter saído correndo no meio da noite por ter tido medo de perder a poesia no amor cotidiano. Estou repetindo várias vezes, para convencer-me de que aqui também posso encontrar toda essa poesia cotidiana. Estou envergonhada, por ser uma covarde que morre de medo de que o cotidiano assassine a poesia.

Amsterdã

O que vale mesmo é sempre a companhia. Já estava certa disso, mas um fim de semana em Amsterdã com a Mi, a Gi e a Luana, confirmaram as minhas teorias de que as viagens são feitas para se conhecer as gentes.

Paris, frio da porra, eu e a Mi, enfurnadas no acolhedor cafofinho parisiense que a vida de babá explorada lhe fornece, esperávamos a Luana e a Gi chegarem da balada para irmos de carro a Amsterdã.

Às 15 horas da sexta, recebo uma mensagem no celular — tinha me esquecido do quanto gostava de dirigir. A Gi havia acabado de pegar o carro na locadora, em Saint Lazare, para a viagem “sexo, drogas e rock and roll” começar.

Sabia que já estava meio velha para isso, cansada para os clubinhos de perdição noturna, mas mesmo assim aceitei a viagem. Tinha como garantia Gi e Luana, companhias “gata ça va” e a Mi, meu equilíbrio entre a velhice e a perdição. A gente se dá bem, viu?! Só quando resolvo colocar os “exus” pra fora que a Mi não consegue acompanhar. Ela tem sono, quer fazer “dodô” e ter vida saudável. Eu fico meio entre a “gata ça va” e a tentativa de vida saudável da Mi.

Como sempre, na minha melancolia disfarçada, lembrei das viagens que tinha feito para jogar xadrez. Aos 13, escutando Linger, dos Cranberries, e estudando táticas para o xadrez, e aos 28, escutando Misfits e esperando chegar à cidade da putaria e dos cigarrinhos generosos.

A estrada me chama, e eu a quero inteira. Adoro a saída da cidade, a expectativa, o som ligado, a euforia que não deixa a gente parar de falar. Olhei pela janela, dessa vez sem muito esperar, pensei na loucura de estar numa estrada em Bruxelas. Éramos eu, as garotas e o mundo. A gente no mundo, na neblina que deixa essa parte toda acinzentada. Lembrei de novo das viagens com a Mi para São Paulo. Pegávamos as peruas toscas de 10 reais, em frente à rodoviária de Campinas, para fazer balada no Matrix e tomar “banho” no banheiro do burguês Espaço Unibanco. Eu era outra, a piração era maior. Eu viciada nos caras de costeletas e calças surradas que circulavam bêbados pelo decadente Matrix, e a Mi forçando-se a beber e arrotar cerveja no boteco da esquina. Não era mais a mesma. Indo para Amsterdã, estava cansada, preocupada, triste por perder a Amsterdã que nem conhecia. A burocracia, o cotidiano regrado, o salário estável no final do mês, ou o mundo, as “vespas” coloridas estacionadas, o cigarrinho generoso liberado, a putaria acontecendo nas ruas iluminadas de vermelho da apertada e específica Amsterdã? Eu estava confusa e pensando em tudo. Na minha impotência em relação à estabilidade, na tentativa de casamento com Jonnhy. Eu era essa cheia de histórias, com as amigas “gata ça va”, na esperada reclamação que faria para a Mi na sexta-feira à noite sobre estar em “pausa” de vida.

Eu só queria que a viagem durasse a vida toda. Queria viver uma vida na qual todos os dias fossem como aqueles anteriores à viagem, queria que todos os dias tivessem aqueles minutos que passamos no trajeto para chegar à cidade de destino. Queria ser, todos os dias, a Carol ansiosa que olha, pela janela, as matas e as terras passarem, e que as deixam mais perto de encontrar o desconhecido.

