CINEMA E ARQUITETURA

Juan Guillermo D. Droguett


A relação cinema - arquitetura pode ser considerada sob dois pontos de vista: do modo como a arquitetura é representada na tela e nas formas plásticas com que o cinema constrói seus espaços ficcionais na chamada cenografia. Ainda existe uma outra perspectiva que consiste em mostrar o universo pessoal e criativo do arquiteto, perpassando os nuances da motivação humana na tarefa de projetar o mundo interior nos objetos materiais da obra arquitetônica.
Desta forma, percorremos através de alguns filmes que marcaram época as vicissitudes de duas práticas artísticas que dialogam entre si e que falam da natureza humana e social no tempo e no espaço virtual do cinema.
Uma leitura interpretativa dos espaços arquitetônicos, nos quais o espectador do cinema interage nas mesmas condições que o arquiteto, revela as condições e possibilidades dos objetos tridimensionais da arquitetura: forma, volume e perspectiva na sua qualidade material, transformando-se assim na matéria-prima da subjetividade com a qual o espectador recriará os personagens, objetos e espaços da criação do universo ficcional.


A arquitetura é representada nos filmes de ciência ficção dentro de uma narrativa construída a partir da cenografia, cuja intenção comunicativa consiste em transmitir a idéia sobre o espaço – objetivo e subjetivo no qual o espectador pode se recriar no lugar da ficção. A escolha do gênero de ciência ficção se deve a que, de certa forma, esse gênero antecipa o futuro da arquitetura por meio da formalização narrativa de uma possível realidade. Isso torna esse tipo de obras em clássicos do cinema. Examinemos alguns desses exemplos que trabalhamos no mestrado de Sueli Garcia, de Belas Artes, Arquitetura do espaço cenográfico no cinema (2003):
2001, uma Odisséia no Espaço de Stanley Kubrick (1968) é o caso da arquitetura espacial, caracterizada no âmbito da ecosfera, segundo nos informa Régis Debray, extensão indefinida, constituída pela possibilidade até onde pode alcançar a visão telescópica, pelo sistema solar, pelas estrelas, as galáxias, enfim, por um universo de volume infinito sem limitações do contexto cosmológico.
Este filme de ciência ficção é um referencial visionário de uma era da nossa civilização, uma profecia das novas relações entre o ser humano e o avanço da tecnologia que interfere diretamente nos modos de representação artística da década de 60 que antevia o já passado ano de 2001. A trilha sonora do filme, Assim falou Zarathustra de Richard Strauss, convida a uma passagem pelo túnel do tempo na transposição do passado mais primitivo para o futuro em que Kubrick tenta arquitetar miticamente, valendo-se de toda a aparelhagem tecnológica do cinema.
Logo nas primeiras cenas, a natureza sacralizada pelo primata é alterada pela presença eloqüente de um grande monólito escuro irrompendo na imensidão da paisagem, instaurando a insegurança, o medo e o imprevisível. O efeito de estranheza é causado por um elemento adverso ao ser humano e seu habitat.
Kubrick traz cenas sobre a aurora dos tempos em uma espécie de fotograma – seqüência de imagens sobre a criação e sobre a evolução animal – humano e objeto na qual se revela o poder espacial. Mostra de modo poético o desejo do ser humano de extrapolar seus limites e de atravessar o espaço em busca do desconhecido: do mistério. A técnica joga com os contrastes entre o material e o imaterial, a relação espaço cheio e vazio, a proporção entre o cosmo infinito e a definição das formas entre a espaçonave e a lua.
Para nós o espaço é infinito, logo nada pode estar fora ou demais nesse espaço. Portanto, além do espaço só há mais espaço. Na visão de Kubrick, apresentada no filme, o movimento do cosmo é similar a uma valsa, experiência que representa um ano antes da chega de Neil Armstrong à lua em 1969.
O diretor e realizador lança o espectador na imensidão e infinito do espaço cósmico e o faz experimentar o vasto, profundo e ilimitado que o possui no silêncio, provocando «angústia cósmica», um sentimento que nasce da solidão na qual há os dois espaços, o da intimidade do ser humano e do mundo em consonância.
Quando a solidão se aprofunda, as duas imensidões se tocam e se confundem na órbita proposta por 2001, uma Odisséia no Espaço, projetando de forma cética o que será o século XXI, na hipótese do sujeito humano-maquínico. Efetivamente, é um filme poético que coreografa a evolução da razão, da sensibilidade, da ciência e da tecnologia.
Os cosmonautas, na expectativa de resolver o enigma do monólito, encontram-se em uma atmosfera adversa à terrestre, de cara com um artefato também adverso ao conhecimento humano. Para Kubrick o desenvolvimento de uma colônia na lua respondeu a uma exaustiva pesquisa que este fez na NASA que tinha dirigido seus esforços para descobrir água lunar no lado escuro da lua, na possibilidade de explorar o turismo espacial.
A arquitetura espacial de Kubrick está baseada no solo lunar, embaixo da superfície como forma de proteção contra o atrito dos vendavais ante a falta de gravidade e protegida por uma redoma metálica, aprisionando o ar necessário para a sobrevivência do ser humano nesse habitat estranho. Dentro da nave espacial, por meio da tecnologia, o cineasta criava o ambiente para manter a vida natural. As pesquisas mais atuais apontam hoje para um universo paralelo que Kubrick antecipou de forma magistral, modificando nosso modo de olhar o planeta desde fora.
2001, uma Odisséia no Espaço revela a evolução dos ciclos de vida da humanidade e suas transformações, independente dos meios que interferem na representação de sua produção artística comandada pelo ser humano e seu desejo de apropriação e conquista do espaço.
