UMA CASA SEM PAREDES


Reinaldo Reigrimar

Gritar as palavras seria mais fácil. Falar para todos que atravessarem meu caminho seria difícil. Contar o que me acontece pode parecer história de pescador.
Assim como uma história contada por mais um pescador que dizia estar dentro de um carro na noite de uma pescaria e não conseguia dormir direito. O carro balançava muito. Perturbado com aquilo, foi procurar o que estava acontecendo. Estranho, nada por perto, lanterna nos pneus e lá estava o causador de tudo: um sapo, que ao respirar enchia a barriga de ar e aquilo fazia o carro balançar. É difícil de acreditar, não é?
Não tenho medo, e se quiser me taxar de mentiroso não fico com raiva. O trabalho nesse mundo de «loucos» me faz parar e pensar mais uma vez na vida e em tudo que está para acontecer, ainda. Inúmeras histórias pra pescador nenhum botar defeito.
Como conhecer um velho caseiro de origem grega, trabalhando na casa de uma viúva, que por sinal era muito rica. Engraçado como são as coisas. Só a loucura é capaz de nos levar à uma viagem tão distante da nossa realidade. Não sei, tive a honra de acreditar em um louco, escutar suas histórias e me tornar seu amigo em apenas uma hora.
Seria mais um dia de trabalho nesse mundo de concorrência. Quando alguém me pergunta o que faço na vida, logo penso: Sou jornalista. Mas a verdade é que aqui em Londres meu «ganha pão» é braçal. E logo digo: Trabalho com pedras. Sim, pedras, cerâmicas, mármores e mosaicos. Acabamento de casas, hotéis e restaurantes. Trabalho bem reconhecido na área da construção civil, num país com muito dinheiro pra gastar.
E foi num dia desses de trabalho que conheci o caseiro. Estava fazendo uma medida para o corte de uma pedra de mármore quando um senhor de cerca de 60 anos me desejou um bom dia sem ao menos nos apresentar. Mas já era tarde, e ele, enquanto consertava uma cerca, desejava novamente boa tarde.
Logo nos primeiros minutos de conversa ele começou contando que era grego e que para ir de Londres à Grécia pegava o trem para a Alemanha e depois outro direto para sua cidade. Eram palavras vomitadas em seqüência, e assuntos trocados sem um respiro. Já nos primeiros minutos de conversa reparei que aquele homem não estava em seu estado lúcido real. Havia também um desespero naquela pessoa. Parecia que ele precisava muito daquela conversa, e logo me dei conta de que eu estava perdendo o meu tempo com aquele senhor e me desculpei falando que iria fazer barulho ao cortar a pedra.
Fiquei lá pensando e rindo sozinho do ocorrido. A princípio cheguei a pensar que ele morava na mansão, mas depois percebi que não, pelo tratamento que ele dava à senhora dona da casa. Ele a chamava de Madame Lee, que voltaria apenas dois dias depois. Percebi então que ele era o caseiro. No entanto, a casa parecia dele mesmo, pois havia elogiado nosso trabalho com tom de proprietário. Como diz o ditado, «o gato sai e os ratos fazem a festa».
Madame Lee saíra de viagem. Eu fiquei sozinho naquela casa toda decorada. Incrível como essa viúva tinha tantas coisas espalhadas. Ela gostava de moldura e de arte. Notei que as paredes da cozinha eram repletas de quadros, vários quadros que invocavam a morte de um amor. Em cada parede, em cada metro quadrado havia uma pintura e uma moldura que a abrilhantava ainda mais. Um detalhe interessante era a altura da casa. O meu quarto aqui em Londres tem apenas três metros de altura. Naquela casa são nove metros! Não acreditei quando entrei no toalete de visita, parecia brincadeira, ficou estranha a quantidade de fotos de famílias em molduras dentro do banheiro. Foi difícil sair de lá. Meus olhos atentos a cada fotografia. Algumas estavam tão altas que não era possível enxergar perfeitamente. Era o passado, no presente, dessa senhora misteriosa. Parecia que era feliz, e que tinha sido amada por um homem que estava ausente há muito tempo. Angustiante sensação de nostalgia.