Holanda era muito pra mim. A Luana havia arrumado um squat na zona industrial de Amsterdã. A Holanda num squat de um estudante de geografia em Amsterdã era ainda muito mais que muito. A filha do seu Takeda e da Lia cabeleireira, a Carol interiorana, teve petulância e levou a Michelle para longe também. Michelle petulante. Nós, petulantes, longe do trajeto mais previsível. Era pra gente estar indo para a Praia Grande, Dracena, Jau, no mais, a Ribeirão Preto, mas a petulância levou a gente para o squat holandês, levou a gente para conhecer e jantar no restaurante daquela senhora bonachona de bochechas rosadas.

Amsterdã era colorida. Suas gentes eram grandes, com tênis amarelos. Suas casas não escondiam a privacidade. Eram aconchegantes, casas do frio. A nossa fábrica invadida era acolhedora também, Jasper era acolhedor. Conversava sobre o mundo, habitara o Camboja e tinha na parede uma foto da Bolívia que o pai fizera quando ainda estava casado com a mãe. Eu no mundo, Jasper no mundo. Eu na burocracia, no salário estável de final de mês. Jasper indo para a China, e eu continuando, por anos, na burocracia do Judiciário. Tive medo. Aqui mesmo não vivia mais a pausa de vida. Davam-me conta Mi e Gi, responsáveis diretas por tirarem a Carol da pausa de vida. Eu no mundo, sem a pausa. Eu com vida, longe da vida que pensava. Andávamos pelas ruas. Os homens, bandos de homens, procurando a puta mais oferecida. Putas comportadas, quentinhas em seus aquariozinhos vermelhos. Homens contentes, prestes à libertinagem, ao sexo vagabundo que os anos de casamento matam. Eu andava com inveja das putas, do desprendimento, da vadiagem à qual meu espírito burocrático pudico nunca dera chance.

Amsterdã era só cigarrinho generoso. “Legalidade-coffeshop” lotado de adolescentes e tiozões que se entopem de cannabis e esquecem até de se mexer. As garotas na felicidade com a legalidade, e eu precisando de uma cerveja. Minha alma cheirava a cigarrinho generoso. Nós, numa estufa de maconha. Tudo legalizado. Eu queria uma cerveja, queria o balcão. A “farofa” não se conteve — larica, compra de mercado, yakult e cigarrinho generoso. Abrimos os yakults para fumar cigarrinho generoso e brindar a viagem “sexo, drogas e rock and roll” que acabava em ingestão de lactobacilos vivos. Éramos nós “mirins”, em Amsterdã. A Luana até que tentou fazer a “gata ça va”, mas 1980 é pesadão, não aguentou duas noites de baladas e foi dormir. Eu queria era ver o dia, ficar saudável e andar para ver as flores. A Gi e a Mi estavam tranquilas, nada de pegação, nada de álcool, nada de quartos e casas desconhecidas. Eu, pensando em levar uma camiseta vermelha e preta para o Jonnhy, a Gi com planos para o jantar judaico, a Mi toda confusa, e a Luana ainda no pique.

Olhei pela janela da encantadora e bem estruturada biblioteca de Amsterdã e vi o frio. Chovia muito e nem conseguíamos avistar a cidade, porque estava encoberta pelo cinza. Vieram saudades de São Paulo, saudades das putas, na rua, quase nuas, no calor das noites paulistanas. Queria andar, sabe? Sou da rua também, não gosto de jantares particulares, quero dividir o “PF” no balcão, quero o café da manhã naquela esquina aberta da Augusta. Não escolho as casas aconchegantes, quero estar fora delas, quero estar na rua. Quero ter a Luana, a Gi e a Mi nos botecos abertos e não na minha casa acolhedora. O frio nos isola, sabe? A gente se amontoa.

Em dias, descobrem-se as particularidades dos outros. Fui observada, observei, quis as gentes, botei fé na divisão, botei fé na energia que dou às gentes. Voltei feliz de Amsterdã. Entendi que as viagens são as gentes e que elas valem a pena. Os encontros, as trombadas criadas pelo acaso, as intersecções. Vou vivendo os dias, acreditando em tudo isso, como se todos eles fossem como os dias anteriores às partidas das viagens. Vou vivendo, mesmo sendo a próxima burocrata, como se nas esquinas pudesse encontrar as grandes viagens.

