SOBRE CERTO MODELO DE EDUCAÇÃO FORMAL

REINALDO SAMPAIO PEREIRA*

A educação formal brasileira tem passado, nos últimos anos, por diversas mudanças. Mudanças constantes parecem necessárias no modelo do processo educativo, na medida em que a sociedade se altera (se a educação formal deve se ajustar, de certo modo, às mudanças sociais) e na medida em que ela deve representar um dos princípios de alterações da sociedade. É preciso, então, pensar em o quê deve ser alterado no supramencionado processo, como alterá-lo, etc. No concernente à velocidade de implementação de alterações, parece-me sensato que mudanças drásticas devem, se possível, serem evitadas. A fim de evitar erros desastrosos para o processo educativo, as mudanças devem ser bem avaliadas e testadas, para, se constatado que pode atingir fins desejados, então implementá-las gradativamente. Isso porque os reflexos de mudanças na educação podem ecoar por longo tempo, e reverter a longa cadeia de conseqüências de medidas adotadas rapidamente pode ser de extrema dificuldade e demandar muito tempo, exigindo que a educação seja pensada a longo prazo.
Uma das idéias recentes que surgiu para alterar a educação do ensino fundamental e médio foi a progressão continuada, um modelo que restringe as possibilidades de reter o aluno em determinadas séries. Esse modelo, de várias perspectivas, apresenta aspectos positivos e negativos. Quanto aos aspectos que poderíamos apontar como positivos, o que mais me salta aos olhos é a probabilidade de menor número de abandonos das salas de aula, seja porque o aluno deixa de ficar em situação constrangedora quando, após várias reprovações, fica em uma sala com outros alunos muitas vezes muito menores e mais novos, ou simplesmente pelo desestímulo após sucessivas reprovações. A maior permanência do aluno em sala de aula gera, ao menos teoricamente, maiores possibilidades para bem educá-lo, o que beneficiaria não apenas o aluno (nesse modelo em que ele tem melhores condições de, a princípio, sentir-se mais confortável, uma vez que, em muito, são evitadas situações constrangedoras de notas baixas ou de reprovações), mas também a sociedade, que formaria cidadãos melhor educados.
A partir desses argumentos, o modelo da progressão continuada começa a revelar seus possíveis benefícios. Se há bons argumentos (e aqui já começam a ser arrolados alguns) para defender a aprovação automática em algumas séries, por outro lado, quer me parecer que há a coincidência entre a progressiva implementação desse novo modelo e grande inclinação na queda da qualidade de ensino. Para justificar tal queda, já ouvi argumentos como: a culpa é do professor que, tendo ou não boas razões (em função do achatamento salarial, deterioração da qualidade de condições de trabalho, etc) acaba não motivando o aluno. Esse discurso, vizinho daquele que o professor deve cativar o aluno, aparenta ser discurso de quem ou nunca lecionou, ou não tem mais que enfrentar o compromisso de voltar a entrar em uma sala de aula, ou então está enxergando flores demais e problemas de menos no agonizante processo educativo.
Pode ser bonita a idéia (explorada pelo cinema americano de vários modos e por diversas vezes) de o professor cativar seus alunos. Ademais, o processo educativo parece ser mais eficiente na medida em que os alunos são cativados pela disciplina, pelo professor ou por qualquer outro motivo, de modo a despertar neles o interesse pela aprendizagem. Mas será que é comum os alunos do ensino médio, por exemplo, gostarem de disciplinas tão diferentes como História, Português, Matemática, Química e Biologia? O aluno que gosta de todas e consegue aprendê-las bem não afigura aqui como problema. Mas, se boa parcela dos alunos não gosta e não está interessada em aprender determinadas matérias, o que fazer? Como cativá-la? Quando havia a possibilidade, como último recurso, de o professor deixar o aluno de segunda época e reprová-lo, isso, ao que parece, fazia com que os alunos estudassem com afinco. Curiosamente, quer me parecer que a formação das gerações anteriores era (considerando o mesmo grau de escolaridade), de modo geral, bem melhor que a das novas gerações que estão sendo formadas com esse novo modelo em que as exigências para a aprovação vão se tornando cada vez mais maleáveis, quando não são pulverizadas.
Aqui, cabe o contra-argumento: o aluno não vai pagar caro demais pela aprendizagem forçada? Não se estará, assim, trazendo para o domínio da educação modelos de uma sociedade que mal educa e, por conta disso, torna-se cada vez mais punitiva? Aos meus talvez embaçados olhos, avessos a princípio, a modelos punitivos, o antigo modelo (em última instância, punitivo) apresenta alguns problemas, como permitir abusos dos professores face ao poder de reprovação, ou então: apesar de possibilitar ao professor obrigar os alunos estudarem, tal motivação para estudar poderia se dar apenas quando eles estivessem sendo punidos, talvez não gerando, assim, alunos muito interessados em aprender. Mas, em relação a esses argumentos, parece plausível contra-argumentar: e estão os alunos hoje mais interessados em aprender? Entre um modelo que pode gerar certos abusos (para cuja implementação seria prudente pensar em meios para tentar conter, na medida do possível, tais hipotéticos abusos) por parte do professor, mas que lhe confere condições de cobrar que os alunos estudem, e um modelo que esvazia as possibilidades de abuso do professor, mas que lhe tira, ao que parece, um eficiente instrumento para poder pressionar os alunos a estudarem, será que a escolha do segundo modelo é melhor, se a finalidade é buscar boa formação intelectual e técnica dos alunos? Para esse fim, será que não é melhor manter a possibilidade de reprovação em todas as séries?
Considero problemática a idéia que perseguir incondicionalmente boa formação teórica ou boa formação técnica pode trazer mais vantagens que desvantagens, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade (deixemos essa discussão para outro momento). Mas, uma vez estabelecido como fim buscar boa formação teórica dos estudantes, nesse contexto (a partir do pressuposto de se buscar boa formação teórica e técnica), quer me parecer que o modelo da progressão continuada afigura como um dos responsáveis para a acentuada queda de qualidade no ensino público fundamental e médio, criando aberrações, como possibilitar a saída de alunos do ensino médio com baixíssima capacidade reflexiva, de leitura, e com precário repertório de informações.
O discurso que sustenta que a aprovação automática visa o bem do aluno parece mascarar outra faceta desse modelo: se, de fato, o modelo da aprovação automática é um dos principiadores da declinação da qualidade de ensino, tal modelo, conseqüentemente, contribui para gerar 'classes' de alunos (em relação a alunos de escolas com bom ensino), segundo a boa ou má formação deles. O aluno que teve facilidades para passar de ano e, com isso, não precisou estudar muito, vindo a ter pior formação, talvez tenha maior probabilidade de ser um profissional pouco cobiçado pelo mercado, correndo o risco de passar parte ou toda a sua vida profissional tendo menores e piores oportunidades que outros que tiveram boa formação. Se, de certo modo, é assim, quem, então, é beneficiado com a implementação de tal modelo educativo?

(*) Professor universitário de Filosofia e Ética. Membro do Grupo de Pesquisa Edutec da UNIP Jundiaí.

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