A BANDEIRA DA ÉTICA NA DEFESA DE CERTOS INTERESSES

Reinaldo Sampaio Pereira

Dentre as muitas polêmicas que o filme Tropa de Elite suscitou, desviaremos o olhar para a da pirataria. Nesse sentido, lembremos que o filme foi visto em cópias piratas antes mesmo de entrar em cartaz. Esse episódio ganhou espaço na mídia, contribuindo para encorpar a discussão sobre a pirataria. Neste artigo, quero me reportar especificamente à pirataria de DVDs e também de CDs.
Os discursos que rechaçam a pirataria são de natureza das mais diversas, como o que alerta para a não arrecadação de impostos pela produção e comercialização dos produtos piratas, ou então o que salienta que tais produtos estragam os aparelhos que os reproduzem. Há o discurso que apela para a sensibilização em relação ao trabalho dos que produzem cultura, lembrando que a diminuição dos seus ganhos (ocasionada pela pirataria) pode levá-los a diminuírem a sua produção e também produzirem obras em menor tempo (afetando a qualidade das mesmas), para a obtenção de ganhos que julguem valer a pena produzirem o que produzem.
Tenho ouvido e lido, por exemplo, que a pirataria beneficia aquele que a pratica e prejudica a sociedade como um todo, ou pelos motivos acima apontados ou por causa do mau exemplo daquele que pratica tal ato ilícito, como se tem procurado mostrar antes do início de filmes recentes (em uma campanha anti-pirataria), como no episódio em que o filho, seguindo o modelo do pai ao comprar um DVD pirata, falsifica as notas do seu boletim escolar.
Outro discurso recorrente para rechaçar a pirataria é aquele que apela para a «falta de ética» em tal prática. Sou dos que, à princípio, é contra a pirataria, mas também sou dos que desconfiam de alguns discursos correntes que rechaçam tal prática. Quero chamar a atenção, neste artigo, para alguns pontos de discursos éticos contrários à pirataria.
Sou favorável a um modelo ético em que deve ser considerado bom aquilo que pode fazer bem a uma boa parcela da sociedade e, em oposição, mau, àquilo que faz mal à boa parcela social. Dessa perspectiva ética, formulemos o problema da pirataria nos seguintes termos: será que a pirataria pode trazer algum tipo de benefício para boa parcela da população? Se houver, caberá então certa relativização do discurso que tende a encontrar apenas aspectos ruins na pirataria, o que forçaria a relativizar certos valores atribuídos a ela.
Para apresentar um certo ponto de vista que considero bastante relevante para pensar a questão da pirataria, começo por lembrar de uma entrevista com o cantor Lobão em que ele contava que estava vendendo os CDs da sua gravadora em bancas de jornal. Mencionava o cantor que ele vendia os CDs, de modo geral, pela metade do preço convencional, e ainda ganhava rios de dinheiro. Se tal era assim, é de suspeitar que as grandes gravadoras e distribuidoras ganhavam fortunas com a venda de CDs. Lembremos ainda que pagávamos, antes da pirataria virar prática corriqueira, preços exorbitantes por um CD. Sendo assim, a compra de CDs talvez fosse vedada ou bastante restrita a boa parcela da população. Em um país em que comprar um CD pode implicar em colocar menos alimento na mesa, diminuir o valor de CDs e de DVDs pode significar, dentre outras coisas, tornar a cultura relativa a CDs e DVDs (seja ela de que tipo for) acessível a uma maior quantidade de pessoas, ou, valendo-nos de um jargão muito em voga, conferir maior democratização em relação à cultura desse tipo.
Se o consumo de CDs e DVDs é produto de bem-estar social, então medidas que podem contribuir para maior acesso a eles podem, da perspectiva ética supramencionada, serem consideradas boas do ponto de vista ético. Não significa isso, de modo algum, que, em nome da ética, deve-se liberar a pirataria, pois talvez a liberação total da pirataria viesse a gerar, no cálculo geral, maior quantidade de malefícios sociais que de benefícios. Mas essa suspeita não deve representar impedimento para a percepção que a pirataria permitiu incrementar o acesso ao consumo de cultura, não só porque os valores dos produtos piratas costumam ser inferiores aos não pirateados como também os preços dos produtos não pirateados foram pressionados para baixo (para se tornarem competitivos com os produtos piratas), tornando-os mais acessíveis à população em geral, deste modo, «moralizando» os preços que as indústrias fonográfica, produtora e distribuidora de filmes exorbitante e de certo modo «livremente» impunham.