As grandes viagens são as gentes!

Cotidiana

Há dias ando longe do mundo físico em que vivo. Posso estar aqui, caminhando por ruas que, há tempos, não são escolhidas para caminhar, mas vou. Acordo todos os dias às 7 horas em ponto, sem um minuto de atraso, porque os dias não toleram as perdas e eu vou automática, esperando o tempo passar. Não sei se estou repleta de desesperança ou se é essa tristeza morna que me faz pensar, nesse momento, que a vida é espera, é tempo que escoa e que não se vive. Não sinto assim, porque perdi o sentido das coisas, mas vivo uma ausência. Sempre me fiz forte, mas nestes dias, sou corpo anestesiado de vida e é essa a única coisa que consigo encontrar.

Largar tudo e partir? Sair fugida como uma covarde porque não sei viver sem estar ao seu lado, construindo esse trajeto de esperança semanal, como você me escreveu? Não sei se posso lhe sobrecarregar com os meus sentidos, mas eu estou à beira de explodir, porque ainda não sei definir a saudade. Quando penso — e olha que penso o dia todo — sobre as saudades, a palavra e o sentido que se aproximam um pouco mais desse sentimento obscuro é “anestesia”. Sinto-me assim, anestesiada de vida. Ando sem graça, sabe? Será que entende esse sentimento de viver sem graça?

Hoje, nesse vácuo, não sei definir nada em palavras, pois estão todas escorregadias. Preciso definir essa sensação morna, para livrar-me dela. Mas está vendo? Dou voltas e voltas e tudo me foge. Parece que minha alma está anestesiada e não consigo degustar, experimentar e sentir absolutamente nada. Por que deixo esse sentimento invadir-me? Por que não consigo rir, como todo mundo, um rir banal que descarta teorias, um rir de quem gosta de ter saudades? Eu detesto ter faltas, e ter saudades é ter falta de alguma coisa que não sei classificar, não sei explicar, você me entende? Queria ser Camões e explicar o amor, como somente ele soube explicar. Será que preciso tomar um porre e perder os sentidos para definir a saudade? Tenho medo de não acordar, tenho medo de o vácuo me sugar e tirar a parte de mim que mais gosto, a que tem raiva, que sobe a Augusta, a Consolação, a São João, indignada e com vontade de dizer palavrões. Aqui eu sou assim, anestesiada, polida, sem vontade de dizer palavrões. A minha carne está murcha, você me entende? Sem você, sem aquela nossa esperança de todas as semanas, de todos os cafés da manhã, eu não sou nada. Eu preciso de esperança e de ódio, preciso não esquecer as minhas revoltas, porque desse lado do mundo é fácil esquecer essas coisas que a gente passou um tempão lutando contra. Eu experimento a vida familiar, sabe? Justo eu, que detesto a normalidade das vidas médias e prometi viver em “inferninhos” noturnos. Nunca gostei da ideia de ter pai, mãe e irmão em casa. Queria uma casa com gente solta, sei lá também. Nem eu sei o que estou te dizendo, estou apenas escrevendo como se estivéssemos na mesa do bar, enchendo a cara às 4 horas da tarde.