Blade Runner, o caçador de andróides (1982) de Ridley Scott é um outro exemplo de como o cinema representa nas suas produções o diálogo com a arquitetura, agora terrestre, caracterizada pela superfície, e diz respeito à envoltura gasosa, isto é, à camada de ar que envolve a terra na qual o movimento do ar não sofre praticamente influência da fricção com a superfície concreta. A atmosfera constitui-se em uma camada fina, gasosa, sem odor, sem calor e sem gosto, presa à terra pela força de gravidade. Quando o meio ambiente que a sustenta é agredido, começam os fenômenos nocivos ao ser humano. O filme apresenta também o futuro como conseqüência da conquista da tecnologia incontrolada que está afetando o meio ambiente do planeta.
A trama do filme é fragmentada em universos descontínuos e paralelos, em hierarquias do poder ser humano – máquina, evidenciando um tempo e um espaço repleto de características pós- modernas como: simulacro, bem-estar estrutural, rupturas entre o corpo e a linguagem e a chamada «cultura virtual».
A megalópole de Ridley Scott é feita de uma colagem de cidades como Los Angeles e São Francisco. Possui uma atmosfera densa pela grande sobreposição de edifícios em material sólido e compacto, constituindo-se em mega estrutura em meio de uma chuva ácida e neblina constante, sob a luz sempre noturna. Os prédios são uma mescla de sólidos pesadamente fincados no solo, como as pirâmides de Tyrell, de superfícies texturizadas como artérias geométricas de formigão¹ e metal nas faces externas no meio a inúmeras janelas e elevadores que animam as superfícies. A arquitetura de Los Angeles de 2019 é uma representação de «máquinas de morar», lembrando a definição do arquiteto e urbanista Le Corbusier, no início do século XX.
As grandes faces dos edifícios aparecem no filme como suporte para a projeção de imagens e informação publicitária, recortadas por tochas ou feixes de luzes que se projetam em todas as direções, tornando seus volumes em imagens movimentadas. Os elementos transformadores: tecnologia de ponta, mistura de culturas e conglomerados urbanos compõem uma cidade modernista com um crescimento físico e urbano desenfreado.
A forma dos edifícios das grandes corporações se parece com as construções da Antiguidade: pirâmides egípcias conhecidas como «mastabas», assim como pirâmides truncadas dos Incas e os «zigurates» da Mesopotâmia. A intenção de Scott é mostrar o poder da arquitetura da Antiguidade na sua solidez dos formatos e símbolos capazes de recriar as tentativas humanas de superar o tempo e o espaço na urbe pós-moderna, e de resgatar o humano desses cenários. Nessa cidade a iluminação é artificial e frenética, a paisagem é dominada por grandes edifícios, chaminés da indústria e das corporações. As paredes luzem grandes outdoors e videowalls, os carros flutuam desafiando a gravidade e, ao mesmo tempo, seres humanos clonados se atropelam na perfeição da constituição física e das emoções.
O sentido da cidade de Ridley Scott foi inspirado nas construções da megalópole, antecipada já em 1913 pelo italiano Antonio Sant' Elia, da vanguarda futurista e no Plano Vision de Le Corbusier para Paris, nos projetos de Miles Van der Roche e nos edifícios de Frank Lloyd Wright, que uma década depois foram constituídos de enormes edifícios-cidades, configurando uma topografia iluminada, um verdadeiro esteio de luz na superfície terrestre. Após o filme Blade Runner, na década de 80, alguns arquitetos contemporâneos, como Rino Levi e Norman Foster, passaram a usar nos seus projetos lâminas verticais nos edifícios-cidades.
A referência utilizada por Ridley Scott no apartamento do personagem principal, o policial Deckart, foi a arquitetura e os interiores de Frank Loyd Wright que buscou influências de várias culturas para significar a obra arquitetônica do Novo Mundo, desde os traços culturais de origem: indiana, chinesa, egípcia, assíria, celta e, por fim, japonesa.
De acordo com Kenett Frampton, na sua obra História crítica da arquitetura moderna (1997), os interiores de Wright são espaços de «ficção científica» e sua arquitetura vernácula, caracterizada por meio de formas e materiais que criam uma atmosfera aconchegante e identidade do usuário.
Blade Runner, o caçador de andróides traz um cenário concreto do conflito humano e ecológico que afeta o ecossistema, uma urbe pós-moderna na qual o ser humano luta contra o avanço veloz da tecnologia.
Matrix (1999-2003) – a trilogia é um exemplo de arquitetura subterrânea que encontra no submundo as cissuras acidentais e que contém o clandestino, o segredo e ilegal. É a zona em que não pode ser vista a luz, porque guarda e oculta algo. Nesse sentido, o filme recria o universo ficcional do ciberespaço.
O edifício antigo, das primeiras cenas de Matrix, aparece como uma realidade preste a ser abandonada ante a possibilidade das duas pílulas que definem um novo caminho – vermelha e azul – sendo que a vermelha é a passagem entre o mundo virtual e a realidade de Matriz que levará o personagem ao corpo original no útero cibernético metalizado.
O útero bio-cibernético da Matrix é constituído de infindáveis úteros artificiais de matéria sintética, translúcida e coloidal envoltos por um esqueleto metálico que estrutura o universo da reprodução do ser humano como fonte de energia para a máquina. Em seus milhares de alvéolos, o espaço retém tempo comprimido e inerte dentro do útero que suga a vida, sendo esta a função da arquitetura intra-biocibernética que contraria a função do útero biológico. Ao resgatar o corpo físico da Matrix, é necessário recobrá-lo e torná-lo um receptáculo de informações para libertar o ser humano da máquina, onde o mundo virtual será modelado de acordo com suas batalhas.
