VICTOR HUGO: ENTRE A LITERATURA E A ARQUITETURA


Cristina Tischer Ranalli

Victor Hugo (1802-1885) foi, sem dúvida, um grande homem. Retratou seu tempo com maestria e foi reconhecido pelo povo francês como um cidadão que exaltou a história e a cultura francesa. Foi sepultado no Pantheon, monumento concebido por Luís XV como Igreja de Sainte Geneviève, sob a inscrição Aux grandes hommes, la patrie reconnaisante (Os grandes homens, a pátria reconhece).
Escreveu várias obras em estilos diversificados, porém as duas obras que adquiriram maior notoriedade em nível mundial foram: Les Misèrables (Os Miseráveis) e Nôtre-Dame de Paris (O Corcunda de Notre Dame). Esta já ganhou inúmeras adaptações para o cinema, para o teatro e até mesmo para musical e desenho animado; aquela já viajou o mundo num musical de megaprodução, além da adaptação para o cinema.
Sabe-se que Victor Hugo era engajado politicamente e não conseguia se calar frente a fatos históricos que presenciava. Temos, portanto, em suas obras, um retrato histórico e cultural da França de seu tempo, mais particularmente de Paris. Todavia Victor Hugo não admirava apenas a política e justamente por ser um homem engajado socialmente admirava a arte em geral. Devido a esta admiração pelas artes, criou sua própria arte, elegendo a literatura como meio de expressão. Há relatos que atestam que Victor Hugo era um grande admirador da arquitetura e temos como conseqüência desta admiração a obra O Corcunda de Notre Dame. Relatou-se que uma vez, ao subir as escadas da torre da Cathédrale de Nôtre-Dame, em Paris, deparou-se com uma inscrição na parede que dizia «Fatalidade». Partindo desta única palavra desenvolveu todo o romance O Corcunda de Notre Dame.
Realmente a Catedral de Notre Dame é fantástica. Situada na Île de la Cité, sua construção teve início em 1163 e foi concluída apenas em 1345. Sobreviveu a muitos incidentes históricos, como guerras, incêndios, monarquia e governos, além de ter sido a escolhida por Napoleão Bonaparte para sua autocoroação, quando se autotitulou Imperador da França. Em sua fachada é possível observar as esculturas de vinte e oito reis que representam os reis de Israel e Judéia. Acima dos reis, bem no alto das torres, podemos observar as Gárgulas, que embora representassem demônios observando a cidade, tinham a função de calhas, para que as águas pluviais não escorressem pelas paredes da majestosa Catedral. As portas também contam histórias. A porta principal, por exemplo, mostra o Julgamento Final com Cristo e os Apóstolos. Mas a beleza da Catedral não está apenas em seu exterior. É um monumento que comporta por volta de 9 mil pessoas, possui um órgão do século XVIII e um dos mais belos vitrais: a rosácea. Como não pasmar diante de tanta beleza e grandiosidade? Provavelmente Victor Hugo sentiu o mesmo que sentimos quando nos deparamos com esta maravilha da arquitetura edificada por mãos humanas.
A fim de exaltar esta estonteante arquitetura, Victor Hugo cria o personagem Quasímodo, criatura deformada, porém bondosa. Quasímodo observa a cidade ao lado das Gárgulas, que considera suas amigas. A Catedral é, para ele, não apenas seu refúgio, mas seu lar. É ali que vê, aprende e apreende a realidade que o cerca. Está sob a proteção da Igreja, todavia não está livre dos preconceitos sociais, do sarcasmo humano e da intolerância da sociedade. Na trama desenvolvida por Victor Hugo apreendemos uma Paris com problemas sociais, morais e éticos. Quasímodo e Cláudio Frollo representam o contraponto entre essência e aparência. Quasímodo é deformado, surdo, ingênuo, entretanto tem a alma pura. Não consegue ver a maldade humana e age por amor. Já Frollo representa a Igreja, é bem apessoado, influente, inteligente, porém se mostra uma pessoa invejosa, ambiciosa e capaz de lançar mão de qualquer escrúpulo para atingir seu objetivo.
Mas como em todo romance, havia uma mulher: Esmeralda. Ela representa o desequilíbrio do convívio entre Quasímodo e Frollo. Ambos se apaixonam por ela e ela por nenhum dos dois. Tinha medo de Frollo e compaixão por Quasímodo. Neste contexto, Esmeralda desempenhou dupla função: ser a salvação de Quasímodo; ser a perdição de Frollo. Como o ser humano está constantemente entre a salvação e a perdição, concluímos que Esmeralda é uma peça importantíssima neste xadrez literário idealizado por Victor Hugo.
A Catedral desempenha papel ímpar nesta história hugoniana. Ela não é apenas espaço físico, um mero local onde a trama acontece. Ela é o refúgio dos bons, representa a proteção divina e o lugar de penitência dos incautos. Representa o abrigo de Quasímodo, ser marginalizado pela sociedade por não ter a aparência «comum» da maioria dos seres humanos. É a materialização de um dogma religioso, que prega a igualdade entre os homens aos olhos de Deus. É a arte concreta edificada pela arquitetura corroborando com a arte abstrata da literatura. É a Cathédrale de Nôtre-Dame de Paris.

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