O país do futebol
ANDRÉIA T. COUTO
Era a segunda vez que eu fazia uma incursão a pé pelos arredores da cidade. Ainda não havia saído das cercanias do hotel, e estava ansiosa para fazer um reconhecimento da área, explorar os novos ares, ver o que os meus olhos ansiavam ver: o diferente. O Agasaro Hotel, localizado em uma avenida próxima ao aeroporto Internacional de Kigali, possibilitava caminhadas fora dos padrões turísticos. Enveredando por algumas vielas que nasciam na avenida, tortuosas e sem calçamento, fui parar em um campo aberto, de onde podia ouvir sons de crianças gritando. Aos poucos, à medida que me aproximava, reconheci imediatamente o motivo da gritaria e euforia: um grupo de crianças, 20 para ser exata, corria de um lado para outro, aparentemente de forma desordenada, através de um campo de terra batida, sem trave nos lados opostos ou nenhuma marcação no solo do terreno, mas que caracterizava um campo de futebol. Sentados nos barrancos ao lado do campo, ou em pé em gritaria com os jogadores, outras crianças, adolescentes e alguns adultos estavam reunidos para assistir à “pelada”.
Não resisti e me juntei aos assistentes, tão curiosa com relação ao jogo quanto eles em relação a mim. Afinal, o que fazia aquela mulher branca ali, na periferia da cidade, assistindo um jogo de crianças? Sorri um pouco sem graça e perguntei se podia ficar entre eles e assistir ao jogo. Aos poucos, foram ficando à vontade e, depois de perguntarem de onde eu era, o que fazia ali e mais outras tantas perguntas, voltaram-se ao jogo. Era a minha vez de perguntar, então.
Foi assim que fiquei sabendo que as crianças moravam nas proximidades do bairro de Kanombe, onde, aliás, está localizado o maior estádio de futebol de Ruanda e onde treina e joga a equipe nacional. Também fiquei sabendo que os ruandeses, assim como grande parte dos africanos, são aficionados por futebol, e que os maiores ídolos deles na época (2005), eram Ronaldô (assim mesmo, com sotaque francês), o petit Ronaldô (o Ronaldinho) e o Beckhan. Mais tarde, próximo ao centro, em uma das principais avenidas da cidade, veria um imenso outdoor com uma foto do Ronaldo com o Beckhan fazendo uma propaganda de celular.
Assim, quando disse que era do Brasil, imensos sorrisos de dentes alvíssimos se abriram para mim: era uma representante legítima de um de seus maiores ídolos! Quase uma embaixadora do futebol brasileiro na África. Perguntaram se eu gostava de futebol, se jogava, se ia em estádios, se torcia pela equipe brasileira, se tinha algum time de predileção, como era o Ronaldo (como se eu o conhecesse pessoalmente) e – o principal – se trazia comigo alguma camisa da seleção brasileira. Embora tivesse levado na mala um jogo completo de doze uniformes da seleção brasileira para crianças do tamanho de 6 a 8 anos para dar de presentes a alguma criança que conhecesse, disse que não, pois não haveria como distribuí-las sem causar alguma confusão entre as dezenas de crianças que estavam ali.
Uma das coisas que me chamou a atenção foi a bola: bem menor do que uma bola de futebol, seu material também era diferente. Dali de onde estava, não podia ver direito, mas parecia dura e não quicava. No final do jogo, quando todos se reuniram em torno de mim para ver a brasileira, pude ver a bola de perto e pegá-la: era dura, áspera e pesada. Perguntei do que era feita e disseram que era de folha de bananeira enrolada sobre várias camadas de folhas que, prensadas, formavam uma espécie de pasta. As folhas que envolviam a “bola” eram bem presas com uma espécie de corda. Esse material tornava a bola pouco propícia ao jogo, além do que as crianças jogavam descalças. O uso de um tênis era algo impraticável, não somente para jogar. Eles simplesmente não tinham acesso a um par deles. Mais tarde fiquei sabendo que esse expediente era utilizado pelo país afora, pois as bolas eram objetos de luxo e como as crianças adoravam futebol, desenvolveram essa técnica da folha de bananeira para seus jogos informais.
Aquele final de tarde foi inesquecível. Me fez pensar, como muitas outras vezes pensaria depois, em como a realidade deles não se afastava muito da nossa, em vários aspectos. Ver aquelas crianças ali jogando, num campo improvisado, na periferia da cidade, descalças e com um objeto que de bola mal tinha a forma, bem poderia ter me abstraído e pensado: estou em casa.