No mundo real, o ato de modificar imagens ou arquiteturas é uma operação de caráter complexo e pode alterar os registros do contexto histórico ou eliminar traços de sua origem. Na arquitetura virtual, o interesse da criação está em experimentar figurações que coincidem com atitudes acumuladas na história da imagem em suas abstrações, desnaturalizações, geometrizações, colonizações exacerbadas, vibrações luminosas e outras liberdades que estremecem e subvertem as representações realistas. Poeticamente, no mundo virtual os corpos, objetos, paisagens, cenas vivem aventuras luminosas que se misturam com os pontos dessa trama que é o drama do ser humano no sonho do virtual.
No filme Matrix, a eletrônica promove uma estreita simbiose do ser com as tecnologias. O imaginário está em estado de procriação com as máquinas. O banco de dados e as memórias artificiais com seus dispositivos de interação que contestam a uma sensibilidade própria do sujeito contemporâneo, percebendo o mundo em constante mutação. Comandos, controles e outras interfaces permitem pensar, agir e mudar. A atitude contemplativa e estéril dos meios anteriores como a fotografia, o cinema, a pintura é afetada pela necessidade de manter uma relação com a imagem; mais do que contemplar representações, o ser humano quer interagir com elas e enquanto as imagens se transformam, ele também vai se transformando.
No século XXI, a realidade virtual nos leva à reflexão de que devemos conceber a arquitetura de uma forma diferente; o que é já um princípio e, não se discute, uma nova imagem. A concepção dos espaços muda a partir do momento em que o corpo e suas pulsações vitais passam a ser o elemento transformador, dito de outro modo, não é mais a arquitetura que gera o espaço em que o ser humano deve se adaptar.
Todo o espaço de Matrix é estruturado pelo vazio e pelas energias vitais e perceptíveis, o universo virtual de múltiplas opções de materialidades que se transformam em qualquer matéria necessária. A construção do espaço cenográfico é nesse sentido ilimitada, de implantação instantânea, compondo o ambiente simultâneo. O espaço arquitetônico nunca deixará de existir, pode ser tudo ou nada a ser visualizado, e havendo espaço e relação de objetos haverá uma arquitetura cenográfica.
Matrix subverte o cosmos aparente e provoca o caos. Mesmo na desordem do espaço de dados, os irmãos Wachowski celebram o caos e a mutação, em situações próprias da tecnologia cibernética, não sendo possível fisicamente o modelado da matéria. A vida neste fluxo eletrônico é regida pela mutabilidade da matéria em constante criação. É a dissolução mais recente do fenômeno virtual que não deixa de afetar a cultura metalizada do ciberespaço. Uma arquitetura bio-tecnológica, projetada para um mundo na fronteira do humano. O filme apresenta a espiritualidade dos corpos como poder e conflito entre o humano e a inteligência artificial autônoma.
Após a análise desses filmes escolhidos, que marcaram época e nos quais podemos observar claramente os diálogos entre o cinema e a arquitetura que sublinham a natureza dos espaços e a dinâmica social do objeto arquitetônico, queremos referir a uma terceira perspectiva sinalizada pela figura do arquiteto na representação de um outro clássico do cinema: O sonho de um arquiteto ou A barriga do arquiteto de Peter Greenaway (1987). A síntese do filme é de André Reche Terneiro que já escreveu para a Griffe uma matéria sobre o neo-protagonismo no cinema:
Stourley Kracklite (Brian Dennehy), um renomado arquiteto norte-americano, chega a Roma com sua jovem esposa Louisa (Chloe Webb) para organizar uma exposição sobre o arquiteto francês Etienne-Louis Boullée (1728-1799). Em pouco tempo, Louisa se envolve com o italiano Caspasian (Lambert Wilson), co-organizador da mostra, e declara-se grávida. Kracklite, sentindo fortes dores de estômago, acredita estar sendo envenenado por sua mulher e torna-se obcecado pelas barrigas dos imperadores romanos, imortalizadas nas esculturas do local. Preocupados com a doença do arquiteto, os patrocinadores da exposição sobre Boullée, afastam Stourley com medo da não finalização do projeto. Stourley perde a esposa e vê a direção da exposição que idealizou durante dez anos assumida por Caspasian.
Kracklite arrebatado por tais derrotas, vaga pelas ruas de Roma e destrói um restaurante ao ar livre, completamente bêbado, colocando a culpa de todos os seus problemas de barriga.
A exposição de Kracklite é aberta por sua esposa Louisa, acompanhada por Caspasian. No momento em que ela inaugura o feito do marido, sente-se mal e dá à luz um filho no próprio museu. Stourley, vendo toda a cena sem ser notado, abre uma janela e pula, caindo sobre o carro de Caspasian.
Até aqui André tece sua sinopse e o primeiro que nos sugere é pensar no título do filme A barriga do Arquiteto. O título já é um enunciado visceral do espírito criativo que se instala na luta do protagonista contra a eminência de sua morte. A obsessão inaugura o movimento de Stourley que encontra no recorte de sua ferida mórbida o espaço da evasão aos problemas de sua realidade mais imediata.
Greenaway coloca a figura do arquiteto em um cenário considerado o berço da arquitetura, a imortal Roma, passeando o espectador pelos principais monumentos da cidade histórica. Projeta seu personagem na figura de grandes Imperadores como Augusto e Adriano, reforçando a questão pós-moderna da arquitetura na frase «Roma em ruínas influenciou mais a arquitetura do que se estivesse em perfeitas condições».

