Assassinato em Bom Conselho

Dárcio Coyote Chaves

Ainda muito tempo passará até a hora do marroco1 aqui na penitenciária de Paulo Afonso. Porém, o sangue afro-baiano parece que já se agita às golfadas no corpo colossal de Adão Pedro da Rosa. Ele não vai ao marroco lá se vão uns três meses. Aqui a fome é coisa braba, e por isso só recusa refeição aquele cujas tripas já o estão a enforcar por dentro. Daí nada se faz senão esperar não se sabe bem o quê, muitas vezes é a ação do IML. Mas o Adão, apesar de não estar comendo muito, tem uma saúde daquelas. Ele acorda todos os dias no meio da noite e assim permanece até as primeiras luzes da manhã, quando então tudo o que faz é assistir de longe a ansiedade de todo mundo pra encher as canecas amassadas e comer aquele pão duro e casquento, enquanto ele mesmo, nem uma talagada de café preto. Tem vezes que alguns se arriscam a pedir a parte dele, aí ele vai lá e espera pacientemente na fila, enche uma caneca de café com leite, abarca um pão com o mãozão preto e entrega ambos pro cara, com um olhar distante... E sem uma palavra. É um cara de poucas palavras o Adão. Amigo mesmo só fez um por aqui, o Galinho, sujeitinho mirrado, mas troncudinho, e muito sério também. E por tal seriedade achou o Galinho no Adão um amigo, já que o Adão diz da frescura dos homens uma coisa de cavar a alma. E homem oco pra ele pode ser tudo, menos Homem. O Galinho andava meio acabrunhado com o estado do amigo, pois suas poucas palavras já eram, a essa altura, nenhuma.

Já se contam exatos dez dias desde que o Galinho pela primeira vez indagou ao amigo sobre suas inquietações, e exatos dez dias que obteve como resposta os mesmos dois lances de olhar que se repetiram pelos nove dias seguintes. Dois lances de olhar, um para o amigo e outro para a extrema nudez de um céu sem nuvens que se mostra por entre as grades das janelas, dando a todos os condenados da Paulo Afonso a constrangedora impressão de estar observando, como crianças curiosas que olham através da cavidade da chave, a nudez proibida e intocável da mulher que se banha.

Hoje falou o negro Adão. Abertamente. E todos ouvimos, silenciosos como sombras e ignorados como tal, quando o gigante baiano das terras de Cícero Dantas, com os olhos orvalhados, abriu seu enorme espírito ao pequeno grande amigo sentado à sua frente.

Sabe uma coisa, Galinho? – Começou com voz rouca e profunda, pigarreou e continuou – O mundo é pequeno mesmo, mas nem tanto assim. As histórias se repetem, se cruzam, vão e vêm, mas há sempre o risco de uma hora, nesse vai-e-vem, elas se baterem e se perderem pra outros rumos mais tortos. Todas estraçalhadas... Que nem a minha. Eu acordava sempre na hora do galo e bebia uma golada de café, às vezes comia um pedaço de cuscuz, daí dava um beijo na minha negra e subia na bicicleta pra ir pra roça de café, lá mesmo em Cícero Dantas, onde a gente morava só os dois, que filho a pobre da negra não podia ter. Também, filho pra passar fome aqui igual a gente, melhor nem ter. Bom! Naquele dia eu cacei a bicicleta feito um doido, mas o jeito foi ir pra roça de pés mesmo. Cheguei atrasado e todo esbaforido de canseira, atravessei o dia colhendo café sem parar nem pra marmita, que acabou azedando na sacola. À tarde, nem entrei em casa, pois queria pegar a venda aberta ainda. Deu tempo, e ela estava lotada de gente da vizinhança, o que eu achei bom demais. Pedi, quase gritando, pro seu Luiz me vender o maior facão que ele tivesse lá. O pobre do seu Luiz ficou pra lá de assustado, mas me trouxe o danado pelo qual paguei com todo o dinheiro que tinha na algibeira e nem quis saber do troco. Saí praguejando da venda, que era pra toda a gente ouvir que eu não voltava a descansar a cabeça enquanto não matasse o desgraçado que tinha roubado a minha bicicleta. Estava caindo o finzinho da tarde, eu sentei na porta da minha casa amolando o facão e esperando, sem me abalar um nada com o desespero da minha companheira. A vizinhança se encarregou de espalhar a notícia, mas ninguém foi besta de ir por a cara comigo. Pena é que a notícia só ficou na vizinhança e não chegou àqueles que só passavam por ela. Não deu tempo de ninguém avisar pro sujeito, eu vi minha bicicleta apontar na entrada da vila e fiquei cego. Levantei e fui de encontro. Ele vinha muito depressa, mas eu ainda consegui enxergar um risinho na cara dele antes de se dar por mim, e foi a última coisa que eu vi. Toma seu cabra safado! – Eu gritei. E só foi eu gritar e a pressa dele já tinha acabado. Da minha liberdade ainda resta o direito de poder olhar praquele ceuzão ali, além das grades. Mas isto é só quando olho pra cima, pois aqui dentro eu só vejo escuridão. Foi já aqui na Paulo Afonso que eu soube da verdade. Na manhã daquele dia amaldiçoado, enquanto eu fuçava o barraco atrás da bicicleta, um pai de família saía pra lida, ouvindo, como todos os dias, o pedido do filho por um presente tão sonhado. Pai, hoje o senhor me compra a bicicleta? Dizia. E pelo que contou a mulher, o homem quase nunca respondia. Simplesmente não queria mentir e, entre isto e desiludir o menino, preferia ficar mudo. Mas naquele dia à tarde, voltando para casa, o homem imaginou ter sido alvo dum milagre, quando topou no seu caminho um moleque maltrapilho, armado de uma triste história de pobreza e fome da família, que usou para justificar a necessidade de se desfazer de uma coisa valiosa, sua bicicleta. Era a minha bicicleta, que o diabo do moleque confessou aí pros polícia, que vendeu por uma mixaria àquele pai de família, abusando da sua inocência de sertanejo e desespero de pai. Dali em diante, o coitado do homem, doido de ansiedade para ver o filho e realizar o sonho do pobre, pedalou desembestado direto para a morte. Além da minha liberdade, muita coisa se perdeu naquela tarde. Um inocente perdeu a vida. Uma criança perdeu, com a vida do pai, um sonho, a esperança, a fé. Por uma simples bicicleta. Mas não era uma simples bicicleta. Era a minha bicicleta, a bicicleta que o meu velho pai me deu, depois de eu ter pedido tantas vezes, quando ele saía pro trabalho, da porta da nossa casinha lá em Cícero Dantas, onde ele nasceu, viveu e morreu velhinho, sem nunca deixar de chamá-la Bom Conselho, pois este nome antigo da cidade significava pra ele tudo o que um pai pobre podia dar pro filho. Desculpe meu pai, eu não posso mais morrer um homem livre e honrado como o senhor foi e quis fazer de mim. Hoje sou um condenado. Eu não soube ouvir seus bons conselhos...


[1] N.A. De Marroque (pão dormido já meio duro). A variação marroco é própria da linguagem usada nas penitenciárias e equivale a café da manhã.


Dárcio Coyote Chaves

Professor de Língua Portuguesa. Poeta, contista e cronista. Graduando em Letras pelo Centro Universitário Padre Anchieta de Jundiaí, com conclusão prevista para dezembro de 2009. Está desenvolvendo uma pesquisa referente à influência do histórico violento colombiano na obra Cién años de soledad de Gabriel García Márquez. É autor do Livro das indignações — poemas —, publicado em 2006, no formato e-livro, pela Editora Ocean.

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