Nesse sentido, tomarmos como totalmente «errado», ou, mais apropriadamente, completamente mau, do ponto de vista ético, a pirataria, talvez seja simplificadoramente exagerado. A pirataria é um fenômeno complexo, com muitas implicações sociais e, enquanto complexo, deve ser analisada a partir de diversos ângulos, obedecendo minimamente a sua complexidade. Acho estranho que ela seja apenas vista da perspectiva de algo «errado», portanto condenável também do ponto de vista ético. O bem e o mal, o «certo» e o «errado», da perspectiva do modelo ético que estamos aqui adotando é estabelecido pela própria sociedade. Não se trata aqui de valores naturais (os quais, a rigor, são inexistentes), mas criados socialmente e com certa finalidade. Se é assim, cabe questionar: os valores referentes à pirataria são criados por quem? Para atender a qual finalidade?
Parece-me que a adoção de tais valores beneficia sobretudo quem faz fortuna com o produto daqueles que produzem arte, como a indústria fonográfica, as produtoras e distribuidoras de filmes, etc. Desse modo, defender o discurso contra a pirataria é, em certa medida, defender os interesses de tais indústrias. Cabe aqui sustentar novamente que sou contrário à pirataria, mas sou contrário, antes, à «ditadura» de preços imposta pelas indústrias supracitadas, a qual determina, de certo modo, quem terá ou não acesso a certa produção cultural. Sou contrário à pirataria, mas, antes, sou contrário à falta de incentivo à produção e à criação de mecanismos de facilitação do consumo da produção cultural. E, antes de tudo isso, sou contrário a outros fatores, como a má distribuição de renda, que faz com que a indústria da pirataria se fortaleça demasiadamente.
Acho muito importante discutirmos a pirataria. Mas acho que tal discussão deve vir apresentada em um contexto mais amplo, em um contexto em que os seus elementos causadores sejam discutidos em sua grande variedade, e não apenas sendo esses elementos selecionados, para então ficarmos discutindo apenas aquelas causas da pirataria as quais as indústrias que muito lucram (à custa da restrição ou negação do consumo de cultura de parte significativa da sociedade) com os produtos da arte selecionam para nós. Por que não discutirmos, no contexto da discussão da pirataria, leis e programas que incentivam a produção e o consumo, de modo generalizado, de cultura? Não seria melhor discutirmos melhor distribuição de renda, para (além de minimizar inúmeros problemas decorrentes da má distribuição) criar condições de as pessoas poderem pagar por um produto com garantia, com diminuição de riscos de alguns tipos, contribuindo para a geração de impostos, etc?
Quanto à observação segundo a qual a pirataria viola as regras éticas, acho que vale a pena atentarmos para o que certa vez ouvi, se a minha memória não me engana, do professor Antônio Cândido: é preciso pensarmos em uma ética da transgressão, isto é, uma ética que exige, quando encontramos regras e valores «caducos», que mais prejudicam que beneficiam a sociedade, que aprendamos, em nome da ética e do bem-estar social, a transgredir tais regras. Acredito que seja o caso de relativizarmos os valores difundidos em relação à pirataria, ao menos enquanto não os utilizarmos em um contexto mais amplo de análise e discussão. A bandeira da ética, que poderia ser utilizada para colaborar para incrementar a discussão da pirataria, não deveria ser utilizada justamente para empobrecê-la e para defender interesses específicos de uma minoria.

(*) Reinaldo Sampaio Pereira, Professor universitário de Filosofia e Ética. Membro do Grupo de Pesquisa Edutec da Universidade Paulista – UNIP de Jundiaí.

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