Dos restos, um recomeço

Dárcio Coyote Chaves


Qualquer um, que porventura se pusesse a olhá-lo, deste modo sentado, joelhos unidos, abraçando-os braços e sobre todos, ébria, a cabeça, pensaria: é dor, frustração. É apenas mais um derrotado. Indica-o a cabeça caída. Em breve, junto à porta de embarque do vagão das bestas e aberrações, ele ainda haveria de lembrar-se dos passos e dos lamentos que com eles passeavam, discorrendo sobre aquela cabeça de uma tonelada. Lembra-se ia, certamente, de um passo vacilante que, por haver tropeço em sua bagagem, acabou por despertá-lo de seu profundo aterramento, permitindo-lhe que ainda ouvisse o trapalhão desbocado, preferindo-lhe mil impropérios por estar obstruindo o fluxo dos apressados e espremidos pedestres (é assim no centro de São Paulo, o tempo todo as pessoas se acotovelam como animais encurralados). Levantou-se, pegou a bagagem, era um estojo de violão, sentiu-se mesmo El Mariachi e riu de si próprio enquanto se voltava em direção à estação da Luz, não estava longe, ele é quem hesitava em tomar o trem, evitava o retorno, temia a chegada a casa, havia tanto tempo deixada para trás por uma promessa fracassada. Decidiu-se, enfim. Irrompeu para a estação levando tudo no peito, inclusive o coração descompassado e, presas na garganta, uma meia dúzia de palavras mal-educadas, que não sabia ao certo a quem despejar. Talvez fossem para si mesmo, pensava... E se arrastava, pé ante pé.

A estação da Luz é o retrato da cidade de São Paulo. Linda e triste. Confusa. No entorno, as calçadas, que deveriam servir aos passantes, servem aos panos e “paneiros”. Aos passantes, servem as ruas, que também servem aos carros importados, às carroças dos catadores e quem quer que as conquistem na desenfreada disputa diária. Mas é esse o cenário escolhido para o show, o derradeiro espetáculo desse mariachi, que um dia sonhou ser notável. Ali mesmo, ao lado da entrada principal da estação, onde a concentração das gentes é, entre tudo, sufocante, ele abre o estojo e saca seu velho violão de pinho, companheiro de viagem, que o acompanha desde as mais longíquas e esquecidas cidades até a esta aqui, imponente, neste momento de decisão, momento de tensão e incerteza, o tudo ou nada, a última sacada, pancadas pulsando o peito, e na tez, uma foz. E, no entanto, o mariachi se detém estático, olhando com olhos fixos o infinito das lembranças para, em seguida, estraçalhar o velho violão, feito de repente abominável, contras os escarros na calçada paulistana. Um policial brada-lhe alguma coisa retendo-o por um braço, ele se desvencilha agilmente e põe-se em desabalada carreira por entre as pessoas e para o interior da estação. Não vê mais o cão de guarda, compra um bilhete simples e segue para o crec-crec sem fim das roletas com o desejo de encontrar um banco vago na plataforma, pois está exausto e quer apenas sentar-se. Porém, as plataformas estão fervilhando, e a colisão de tantos universos exala um odor fétido e nauseante, e por isso o agora ex-mariachi deseja ter novamente nas mãos o violão, para voltar a despedaçá-lo e desatar mais esse sufocante nó, que teima em amarrar-lhe as amídalas.

O suburbano abre suas portas, e nesse momento, para quem apenas observa, parece impossível que tamanha multidão possa mover-se tão uniformemente e em tão pouco tempo para dentro e fora dos trens. São contrariadas as leis, inclusive as da Física.

Bando de animais, bestas e aberrações; é assim que esse homem, entorpecido pela própria transpiração, vê os passageiros que se espremem na composição à sua frente, enquanto ele, hesitante em misturar-se àquilo, lembra-se do exato minuto em que se encontrava inerte, num transe, do qual provavelmente ainda seria refém, não fosse o pé sem direção que encontrara pelo caminho um velho violão de pinho.

Já é parte do bando, quando as lembranças se confundem com os outros pensamentos que chacoalham tal qual os vagões, desordenados dentro da sua cabeça. Mal vê o desenrolar da viagem, mas, ao desembarcar mecanicamente na antiga estação de Várzea Paulista, carrega consigo a nítida imagem dum prédio ainda em início de obras, e dos operários que o edificavam em silêncio. A noite já vai alta quando ele entra silenciosamente casa adentro, certificando-se de que todos dormem profundamente, o que de certa forma em muito o alivia. Sequer se dá o trabalho de emocionar-se, apenas deixa o corpo maltratado desabar num sofá que o encontrou pelo caminho.

Uma luz se acende na casa e ele abre os olhos num salto. Tenta organizar as ideias. Que horas são? É quase dia. Ainda não está pronto para encontros inesperados, menos ainda para as inevitáveis explicações. Contém a respiração e sai como faria um ladrão astuto, em verdade implorando para que, fosse quem fosse, não saísse ainda do banheiro a comprometer sua fuga. “Deus é mais”; comemora descendo a rua de terra. Mete mãos nos bolsos e entoa canção:

– Ê Minas Gerais, ê Minas Gerais...

Chegado o lugar, ainda é muito cedo. Nem pedreiros, nem serventes, nem ninguém, quanto menos o mestre-de-obras, a quem quer pedir algum trabalho. Vai esperar. Agacha-se junto à caçamba de entulhos e se afunda numa melancolia, riscando, com a unha de tocador, a calçada já pronta para receber o concreto, que talvez ele mesmo, ainda nesse dia, prepare.

Definitivamente esse homem já não é mais nenhum mariachi. Ele mesmo acaba de admiti-lo. Cumprimenta alguns operários que vão chegando:

– Bom dia, companheiros. Eu sou o José da Silva.

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