Você se lembra? Você se lembra que fazíamos isso? Quebrávamos todas as regras da vida burguesa e íamos gastar o nosso dinheiro em doses de vodka no BH, você se lembra? Eu sempre chorava. No final das contas, lembro que eu sempre falava alguma coisa e, depois de umas cinco doses de vodka, começava a chorar. Mas aqui, mas aqui... Com quem posso tomar vodka às 4 horas, vendo os moços engravatados zanzarem tensos com suas pastas pretas? Com quem posso falar sobre a deselegância que é trabalhar a vida toda sem gozar dessas pequenas infrações? Sei que todos diziam que faltava sobriedade na gente, mas, e daí? Nos encontrávamos, segundo as nossas próprias percepções, sóbrias e felizes, no movimento da Augusta — centro velho de São Paulo — discutindo os absurdos que ninguém considerava graves, mas que, para a gente, eram o motor de toda a revolta e esperança. Eu, você e o Pirata. A gente discutia. O Pirata não parava de falar. Você sempre silenciosa, medindo a situação para encerrar a conversa com alguma conclusão que a minha ansiedade e a do Pirata não deixavam ver. Desculpe-me, mas hoje sou só lembranças. Estou com medo, já te disse. Estou morrendo de medo do tempo. As coisas mudam, né? O clima passa por ciclos de aquecimento e resfriamento. A vida é assim. A natureza é assim. É o que você me dizia sobre os processos, né? Você concorda comigo? Preciso que concorde, porque entre nós nunca existiu desacordos, a gente chegava juntos a uma conclusão sensata. Ou estou enganada? Não éramos nós as nada sensatas, perdidas na massa amorfa do Terminal Bandeira? Preciso de teorias agora. Antes eu tinha você, e as minhas teorias eram cotidianamente formadas nas mesas dos bares das esquinas de São Paulo, mas agora, preciso de teorias, de palavras eruditas para entender o que você me dizia em conversa de bar. E agora, as coisas mudaram, você está grávida e eu estou aqui, nesse frio, longe e sem a tal esperança que mudava toda semana, o projeto que não acontecia, mas que também mudava toda semana. Será que, quando eu voltar, a gente ainda vai ter essa afinidade, de sentar por horas nas mesas dos bares de São Paulo para discutirmos as faltas, as falhas, os amores vagabundos que foram embora? Eu tenho medo, sabe? Tenho medo de voltar e esse movimento do mundo, essa trajetória escolhida, ter mudado as coisas entre a gente. Tenho medo de não sermos mais as mesmas e das conversas nas mesas dos bares não serem longas como eram. Tenho medo de sentarmos, somente nós, e a conversa não ter continuidade porque não falamos mais a mesma língua. A gente sempre falava de processo, de contradição, de cotidiano, e, agora, essas são as palavras que mais me assustam. Talvez eu aqui, e você aí, encontremos significados distintos para essas palavras, que antes tinham o mesmo significado para ambas. Você vai ter um bebê e eu vou me acostumar com o luxo de comer pato macio com purê em restaurante granfino, em Saint Michel, e a gente vai sentar para conversar, e eu não vou entender você reclamando do preço da fralda e do sistema de saúde brasileiro. Eu tenho medo disso tudo, você me entende? Tenho medo de ter que falar de problemas do sistema de saúde. Aqui, isso não é uma preocupação, e você sabe que pra mim isso sempre foi importante. Sempre tive muito medo de não ter grana e ficar doente. Você entende agora porque estou com medo? Estou com medo, minha querida amiga, de, contraditoriamente, gostar de não ter mais afinidades com os nossos antigos assuntos. Tenho medo de ser outra, a individualista que, perto de você, foi sendo silenciada, mas que se transformou. Às vezes, aqui sozinha, penso no tempo, nesse processo incoerente que é a vida. Não sei te explicar, mas tenho medo que o tamanho do mundo faça-nos conversar em mesas de bares, em línguas diferentes. Eu não quero o processo, a mudança. Quero ser cotidiana com você, nessa loucura mais concentrada e silenciosa, que outra, continentes não me mostraram. Prometa-me, querida, disfarçar, no caso de, mais tarde, quando eu retornar, na mesa do bar, descobrirmos que falamos outra língua? Eu prometo que vou fazer o mesmo. Vou pedir um prato rápido, para evitar o silêncio da espera, e vou abdicar da sobremesa, para podermos nos despedir rápido caso algo tenha desandado entre nós. Prometo tentar evitar o silêncio, que poderá surgir entre um prato e outro, e partir rápido, para que, sozinhas, possamos nos recompor da dor de descobrirmos que já não podemos dividir os mesmos projetos de esperança, no café da manhã.

