CARMEN DE GEORGE BIZET


Cristina Tischer Ranalli

George Bizet (1838-1875) foi um compositor francês nascido em Paris e filho de um professor de canto e de uma pianista. Já era de se esperar que frequentasse um conservatório desde a mais tenra idade e nesta breve jornada, viveu apenas 37 anos, foi aluno de Gounod e Fromental de Halévy. Conquistou vários prêmios por seu desempenho musical e foi um pianista admirado por Liszt. Era apreciador do teatro lírico, o que contribuiu com a sua produção artística. Das obras que compôs, Carmen é a mais famosa, mas não foi assim logo na estréia. Bizet foi incompreendido com Carmen, já que inovou ao compor a ópera(1). O público, puritano, ficou chocado com o ritmo e com as aparições de mulheres fumando no palco, por exemplo.
Primeira reação à parte, Carmen é a obra-prima de Bizet e da ópera francesa. Inspirada num romance de Merimée, Bizet convidou os escritores Henri Meilhac e Ludovic Helévy para fazerem o libreto(2) de sua composição e, como em toda adaptação, as modificações necessárias foram feitas a fim de garantir a dramaticidade idealizada por Bizet e a operacionalidade necessária a uma ópera.
Classificada como opéra-comique(3) conta a história de Carmen, a protagonista, uma cigana sensual e independente na agitada Sevilha do século XIX. Essa ópera é dividia em quatro atos e traz bem definidas as cenas e os dramas vividos pelas personagens.
No Ato I temos a apresentação das personagens e a visualização do tempo e espaço da obra. Vê-se Sevilha, os soldados, as crianças brincando e imitando os soldados, a sociedade local que passeia pela praça, as mulheres que trabalham na fábrica de cigarros, Carmen, D. José, Micaëla e Zúñiga. Nesse ato temos a ária(4) mais famosa de Carmen, L´amour est un oiseau rebelle(5) e é nesse momento que Carmen seduz D. José e a trama começa a se desenvolver. É nesse ato ainda que Carmen briga na fábrica de cigarros e acaba ferindo uma das companheiras de trabalho. Como consequência de seu ato vai a julgamento e desacata a autoridade de Zúñiga. D. José recebe a missão de prendê-la e acaba, definitivamente, seduzido por ela. Ele a deixa fugir da prisão e ele próprio é preso por deixá-la escapar.
No Ato II entramos na taberna de Lilás Pastia. Lá estão Carmen, amigas e Zúñiga, que dá a notícia sobre a liberdade de D. José, o que deixa Carmen feliz. É nesse ato também que conhecemos Escamillo, um bravo toureiro que encanta Carmen e se encanta por ela. Pronto: o triângulo amoroso está formado. Depois de encantar Carmen, Escamillo sai de cena. D. José chega e Carmen dança e canta para ele. Carmen o convida para fugirem de Sevilha, mas D. José não aceita seu convite, pois não quer deixar o exército. Porém, como em toda boa trama, Zúñiga chega à taberna e discute com D. José, que o desafia. Ao desafiar seu superior, D. José mostra sua índole violenta, seu temperamento turrão e sua personalidade indomada. Depois da discussão D. José só tem duas alternativas: a prisão ou a deserção. A opção pela segunda alternativa é certa.
No Ato III estamos nas montanhas e o tom brincalhão e alegre desenvolvido até então desaparece. D. José já desenvolveu um ciúme doentio por Carmen, o que a sufoca. As cenas são pesadas e sinistras. D. José entra em crise psicológica: ama Carmen, seu ciúme é doentio, sente saudades da mãe, quer voltar à terra natal, não quer deixar Carmen por medo de ser traído... Micaëla retorna nesse ato dizendo a D. José que a mãe dele está no leito de morte e quer vê-lo antes de partir. A crise de D. José aumenta e Carmen vê ali a oportunidade de livrar-se desse amor doentio. D. José parte para ver a mãe e Carmen vê a própria morte nas cartas.
