BUENOS AIRES SOB A NEVE


Ieda Cavalcante dos Santos

Milhares de cristais de gelo caíram sobre Buenos Aires, em uma das tardes de julho passado, espalhando alegria singela. Depois de 89 anos, explicaram os noticiários, a neve reaparecia na cidade. Muita gente correu para as praças e emocionou-se com a delicadeza e o brilho dos cristais minúsculos. Comigo não foi diferente: foi meu primeiro encontro com a cidade e com a neve!
A estrutura cristalina e transparente da neve iluminou não apenas os sorrisos dos habitantes da cidade, mas também reavivou a beleza esmaecida de suas praças e esculturas, de seus prédios históricos e das fachadas dos cafés e bares lotados de turistas.
Como se tratou de uma viagem em família, a neve foi marcante para as crianças. Entretanto, para os adultos, a neve encobriu por algumas horas sinais do forte desgaste que pesa sobre Buenos Aires. A terrível crise econômica que jogou para baixo da linha de pobreza quase metade da população da capital argentina ainda não foi superada. Nas praças de áreas históricas e no centro comercial há muitos indigentes. Na Plaza de Mayo, centro histórico especialmente marcado pelas manifestações contra a ditadura militar, foi feito um grande cercado para proteger as estátuas.
A Plaza de Mayo foi um dos primeiros locais que quis conhecer. A praça ficou conhecida internacionalmente como o espaço das manifestações feitas pelas mães e avós contra a ditadura militar. Estas mulheres exigiram dos militares a devolução das crianças que foram arrancadas de presas políticas durante a ditadura. Em uma certa ocasião, conheci uma das madres durante um congresso do Movimento Zapatista, no México. Uma senhora com um sorriso largo e uma firmeza impressionante.
Nas vizinhanças de outra praça importante, a do Congreso, o Movimento das Madres instalou uma universidade popular. A instituição é simples, ocupa dois prédios, ministra cursos e realiza congressos nacionais e internacionais sobre antigos temas que marcam os movimentos de esquerda da América Latina. Até mesmo nesses ambientes senti falta do vigor que marcava a militância crítica no passado recente.
Há uma livraria na Universidade Popular e a prateleira que mais chama a atenção expõe jornais e revistas. São muitas publicações de vários movimentos sociais tanto da Argentina quanto de países vizinhos. Nunca vi nada igual aqui no nosso país. Apesar de toda a crise econômica e política, o nível educacional e político do povo argentino parece ser ainda superior ao que é registrado no Brasil.
Bom, acabo de tropeçar na comparação que, diga-se de passagem, é uma figura de linguagem difícil de usar entre vizinhos com uma relação delicada. Além do mais, depois da neve o assunto principal da imprensa foi a Copa América. A seleção brasileira não ia muito bem, mas arrasou com a seleção argentina.
As águas do Rio da Prata, em cujas margens Buenos Aires cresceu, são uma promessa de que as dificuldades atuais possam ter um desaguadouro. Meu primeiro olhar ficou atento à nostalgia suave que embala a voz do cantor de tango, em um dos bares do La Boca, à sensualidade forçada dos casais de tango, exibindo-se para os turistas nas ruas, aos mitos políticos, entre eles Evita, inflando grupos em oposição, ao navio ancorado no Puerto Madero, uma área nova e nobre onde estão afortunados e muitos prédios de luxo. No Cemitério de La Recoleta, os mausoléus lembram um passado de riqueza. A decadência das construções, entretanto, produz um choque ao visitante desavisado.
Lá fora, uma feira colorida, uma banda de jovens roqueiros e a cordialidade dos portenhos revelam fôlego para atravessar este imprevisível século XXI.

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