Andréia T. Couto —Doutora em Planejamento e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora dos cursos de Letras e Jornalismo.
revista Griffe
Era a segunda vez que eu fazia uma incursão a pé pelos arredores da cidade. Ainda não havia saído das cercanias do hotel, e estava ansiosa para fazer um reconhecimento da área, explorar os novos ares, ver o que os meus olhos ansiavam ver: o diferente. O Agasaro Hotel, localizado em uma avenida próxima ao aeroporto Internacional de Kigali, possibilitava caminhadas fora dos padrões turísticos. Enveredando por algumas vielas que nasciam na avenida, tortuosas e sem calçamento, fui parar em um campo aberto, de onde podia ouvir sons de crianças gritando. Aos poucos, à medida que me aproximava, reconheci imediatamente o motivo da gritaria e euforia: um grupo de crianças, 20 para ser exata, corria de um lado para outro, aparentemente de forma desordenada, através de um campo de terra batida, sem trave nos lados opostos ou nenhuma marcação no solo do terreno, mas que caracterizava um campo de futebol. Sentados nos barrancos ao lado do campo, ou em pé em gritaria com os jogadores, outras crianças, adolescentes e alguns adultos estavam reunidos para assistir à “pelada”.
Não resisti e me juntei aos assistentes, tão curiosa com relação ao jogo quanto eles em relação a mim. Afinal, o que fazia aquela mulher branca ali, na periferia da cidade, assistindo um jogo de crianças? Sorri um pouco sem graça e perguntei se podia ficar entre eles e assistir ao jogo. Aos poucos, foram ficando à vontade e, depois de perguntarem de onde eu era, o que fazia ali e mais outras tantas perguntas, voltaram-se ao jogo. Era a minha vez de perguntar, então.
Foi assim que fiquei sabendo que as crianças moravam nas proximidades do bairro de Kanombe, onde, aliás, está localizado o maior estádio de futebol de Ruanda e onde treina e joga a equipe nacional. Também fiquei sabendo que os ruandeses, assim como grande parte dos africanos, são aficionados por futebol, e que os maiores ídolos deles na época (2005), eram Ronaldô (assim mesmo, com sotaque francês), o petit Ronaldô (o Ronaldinho) e o Beckhan. Mais tarde, próximo ao centro, em uma das principais avenidas da cidade, veria um imenso outdoor com uma foto do Ronaldo com o Beckhan fazendo uma propaganda de celular.
Assim, quando disse que era do Brasil, imensos sorrisos de dentes alvíssimos se abriram para mim: era uma representante legítima de um de seus maiores ídolos! Quase uma embaixadora do futebol brasileiro na África. Perguntaram se eu gostava de futebol, se jogava, se ia em estádios, se torcia pela equipe brasileira, se tinha algum time de predileção, como era o Ronaldo (como se eu o conhecesse pessoalmente) e – o principal – se trazia comigo alguma camisa da seleção brasileira. Embora tivesse levado na mala um jogo completo de doze uniformes da seleção brasileira para crianças do tamanho de 6 a 8 anos para dar de presentes a alguma criança que conhecesse, disse que não, pois não haveria como distribuí-las sem causar alguma confusão entre as dezenas de crianças que estavam ali.
Uma das coisas que me chamou a atenção foi a bola: bem menor do que uma bola de futebol, seu material também era diferente. Dali de onde estava, não podia ver direito, mas parecia dura e não quicava. No final do jogo, quando todos se reuniram em torno de mim para ver a brasileira, pude ver a bola de perto e pegá-la: era dura, áspera e pesada. Perguntei do que era feita e disseram que era de folha de bananeira enrolada sobre várias camadas de folhas que, prensadas, formavam uma espécie de pasta. As folhas que envolviam a “bola” eram bem presas com uma espécie de corda. Esse material tornava a bola pouco propícia ao jogo, além do que as crianças jogavam descalças. O uso de um tênis era algo impraticável, não somente para jogar. Eles simplesmente não tinham acesso a um par deles. Mais tarde fiquei sabendo que esse expediente era utilizado pelo país afora, pois as bolas eram objetos de luxo e como as crianças adoravam futebol, desenvolveram essa técnica da folha de bananeira para seus jogos informais.
Aquele final de tarde foi inesquecível. Me fez pensar, como muitas outras vezes pensaria depois, em como a realidade deles não se afastava muito da nossa, em vários aspectos. Ver aquelas crianças ali jogando, num campo improvisado, na periferia da cidade, descalças e com um objeto que de bola mal tinha a forma, bem poderia ter me abstraído e pensado: estou em casa.
Andréia T. Couto —Doutora em Planejamento e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora dos cursos de Letras e Jornalismo.
revista Griffe
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