A SAÚDE EM ESTADO DE SÍTIO


ÉZORA HELENA SILVA MOREIRA*

De acordo com Abraham Flexner, famoso norte-americano que reformulou o ensino médico há quase 100 anos, praticar medicina significa “dominar certas porções de uma série de ciências, dispostas e organizadas com um propósito prático e distinto em vista”.
É isso que faz dela uma profissão, já que o leigo, por definição, não visa a esse propósito e precisa de treinamento especial, a medicina como tal é necessariamente um monopólio.
Nas sociedades modernas este monopólio é legalizado por uma licença de exercício. Os profissionais justificam tal monopólio dizendo que ele é essencial para a segurança do público, mas entre monopólio e conspiração a linha limítrofe é realmente bem difícil de estabelecer... e muito fácil de ultrapassar.
Os médicos antes adorados como bons samaritanos oniscientes, agora são vistos como exploradores, gente de competência freqüentemente duvidosa que encobre erros homicidas de outros colegas.
Relações melhores entre leigos e profissionais não podem acontecer em clima de hostilidade e suspeita mútua, nem se consegue melhora alguma através de barganhas coletivas.
A essência de tais relações é individual e dela decorre a necessidade de se estabelecer claramente esta relação, conceito esse sobre que concordem as duas partes.
As sutilezas da situação ficam ainda mais claras no caso do atendimento do serviço público, onde o fracasso de “curar” um paciente em particular se evidencia no próprio paciente, mas o atribuir culpa está além da capacidade humana.
Entretanto, o profissional médico que se sujeita e pactua com um gestor público despreparado e incompetente na formulação de políticas de saúde, no planejamento e execução de ações que visem a melhoria na qualidade do atendimento, torna-se totalmente vulnerável.
Consideremos, por exemplo, o caso dos tratamentos médicos inadequados por falta de exames, leitos, medicamentos, equipamentos, unidades de terapia intensiva, especialidades, humanização, capacitação, e outros.
Por um lado, trata-se apenas de um paciente (ou seus herdeiros) pleiteando indenização contra danos ocasionados por imperícia ou imprudência do médico. Pelo outro, é absurdo que, após grandes esforços profissionais, um fracasso deva ser causa de processo em juízo, considerando-se as condições desfavoráveis para o exercício da função.
O paciente ou a família entretanto, não pode saber se teve ou não o melhor tratamento.
Seu julgamento se baseia nos resultados em bruto (morte ou cura) e ele quer as razões bem manifestas.
As experiências médicas realizadas em pacientes pobres ou as operações feitas por jovens médicos residentes, enquanto o paciente imagina estar nas mãos de um grande cirurgião, parecem questões bem definidas que encontram paralelo no ensino e na Lei.
Gestores públicos e médicos desfrutaram de seu monopólio por tanto tempo que se esqueceram de que ele era um privilégio dado em troca de um benefício ao povo.
Criaram-se os Conselhos para exercerem o controle social prevendo-se que a administração interna é incapaz de servir ao público com justiça, se não houver vigilância externa.
Tais mudanças sejam vistas como ameaças ou reformas, significam que as reclamações ocasionais foram interpretadas como incompreensão, em vez do que eram: rancor contra a violação da fé, desprezo pela complacência.
Talvez estejamos, na verdade, testemunhando a evolução de uma tendência para uma sociedade cada vez mais voltada para a coletividade, onde os problemas se amontoam e esbarram na mediocridade.
Mas a expectativa do público exige muito mais que mediocridade, de modo que, numa época de ajustes de contas, quando o leigo está ansioso por seus direitos, a recriminação e desânimo gerais são inevitáveis. Mais ainda, embora qualquer profissão deva ser julgada por seus melhores resultados, uma nação democrática, determinada a conseguir igualdade em todas as coisas, realmente a julga por seus piores exemplares.
E é essa a situação presente.
Situações mais sutis, porém, derivam da prática do grupo, quando o paciente pode ser jogado de um lado para o outro, perdendo pouco a pouco a confiança e, no final, percebendo que não lhe deram atenção.
A sensibilidade moral não vai voltar a cada médico, individualmente, com um novo Código do grupo. Um código somente define os limites do comportamento tolerado e o nível moral não é alto quando a maioria dos que vivem sob ele age naquele espaço próximo dos limites permitidos. Os códigos são na realidade para criminosos e competidores, não para as profissões que desejam ser conhecidas como atos de dedicação. Moral aqui não significa apenas honestidade; refere-se à natureza de qualquer encontro entre dois seres humanos.
A regeneração moral só pode ocorrer quando os membros de um grupo sentem que o comportamento ético é desejável e todos os praticam aprovam e admiram.
Após um grande declínio, só se pode dar um crescimento lento, e apenas uma força pode acioná-lo: a da liderança moral e intelectual. Apoiada naturalmente por selecionados homens de talento e boa vontade, que só esperam o aparecimento de um mentor.

(*) Ézora Helena Silva Moreira - Presidente da Associação de Defesa dos Usuários da Saúde – ADEUS. Conselheira do Estado da Saúde

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