No Ato IV encontramo-nos em frente à arena das toureadas. Carmen está com Escamillo para acompanhá-lo em mais uma brilhante toureada. D. José retorna e o ciúme o corroi ao ver Carmen com Escamillo. Carmen é advertida pelas amigas sobre a presença de D. José e vai falar com ele. Neste tenso diálogo Carmen deixa claro que não quer mais ficar com D. José, mas ele não consegue aceitar a possibilidade de ficar sem «sua» Carmen. O sentimento de posse invade o corpo de D. José e num momento de loucura, ao ver que não conseguirá convencê-la de partirem juntos, esfaqueia-a. Depois, arrependido, ajoelha-se ao lado do corpo de seu amor consumindo-se pela dor. Os soldados chegam e ele confessa o crime e se entrega às autoridades.
É claro que na adaptação perdemos alguns personagens e ganhamos outros. Micaëla é idealizada para a ópera com a função de mostrar quem é D. José, sua personalidade, sua insegurança e seu passado. É ela quem chega para falar da mãe de D. José, para intensificar a crise psicológica do terceiro ato e dar uma breve liberdade a Carmen do amor doentio que D. José sentia pela cigana. Já Garcia, marido de Carmen no romance, não aparece na ópera. Bizet quis uma Carmen sensual, independente, altiva e não adúltera. É através de Carmen, em contraste com as outras mulheres da sociedade, que percebemos a condição feminina do século XIX. Carmen quebra padrões, desafia a sociedade ao expor que seduz para conseguir dos homens o que quer. Ela tem a função, ainda, de libertar a mulher daquela sociedade da opressão masculina ao fazê-la refletir sobre sua condição de submissão social.
Enquanto algumas mulheres refletiam sobre seu poder de sedução, os homens tinham a oportunidade de visualizar a manipulação que sofriam, ou poderiam sofrer, nas mãos de uma mulher ou nos braços de uma paixão desmedida. Quem melhor que uma cigana para externar essa situação tão concreta, porém tão velada. Mais uma vez a figura da cigana ganha evidência na arte, afinal Victor Hugo em O Corcunda de Notre Dame, fez de Esmeralda, uma cigana belíssima, o ápice do triângulo amoroso envolvendo Quasímodo e Frollo. Nessa ópera de Bizet mais uma vez a cigana, na figura de Carmen, é a responsável pela formação de mais um triângulo amoroso na história da arte. Agora temos Carmen, D. José e Escamillo.
O mote(6) do triângulo amoroso é recorrente nas artes de um modo geral. Encontramo-no na literatura, na música, na ópera ou em quaisquer manifestações artísticas. A recorrência de um tema não o leva ao desgaste artístico, pelo contrário, só contribui para o enriquecimento da idealização, da reflexão, da manifestação do pensamento do ser humano sobre um mesmo assunto. É o que percebemos, visualizamos, refletimos e amamos em Carmen. A oportunidade de reflexão que nos é dada pela arte é o que nos faz precisar dela e admirar os artistas que concretizam uma filosofia, uma crença, que nos conduzem o pensamento através dos sentidos.
A ópera, tão pouco divulgada em nosso meio social, é uma manifestação artística completa que leva o espectador à catarse(7), já que ativa os sentidos humanos de uma maneira global. Dessa forma, através da catarse, a ópera atinge sua função artística: emociona, entretém, leva à reflexão e alimenta a alma humana.
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1 Drama cantado com acompanhamento de orquestra.
2 Texto de uma ópera, em verso ou prosa.
3 Ópera francesa com diálogo falado, alternando passagens musicais. Não é necessariamente humorística, mas antes sentimental e ingênua.
4 Canção para solista utilizada em oratórios e óperas.
5 «O amor é um pássaro rebelde»
6 Qualquer sentença breve tomada por escritores como ponto de partida para o desenvolvimento de uma obra.
7 Liberação de pensamentos e emoções que estavam reprimidos no inconsciente, seguindo-se de alívio emocional.

(*) Professora de Literatura brasileira da Universidade Paulista – UNIP.

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