Deixarei você partir, sem cobrar um telefonema para um segundo encontro, e direi adeus conformando-me com a ideia de que, há algum tempo, não falamos mais a mesma língua.

Max

Acordei no meio da noite, esperando uma mensagem de Max, e perdi o sono ao pensar no meu milésimo fracasso em relação ao amor. Quanto medo! É, Max, eu tive medo. Você era cheiroso demais, meigo demais e fofo demais. E eu, Max, era louca demais. Eu gosto das distâncias, sabe? Não posso lhe dar grandes explicações, você fala inglês e eu, português. É tolerável te encontrar numa dessas baladas perdidas, nessa gelada Paris. Mas a seco? A céu aberto? De dia? O que faria com você Max? Você sabia que foi me ganhando? Te disse que você era especial. As mensagens! O que eram as mensagens? A honestidade com que me esperou e me disse que me esperou? Isso acontecia porque falávamos outra língua? Sabe Max?! Os homens no meu país não me tratavam com essa honestidade. Será que fará isso ainda aos 30? Subestimei-te, você era mais maduro do que eu. Você sabia o que queria. Mas eu também sabia. Sabia de verdade. Mas tive medo, porra! Fiquei em pânico ante a possibilidade de te encontrar a céu aberto, a seco, sem uns tragos. O que te falaria? Aquela que você conheceu já não era mais a mesma. Tenho dificuldades com os carinhos, mas você não deve ter percebido, né? Claro! Eu entendo. Os tragos de tudo deixam a gente ótima. Essa você conheceu. Você sabia que já fiz isso com muitos caras? Eu saia correndo sempre. Mas você era meigo demais. Por que tinha que ser tão meigo? Não estou acostumada. Eu achei que você era perda de tempo. Estava frio, e eu, com preguiça, dei desculpas para mim mesma, de que você era uma grande perda de tempo. Dois idiotas tentando se comunicar, dois idiotas precisando de uma terceira pessoa como intérprete. Max, o que você queria? Queria me ver? Por quê? Não conseguiríamos nem conversar. Você me chateou, sabia? Chateou, porque tirou a Carol do lugar que estava escondida. Fez-me lembrar que ainda saio correndo. Eu fui estúpida com você, né? Eu queria você pra mim e só sai correndo porque quis você pra mim, porra! É isso que acontece. Quis você pra mim. Fantasiei encontros. Imaginei-me na Austrália, entre os cangurus, e com você, Max. Eu exagerei sábado, sem você, e dei patada em outros “caras” que se aproximaram, porque não eram Max. Eu tentei te falar que você era cheiroso, tentei falar que você não era francês. Mas como poderia falar, em inglês, que você era cheiroso, Max? Good smell? Eu estava com o dicionário no bolso para ir te encontrar. Eu tinha estudado as frases básicas para te dizer. Estava ensaiando no espelho como diria “Can you stay with me this weekend? I tried too”. Eu sei, Max, que você não entendeu assim. Jonnhy também não. Eu saí correndo, pedi desculpas. Fui gentil no final. O Bruno me entendeu, eu tinha um bom álibi. Não haveria trem para eu voltar para casa, por isso, não podia te ver. Eu tinha uma boa desculpa, você concorda? Eu juro que estava pronta, com o dicionário no bolso, mas Max — tenho que