ETERNAS FAVELAS


Flavio F. A. Andrade

Falar de arquitetura, focar apenas a estética da função, sem mencionar as favelas é mascarar uma parte inseparável da cidade e colaborar com o problema. Não é este o objetivo deste artigo. Pretendo aqui expor algumas questões sobre a negação das favelas. Uma reflexão sobre o caminho arquitetônico inevitavelmente seguido por famílias que vivem em grandes aglomerados urbanos.
Falar sobre arquitetura em lugares desprovidos de higiene e segurança não faz sentido, por um motivo muito simples: se considerarmos que a arquitetura deve servir ao bem-estar das pessoas, concluiremos que esta «arte» não existe nas favelas.
As favelas são apenas tentativas arquitetônicas. São como projetos, que nunca são finalizados. São planos desordenados. Planejamento é uma raridade. Reflexo do desprezo e despreparo. Espelho do país. Uma obra mal executada, sem soluções de reparos. Fazem parte dos cenários urbanos, solitárias, clamam por socorro, sob olhares indiferentes.
O vencedor do prêmio Pritzker¹ de 2006, o arquiteto brasileiro Paulo Mendes da Rocha diz que as favelas do país são «a maior manifestação da consciência da urgência do urbanismo.» O governador do Estado de São Paulo, José Serra, diz que «governar é escolher prioridades.» Se por um lado temos alguns raros arquitetos promovendo o debate sobre a urbanização das favelas, por outro o governo dá as costas ao problema, ao escolher «outras prioridades». E quando tenta qualquer medida temporária, esta não é bem sucedida por falta de continuidade e estudo aprofundado.
Quando casas populares são construídas longe do centro da cidade, em geral em lugares sem infra-estrutura e rede de lazer, na tentativa de solucionar o problema das submoradias, elas se tornam mais um agravante.
Os projetos governamentais, que não saem de graça para a população miserável, visam na maioria das vezes apenas o bem-estar das pessoas que se sentem incomodadas, ou seja, os moradores «legais», os que vivem em prédios e casas, prejudicados também com os problemas que as favelas causam: além da ausência de beleza arquitetônica, a violência, o tráfico de drogas e armas, inerentes à população de baixa renda, que muitas vezes faz uso destes meios para sobreviver. Para o governo, ou os arquitetos contratados por ele, não importa a distância que ficará esta nova comunidade, desde que as casas sejam de alvenaria e tenham endereço legal. Afinal, não podemos negar que uma «casa» numa favela não paga imposto predial. Mais uma fonte para os cofres públicos.
Algumas famílias aceitam esta remoção, outras não. Tão logo são removidas estas favelas, tão logo surgem outras, porque morar bem não é apenas ter uma casa de tijolo. O emprego e o lazer das comunidades não fazem parte do planejamento habitacional. Segundo pesquisa da professora Alba Zaluar, publicada no jornal O Globo em agosto de 2007, apenas 15% dos moradores das favelas cariocas gostariam de deixar o morro.
Não existe, nem por parte do governo nem de arquitetos, preocupação com o bem-estar, com o estilo de vida desta parcela da sociedade. Algumas famílias são iludidas, pensando que com esta mudança vão melhorar de vida, com sua casa própria, pagável em 40 anos. «Hoje as favelas são melhores», afirma um líder de uma comunidade num morro no Rio de Janeiro. «Antes era chão de terra e teto de zinco.» Hoje é melhor apenas porque são utilizados materiais mais nobres nas construções dos barracos?
Vivendo com menos de 100 dólares por mês (200 reais), os moradores destas favelas são seus próprios arquitetos. Eles não dispõem de dinheiro para comprar e escolher a cor da fachada da casa. Na verdade não dispõem de fachada, nem reboco, às vezes nem parede. Sãos seus próprios arquitetos, decoradores, governantes, dentro destas cidades-favela.
As casas populares como as conhecemos hoje, uma das soluções proposta por governos estaduais, federais e municipais, servem apenas para criar barracos maiores. São todas iguais, padronizadas, pequenas, insuficientes do ponto de vista social. Com isto, os moradores, que se sujeitam a aceitar tais projetos, são obrigados a transformá-los. Surgem os chamados puxadinhos, que modificam cada vez mais as casas, num processo irreversível. Sem espaço suficiente, é inevitável que estes locais denominados básicos recebam modificações.
A taxa de crescimento nas favelas é maior do que nas cidades, de acordo com os dados do Ministério das Cidades.
Para o arquiteto Tomás Sanábria, «até que não seja enfrentada esta realidade (o problema das favelas), não poderemos dormir tranqüilos, pois dia após dia a situação piora. É a prioridade por excelência, trata-se de uma situação produto do desinteresse, de não nos termos percebido de uma complexidade, e que hoje nos agonia.»
Mas o problema não diz respeito apenas a arquitetos e governantes. Toda a sociedade tem responsabilidade, como explica Sanábria: «O investimento de esforço requerido é de gigantescas proporções e não creio que exista sociedade alguma que tenha se apercebido do assunto. É de tal natureza a gravidade do problema, que temos de admitir que é de duvidosa solução. Não é um assunto de arquitetos ou urbanistas; admitimos que se trata de uma Mega Equipe na qual toda a sociedade deve atuar com determinação e urgência. É de se esperar que as sociedades e colégios de profissionais acordem e não continuem emudecidos perante o tema.»
O jornalista Érico Costa tem o mesmo pensamento: «Todos os cidadãos são de alguma forma responsáveis pelo agravamento desta situação, seja pela indiferença à pobreza alheia, seja pela visão preconceituosa contra as favelas. Assim sendo, compreender o papel desempenhado por cada ator social não significa apenas reconhecer passivamente as nossas culpas, mas principalmente identificar e utilizar as potencialidades de cada um, visto que qualquer ação está fadada a ser simplesmente paliativa sem o esforço comum de toda a população.»
O crescimento desordenado das cidades é atribuído ao distanciamento entre riscos e pobres, que se acentuou com a Revolução Industrial, no século XVIII. A criação de fábricas atraiu camponeses iludidos com as possibilidades de melhorar de vida. Surge então o regime liberal capitalista que valoriza a produção em série, substituindo a economia agrícola e artesanal.
No entanto, na visão do arquiteto Edson Mahfuz, «fazer mal e fazer bem custa quase a mesma coisa, mas os ganhos em termos de identidade pessoal e dignidade coletiva são inestimáveis.» Para Mahfuz, o setor é controlado pelas construtoras, cujo objetivo único é o lucro:
«É preciso pensar em cada conjunto habitacional como uma mini-cidade integrada ao meio urbano circundante, e que as unidades apresentem características de flexibilidade interna e possibilidades de modificação e ampliação ao longo do tempo.»
Embora a origem – e continuidade – das favelas esteja ligada diretamente ao capitalismo selvagem, algumas outras situações promovem o aparecimento destas sub-moradias, explica Érico Costa.
Ele faz uma leitura mais crítica da questão e, na tentativa de contextualizar, conclui: «Como se pode ver, há muitos aspectos que contribuem para a consolidação do problema-favela. Apesar de estar certamente relacionado ao arcaico modelo capitalista de produção em que vivemos, parece-nos um tanto quanto irrelevante imaginar que o problema foi causado meramente por questões econômicas ou devido a um governo descomprometido.»

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