Do mote da adaptação para a criação de uma nova linguagem

CRISTINA TISCHER RANALLI

Segundo a etimologia, adaptar significa adequar, tornar apto e em se tratando de uma obra literária, adaptação significa modificar um determinado texto a fim de adequá-lo a um outro público. Adaptar, portanto, não é tarefa fácil e o roteirista, pessoa que faz a adaptação, não menos importante que o próprio autor da obra adaptada. Literatura, teatro, cinema são canais distintos para a expressão da arte e como têm o objetivo comum de transmitir arte, lidar com a emoção, com a catarse, são comumente interligados pelas adaptações. Assim sendo, o autor, o dramaturgo e o cineasta estão num mesmo patamar de “importância artística”, já que cada um desenvolve sua arte respeitando os limites de seu meio de comunicação.
É comum assistirmos a adaptações de romances em forma de cinema. A indústria cinematográfica se vale com certa frequência de obras literárias para produzir longas-metragens que encantam o público e que, muitas vezes, fazem com que esse mesmo público procure o romance em questão para saber mais sobre a obra. A busca do espectador pelas várias linguagens de uma mesma obra de arte tem seus prós e seus contras, já que nem sempre o espectador encontrará a mesma obra que foi buscar. Como assim? Perguntaria o leitor.
Uma adaptação tem como ponto de partida um romance, por exemplo, que será transposto para o cinema ou para o teatro. Os dados contidos no romance são apenas fontes de inspiração do roteirista, pois a simples cópia de um romance em forma de roteiro tornaria a história inviável. O roteirista não tem a obrigação de manter-se fiel ao material original, uma vez que as linguagens são diferentes. Cada canal comunicacional tem sua característica própria, portanto é preciso manter a essência da obra original ao escrever uma adaptação, mas não obrigatoriamente todos os elementos da obra original na obra adaptada.
Syd Field (2001) afirma em seu Manual do roteiro que “Um romance geralmente lida coma vida interior de alguém, os pensamentos, sentimentos e memórias do personagem que ocorrem dentro do cenário mental da ação dramática”.
Ora, como transpor essa “vida interior de alguém” em diálogos teatrais, por exemplo? Syd Field ainda complementa em seu livro que:

Uma peça de teatro, por outro lado, é narrada em palavras, e os pensamentos, sentimentos e eventos são descritos em diálogos num palco contido nos limites do arco do proscênio. Uma peça de teatro é lida com a linguagem em ação dramática (FIELD, 2001).