confessar —, eu esperava uma boa desculpa para não precisar te ver. A greve no transporte era real. Paris tem muita greve, você sabia? Não era nem mesmo uma desculpa. Não tinha trem, viu Max?! Eu expliquei para o seu amigo. Desculpei-me. Tentei te escrever depois. Fiquei com o coração apertado e toda cheia de tristeza. Mas por que estou me desculpando? Você é quem deveria ter me pedido desculpas. Tirou-me de onde eu não queria ter saído. Você acha que piorei? Acha que nunca vou sarar dessa doença, Max? Eu te conto: eu queria você pra mim. Você tinha que ser de tão longe? Eu só falo francês. Eu lamento não falar inglês. Era tão lindo ser chamada de bonita por você, sabia? Os caras no Brasil me chamavam de Linda, mas era discurso formado. Com você era diferente, o “bonita” era muito mais que linda. Você nem sabia ao certo do que estava me chamando. Eu disse para o Bruno te explicar o significado da palavra “fofo”. Você era fofo e eu nem conseguia dizer isso muito bem, em inglês. Eu tentei. Arrisquei um “cute”, mas não sei se deu certo. Arrisquei um “mignon”, e não sei se deu certo também. Espero que o Bruno tenha sabido te explicar melhor o que eu quis dizer. Acho que nunca saberá o que é “fofo”. Você sabia que espero que você volte? Espero. Mas mesmo assim, tenho medo de te ver. Não me lembro direito do seu rosto — eram os tragos. Eu perco a memória. Eu não lembrava nem do seu nome. Sou já “gasta”, Max. Te ganhei naquela noite pela malandragem. Tive medo, sabia? A céu aberto, a seco, você veria como já estou gasta. Eu tenho muito mais anos que você, muito mais rancores que você. Foi por isso que fugi, pois queria você pra mim, Max. Você não lamentou não ter me visto. Dei razão. Você foi maduro. Posicionou-se. E eu, tentei do meu jeito. Tentei não tentando, tentando, saindo correndo, Max. Melhor que seu trem tenha partido. Melhor a Holanda mesmo. Max, você faz com outra garota o que você fez comigo? Eu tenho medo que você desista de ser assim. Você faz, Max? Promessas de que tentará muitas vezes, assim como foi comigo? Os rapazes australianos também são assim? Quero notícias suas, quero fotos, quero saber o seu paradeiro. Não me deixe sem informação. Agora que você está longe, fica tudo mais fácil pra mim, Max. Eu te disse que gosto das distâncias, e de saber que tem para mim, milhões de combinações no mundo. Você era uma dessas. Max da Austrália, em Paris, conhecendo Carol do Brasil. Isso faz história e vivo por elas. Somos somente uma mistureba de signos diferentes. Queria te situar como história de viagem, você entende? Esqueci de te contar que tenho uma limitação. Não posso te dizer palavras de amor em outra língua. Sofro pelas barreiras linguísticas que os oceanos criam. Se um dia, baixinho, te dissesse: amo você! Você entenderia I love you, e, para mim, não seria a mesma coisa. Desculpe-me Max, mas eu me proponho a uma viagem rasa, pior que os turistas japoneses da Galeria Lafayette. Eu quero o envolvimento, mas os códigos são outros. Caio na viagem. Viagem rasa. Não tente me tirar, Max.