Fica o convite para os leitores da Griffe de assistir a estes filmes que dialogam sobre a prática milenar da arquitetura e os novos modos de expressão artística nos registros da tela, na eloqüência da linguagem cinematográfica, onde se encontram: o olhar do espectador que arquiteta seus sonhos e fantasias no movimento incessante do desejo.

Leia mais sobre este assunto

No livro, O feitiço do cinema – ensaios de Griffe sobre a sétima arte, Juan Droguett e outros grandes críticos e teóricos da área realizam uma completa abordagem sobre a relação entre o cinema e os outros saberes que o influenciam: a literatura, a arquitetura e as culturas popular e erudita.

Juan Guillermo D. Droguett
Pós-doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP e em educação pela Universidade de Salamanca — Espanha. Professor da Pós-Graduação da Fundação Armando Álvares Penteado — Faap. Pesquisador e líder do Grupo de Pesquisa Escola Crítica de Cinema. Membro da Associação Internacional de Semiótica do Espaço e do Comitê Científico da Revista
Environment, Land and Society: Architectonics — ELSA da Universidade de Genebra — Suíça. Colaborador do Centro de Estudos Peircianos da Universidade de Navarra — Espanha. Publicou vários livros e artigos, dentre eles, Sonhar de olhos abertos — cinema e psicanálise (2004) e Estética da recepção cinematográfica — sobre os efeitos receptivos da produção midiática (2007).
Acaba de lançar a coletânea O feitiço do cinema – ensaios de Griffe sobre a sétima arte (2009).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A viagem de Platão a Siracusa

O continente branco: viagem ao fim do mundo

Livros