Tendo em vista estes dois exemplos de manifestação artística, percebemos que adaptar uma obra de arte não é tão simples quanto parecia ser a princípio. Quem se propõe a fazer uma adaptação deve ter a habilidade de fazer correspondências entre linguagens distintas, além de ter a criatividade para realizar as mudanças necessárias das linguagens sem comprometer a essência da obra original. Enfim, o roteirista deve produzir um texto original, já que é impossível transpor detalhes de uma obra de cá para lá.
Doc Comparato (1983), em seu livro Roteiro, afirma que nem toda obra pode ser adaptada e que o roteirista deve estar ciente deste fato para que ele possa fazer a escolha adequada a fim de garantir uma trans-posição sem perda de qualidade. Se o roteirista não for habilidoso em sua escolha e em sua técnica, corre-se o risco da adaptação ficar pior que a obra original, embora seja difícil afirmar que uma obra é melhor ou pior que a original; estamos falando de linguagens diferentes com formas diferentes para públicos diferentes, portanto de mecanismos diferentes de análise artística.
Pensando nestes aspectos todos, temos muitos exemplos a serem destacados, todavia vejamos o caso da obra Notre Dame de Paris (O corcunda de Notre Dame), de Victor Hugo. Sabemos que é um romance belíssimo, cujas personagens se entrelaçam num jogo de interesses emocionais e políticos. Este romance é bastante divulgado mundialmente, haja vista o número de adaptações espalhadas pelo mundo através das décadas. Há filmes clássicos, há desenhos animados e também musicais.
Há um musical, montado em 1999 em Paris, no Palais dês Congrès de Paris (Palácio do Congresso de Paris), que reúne três técnicas em uma: o romance, o teatro e o cinema. O roteirista Luc Plamondon soube transpor ao máximo o romance para o palco. É possível identificar cada cena do romance nos atos da peça teatral, comprovando a fidedignidade deste roteirista. Charles Talar e Loulling Sysyteme divulgaram esta adaptação teatral para a tela, utilizando-se das técnicas cinematográficas para intensificar o drama vivido pelas personagens e eis que surge a obra-prima: Notre Dame de Paris.
Os atores-bailarinos-cantores preocupam-se com a apresentação teatral, já que a peça foi filmada enquanto ocorria a apresentação da peça para aproximadamente três mil pessoas.
As músicas foram compostas não só para transmitirem uma história em si, mas também para intensificarem a dramatização das cenas e a trama entre as personagens. Assim sendo, podemos dizer que há uma adaptação feita do romance para o teatro e uma adaptação em menor grau quando a obra é transposta para a tela. Por que uma adaptação em menor grau? A transposição do romance para o teatro segue todas as normas de adaptação com a mudança de foco de linguagem, já a adaptação realizada para a tela só se manifesta no jogo de câmaras para captar as expressões dos atores no momento da representação.
Temos a visão panorâmica do palco na Festa dos tolos, assim como temos o big close na Esmeralda quando ela se apresenta a Phoebus. O deslocamento da câmara obedece aos interesses do diretor quanto à intensificação das expressões das personagens durante toda a peça, garantindo assim a dramaticidade e a catarse.
Os ângulos são muito bem utilizados para expressar a altivez de Frollo, por exemplo. Com a câmara baixa, há a ênfase na postura majestosa de Frollo, como era de se esperar de um representante de uma Igreja tão importante quanto a Notre Dame de Paris. É claro que na época em que a história se desenrola a Igreja exercia um papel determinante sobre a sociedade e sobre o Estado, então Frollo tem a função de representar todo esse poderio do “corpo” e da “alma” que se encontrava nas mãos da Santa Madre Igreja. Frollo, ao admitir-se apaixonado por Esmeralda, é captado em big Close para que sua angústia transpareça, angústia esta que irá destruí-lo e ele tem ciência disso. No momento em que ele se sente pressionado pelo meio, ou seja, pela própria Igreja e pelo sistema a que deve respeito e devoção, a câmara enquadra-o em corpo inteiro para evidenciar, inclusive, sua insignificância frente ao tamanho da Catedral e o poder que ela representa.
Quasímodo é visto com a mesma câmara baixa quando está na Festa dos tolos e é coroado Rei, entretanto basta Frollo aproximar-se dele que o foco da câmara muda para câmara alta, ressaltando o quanto Quasímodo é inferior ao Frollo. Pelo próprio fato de sua deformidade física, Quasímodo fica sempre abaixo da estatura das personagens que contracenam com ele, afinal ele é o oprimido por todos. É oprimido pela sociedade que não o aceita por ser feio e deformado, numa época em que se acreditava que a aparência deixava transparecer a essência, e é oprimido por Frollo que, embora tivesse compaixão do bebê abandonado na porta da Catedral de Notre-Dame, não perdia a oportunidade de se enaltecer pelo ato praticado.
Esmeralda ora é captada pela câmara alta, ora pela câmara baixa. Esmeralda é uma personagem interessante. Seu maior pecado para a época foi nascer bela. Cigana, que dominava toda a arte atribuída a uma mulher de sua classe, dançarina e com um poder de sedução natural, deixava os homens loucos, inclusive Quasímodo. Apaixonam-se por ela: Frollo (representante da Igreja), Phoebus (soldado do Rei), Quasímodo (o corcunda), Clopin (Rei dos ciganos) e Gringoire (o poeta).
Com esse número de fãs, não é difícil entender o porquê da mudança de câmaras várias vezes. Em cada situação a câmara tem a necessidade de um posicionamento diferenciado, afinal ela é vista de maneira diferente por cada um que se apaixona por ela. Frollo a vê como o Diabo, pois é a criatura que o faz se desviar da Igreja e pensar na carne; Phoebus a vê como uma paixão, já que está de casamento marcado com Fleur-de-Lys; Quasímodo a vê como uma deusa e a única mulher que poderia amar na vida; Clopin passa a vê-la como mulher e isso o deixa incomodado, não imaginava que depois de tantos anos cuidado da menina Esmeralda pudesse desenvolver tais sentimentos; e Gringoire a vê como uma musa, sua senhora a quem deve toda a devoção e a própria vida, não apenas porque Esmeralda realmente salvou-lhe a vida, mas porque nutre o cavalheirismo medieval em que o trovador é capaz de morrer por sua senhora.
A câmara frontal, que tem a função de demonstrar ação e emoção, é usada na maioria das vezes em que Gringoire aparece. Gringoire é poeta numa sociedade em que os poetas não eram bem vistos, nem pelo povo, analfabeto, nem pela Igreja, letrada e interessada em manter o poder.
Ler e escrever, nesta época, era muito perigoso e o nosso narrador-personagem bem sabe disso. Ele é a única personagem que não pertence à classe dos nobres e que consegue ter uma conversa erudita com Frollo, representante do poder e da sabedoria divina e terrena. É ele quem apresenta a narrativa, participa dela e a finaliza.
Retomando a afirmação de Doc Comparato (1983) em seu livro Roteiro:

Adaptar significa transpor uma obra de um veículo para outro, adaptando o conteúdo da obra original a um outro suporte.

Refletindo sobre esta afirmação, podemos concluir que nesta adaptação do romance hugoniano para o teatro em forma de musical, temos a maestria dos profissionais envolvidos neste projeto, para criar uma nova obra, a qual pudesse ser nova quanto ao suporte, mas que ao mesmo tempo se mantivesse conhecida e fiel à sua essência original. Não menos importante é o papel do diretor do filme, já que também imprimiu sua visão da obra ao orientar as câmaras nos vários planos de expressão que estavam sendo encenados.
Impossível não se emocionar ao ler o livro, ao assistir à peça teatral ou ao assistir ao DVD. São formas artísticas distintas convergindo para um mesmo fim: emocionar o espectador e levá-lo à catarse.

Cristina Tischer Ranalli — Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialização em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela Faculdade de Ciências e Letras Padre Anchieta. Professora de Literatura e Letras.

revista Griffe

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A viagem de Platão a Siracusa

O continente branco: viagem ao fim do mundo

Livros