Papel

Tive que correr atrás da legalização do meu visto e, coincidentemente, nesta mesma semana revi o filme de Silvio Tendler, o Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá. Milton Santos diz uma obviedade, que está encoberta pelo belo discurso da globalização: “globalização é isso que interdita mais e mais, a cada ano, o livre acesso de pessoas pelos países”. Como pode ser disseminado o discurso de um mundo sem fronteiras? Os Estados estão, a cada dia, mais fortes. Controlam suas fronteiras e seus territórios de maneira que o trânsito, principalmente de pessoas, fique mais difícil a cada dia. Se existe alguma globalização, é para as mercadorias. Porém, é uma globalização que também acontece de forma desigual, em que as economias dos países ricos, os mesmos que comandam as organizações internacionais que comandam o mundo, sejam privilegiadas. O senhor da prefeitura, usando seu parco poder, disse gritando: “Senhores, vocês sabem, a cada ano fica mais difícil de entrar na França, então, se querem morar aqui, devem respeitar o que lhes digo. Caso contrário, recuso seus vistos e voltarão aos seus respectivos países”. Nesse momento, pensei em Milton Santos. Pensei na contradição dos discursos e na vitória bem articulada do poderio das tais organizações internacionais. O senhor tinha consciência do aumento das fronteiras para aquelas centenas de pessoas que esperavam humildemente por um visto de permanência, no entanto, se perguntassem para esse mesmo senhor sobre a globalização, ele diria que ela existe e funciona muito bem. Essa contradição formada, essa ausência de consciência, essas ideias que não casam, são a vitória dos discursos imperialistas que comandam o mundo. Eles são muito bem construídos para que as contradições não apareçam. Lamento toda vez que escuto um francês discursando sobre o meio ambiente, sobre o fim da água, sobre a poluição, o aumento do lixo, o fim do petróleo e o fim do mundo. E se disserem para eles que o fim do mundo é esse que vivemos? E se disserem que na África, na América Latina, no sul asiático, não existem alimentos, nem escolas, médicos, remédios, emprego, enfim, nenhuma estrutura para uma vida digna? E se disserem que isso é, de fato, o fim do mundo? Que isso é um problema real, que já acontece, e que não precisa esperar mais alguns milhares de anos para acontecer? Os europeus ecológicos preferem ficar na hipótese do fim do mundo a ver que esse tal fim do mundo acontece agora. Está acontecendo no Brasil, na Angola, no Afeganistão, no Kosovo, e até mesmo na própria Europa. Esse eco-discurso é apenas mais um discurso muito bem construído por essas tais organizações internacionais para desviar o foco do real problema, que é político e não ambiental. A fome é um problema real, mas ela não acontece porque não existem recursos naturais para plantação de alimentos, mas sim por falta de uma política democrática cuja finalidade seja em benefício da humanidade e não em benefício do lucro de alguns poucos. Na França, a cada dia, abrem-se dezenas de mercados “bios”. “Bio isso, bio aquilo”. Uma proliferação de produtos bios para os franceses consumirem e se atolarem na merda do discurso catastrófico do possível fim do mundo, e esquecerem que o fim do mundo é a própria fome de milhões de pessoas.