O caseiro me interrompia toda hora com uma história pra contar. Parecia que queria me dizer alguma coisa importante, mas não tinha coragem. Parecia querer minha atenção a qualquer custo. Foi então que agachado no chão olhando para cima e vendo-o de pé, olho no olho, ele disse: «Minha esposa faleceu em abril passado, estou muito triste, essa vida não vale nada. Depois de dois dias, morreu meu filho num acidente na escada.»
Finalmente ele conseguiu, naquele momento, conquistar minha atenção. Eu balançava negativamente a cabeça, não tendo resposta para aquele lamento. Tive que falar alguma coisa de minha solidariedade com aquela dor por perder assim os seus grandes amores. Olhei para os quadros na parede que expressavam a mesma dor. Quadros com poesias que diziam: «Chorarei vários meses, até secar as lágrimas e sobrará sua lembrança, e meus dias serão sempre tristes com sua falta.»
Voltei os olhos nele e disse do meu lamento. Ele insistindo que essa vida era uma merda, não fazia mais sentido. Cuspia palavras em tom desesperador. Parecia que tinha que dividir aquela dor com alguém e aquele dia o escolhido era eu. Logo ele entrava em outro assunto totalmente diferente, falava do mundo e suas guerras, do terrorismo e suas lástimas, falava dos dois filhos que restaram e dos dez quilos que perdeu até então.
Havia me dado uma pausa pro almoço. Ao voltar pro trabalho, o caseiro se apresentou formalmente, agora com nome e tudo. Nicolas, como eu havia imaginado, tinha mesmo 60 anos, e estava perturbado com tantos traumas vividos nos últimos meses. Já não precisava dar mais desculpas para cortar o papo, fazia meu trabalho sem prestar muita atenção no que me falava, apenas expressava o famoso «yes», porque o trabalho não podia parar.
Ele continuava contando detalhes, até as frutas que iria comprar no Mercado Central no dia seguinte e os doces que iria levar para os sobrinhos na Grécia. Ficava entusiasmado quando contava sobre a vida da Madame. Parecia que idolatrava a viúva. Me contou que o marido da Madame Lee fazia negócios com barris de petróleos na Arábia Saudita. Tinha contato direto com o rei.
Esta história já é o bastante para impressionar. Não suficientemente picante quanto o momento que Nicolas me chamou para dizer ter uma coisa importante para mostrar. Eu não disse não, logo o segui em direção a um corredor enorme.
Ele estava com uma chave na mão. Abriu uma porta que dava para uma outra sala escondida. Um salão gigante que ironicamente parecia pequeno para tantos quadros pendurados nas paredes. Não eram os mesmos quadros da cozinha e do banheiro, nem mesmo dos corredores. Eram raridades assinadas por nomes famosos.
Em cada parede havia pelo menos dez enormes quadros pintados em óleo sobre tela. Havia um em especial pintado na madeira. Obras de arte que deveriam enriquecer museus, mas estavam ali naquela sala.
Nicolas foi me falando os nomes e perguntando se eu os conhecia. Me falava dos milhões que custavam cada uma daquelas obras. Um nome em especial me fez arrepiar: Esse é Picasso, você conhece? Não pude acreditar, mas era verdade, era um verdadeiro Picasso de vinte milhões de libras. Aquele quadro na minha frente era algo inimaginável. Extremamente valioso e estava jogado na parede de forma tão desprezada que me fazia sentir triste. As gigantescas paredes daquela casa antiga ficaram pequenas para tantas obras. Precisaria de várias casas daquela para abrigar tamanha quantidade e valor de tantos quadros.
Pareciam quebra-cabeças em peças que não se encaixavam. Nenhum tinha seu lugar de destaque numa única parede, como estamos acostumados a ver.
Madame Lee tinha muito dinheiro, tinha muitos quadros, tinha um Picasso, mas inexplicavelmente não tinha paredes.

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