Pausa

Quando saí de casa para visitar o mundo, estava com as ideias embaralhadas na cabeça. O mundo, as ruas, os bares desconhecidos, a viagem, as pessoas, o deslumbre, os encontros, a França. Mas por fim, a pausa. Andei pensando o significado de saudade. Já tentei de tudo: misturar-me, conhecer os monumentos e os malditos museus que brotam em cada esquina de Paris, conhecer somente brasileiros para suportar melhor a frieza momentânea dos franceses. Já acordei achando que poderia ficar distante da escassez existente no Brasil, mas no fim, sempre a pausa. Vir de férias à Paris para beber champagne e descobrir, misturada à massa de turistas japoneses, a Torre Eiffel, é diferente de se propor à viagem, ou, como ando definindo nesses dias, a pausa. Viagem, diferente do sentido dado por aquele charmoso francês da palestra que me fez vir à França, tem outro sentido. Ele falava e eu me apaixonava, ele descrevia e eu queria. Ele contava sobre sua estada em Angola, e eu, sentada na cadeira, esperava ansiosa a organização da minha partida para qualquer lugar do mundo, para ser, assim como ele dizia, viajante. Eu nem sabia para onde deveria ir, só queria ir, só queria achar um país que pudesse acolher alguém que queria descobrir as gentes. Eu queria descobrir as gentes, misturar-me, entende? Ser viajante era isso. Era tomar porres com os nativos e cair na casa de qualquer desconhecido, para uma dessas festinhas, meio libidinosas, dos que estão soltos no mundo. Era isto, acordar numa cama desconhecida dizendo Bonjour, Hola, Hello. Não importava qual era o idioma. Queria poder dividir segredos nos banheiros femininos sobre as peculiaridades dos amantes nativos. Queria rir em mesas de bares ao falar das bizarrices encontradas nas diferenças culturais. Era a viagem, a mistura, você me entende? Eu deveria ser a viajante, mas a pausa, ela não me larga. Tatuarei a pausa bem grande no braço e escreverei 2008. Quando voltar, tatuarei o play, 2010. Eu sem pausa, eu no play, eu de “saco cheio” da minha não mistura. Deveria ter ido para Moçambique, para misturar-me? Para a Angola, como o charmoso francês da palestra? Era lá que poderia misturar-me desse jeito que eu queria? Essa culpa maldita não me deixa gostar dos países ricos, porque sei que é para cá que vem as melhores frutas. Que raiva ver isso ao vivo! Que raiva que tive ao chegar ao mercado e ver que aqui, a banana importada do Brasil é mais barata que no mercadinho ao lado de casa. Que raiva que tive ao ver os preços das roupas que vinham da Turquia, da China, da Tunísia. Fiquei com raiva, porra! Ingênua, idealista, o caralho a quatro, fiquei com raiva, porra! Era a maldita conversão da moeda, era isso. O luxo era a normalidade e eu estava gozando e compactuando com tudo isso. Como misturar-me desse jeito? Sei que eles não têm culpa diretamente, mas como eu poderia compactuar e gozar disso tudo? Parei de querer a viagem, parei de sonhar com a mistura. Deveria ter ido para a África, pois somente lá a minha culpa me deixaria em paz e pronta para a mistura. Os africanos de sorriso largo, as “negonas” de quadris fartos que ocupam toda a cama. Era para lá que eu deveria ter ido, onde meu charmoso francês descobriu a viagem. Era a recepção que possibilitava a tal mistura. Mas a pausa... A pausa de vida, sabe? Parece que esse romantismo suave das ruas parisienses, o refinamento alimentar, a polidez — chata pra cacete —, foram me fazendo viver a Pausa. Maldito tempo que não corre, maldita condição de fodida no mundo. O que quero? Sair da pausa de vida? Voltar para o play. Deus, quero voltar para o play! São só alguns dólares e estou no play, fodida no mundo de novo. Na poluição aconchegante da minha São Paulo. Gonçalves Dias e as palmeiras, eu e a poluição. Tudo se explicava. Era a saudade. Vivia a pausa de vida. Dizem-me que reclamo demais, que corro atrás do vento, que canso os outros com esses melodramas causados pelas minhas nostálgicas lembranças. Tenho que concordar, essa tentativa de definir poeticamente a saudade cansa até os sorridentes moçambicanos em meio às bebedeiras de réveillon. Ah! Isso é lindo em Paris. Você tromba pelas esquinas com gente do mundo inteiro e acaba vivenciando um pouco as culturas alheias. Mas é engraçado como os pobres sempre se juntam. Amigos alemães? Hum! Não, não foi possível. Amigos equatorianos, peruanos, colombianos, moçambicanos, bolivianos, “pobretanos”, esses sim, fiz muitos. Os pobretanos acabam dividindo as cervejas baratas nos — pseudo — botecos parisienses e, por isso, conhecem-se.

Aí, sinto falta da utilização do “baixo-corporal”, da carnavalização, que os caras adoram estudar na academia. Caralho! Os franceses estudam e a gente faz. Os africanos “trepam” pra caralho e falam de sexo pra dar risada. Marcuse já dizia: “a gente deveria trepar mais”. Os franceses, segundo as estatísticas, não trepam, não usam o baixo-corporal bakhtiniano. Aí ficam assim, nessa amargura do cacete, estudando na academia o baixo-corporal. Sinto falta da vida do subdesenvolvimento, da “irracionalidade” que faz a gente trepar. Ah! Paris. Não é com você o problema, sou eu que gosto demais da putaria e tenho raiva do romantismo. Eu não levei em consideração as suas gentes quando decidi misturar-me, eu esqueci que adorava demais também as malandragens e as pequenas infrações cotidianas que existem nos países pobretões. Eu não aguento a chatice e o metodismo sem método dos europeus.

***

Anna Carolina

Formada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), futura bolsista da Universidade de Paris III, para a realização do mestrado em Literatura Brasileira, intitulado João Antônio e a violência nas cidades brasileiras. É autora do blog Ataque de vida, e colaboradora da revista Griffe.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A viagem de Platão a Siracusa

O continente branco: viagem ao fim do mundo

A ARQUITETURA COMO MEIO DE COMUNICAÇÃO