O novo fascínio e encanto no neo-protagonismo no cinema

ANDRÉ RECHE TERNEIRO

O fascínio e o encanto que o espectador experimenta com o efeito estético de uma obra cinematográfica refletem uma nova concepção das possibilidades identificatórias que este tem com os protagonistas de um filme.
Ante uma sociedade “desencantada” com os velhos valores da tradição moral e ante o impacto da alta tecnologia, cuja característica fundamental é a velocidade e a aceleração de informação, a experiência estética transformou o ideal de contemplação em um ideal de fluidez e agitação, onde personagens da ficção vivem em constante conflito ético que os leva a transgredir na ordem do real, a imposição simbólica da lei social, representada no imaginário do cinema.
A ética diferencia-se da moral porque abraça um princípio vital da existência, muito além do bem e do mal, segundo o apregoa a moral até a modernidade. Na ética contemporânea, não importa o objeto que o sujeito escolha para representar suas vivências, o importante é o ato de escolher, isto é, o exercício do livre arbítrio que determina um traço de identidade a ser construído ao longo da vida. Acontece desta forma no cinema quando um diretor cria um personagem de ficção e o reveste de personalidade e caráter.
Pode-se constatar nas mais recentes produções cinematográficas que os protagonistas mais fascinantes do cinema, hoje, já não carregam o estigma de serem “bonzinhos”, heróis ou protótipos de bons costumes, muito pelo contrário, o neo-protagonismo é encarnado por personagens muitas vezes de origem desconhecida que se rebelam contra tudo aquilo que lhes é imposto, lutando sob o princípio da transgressão e ante o declínio do princípio de realidade. O triunfo emblemático desses neo-protagonistas resulta da identificação que no espectador se opera em favor das questões mais subjetivas da realidade: ideais, valores, e amor próprio, que são a base da dignidade humana.
O ideal ético dos neo-protagonistas dos filmes transformou-se em um ideal estético, justamente por possibilitar o efeito de estranhamento no espectador, é o familiar do herói protagonista, idealizado, que aparece transfigurado no neo-protagonista, desconcerta o espectador e o leva para uma experiência de catarse, isto é, para uma liberação de energia, perpassando a barreira do ficcional e ligando-se com a outra face do espectador, que se revolta com a realidade contingente. Sensações, emoções e sentimentos se misturam a favor daqueles que antes não tinham voz no cinema e cuja imagem apenas era a sombra do protagonismo. Hoje descobrimos nesses neo-protagonistas o encanto da expressão na ação descontínua e no desenlace inesperado porque o fim só cabe ao espectador. Nisso reside o valor estético de um filme reconhecido no meio social que é inserido, pelas possibilidades de identificação que resultam dessa relação espectador-protagonista, que só pode ser mensurada através da experiência do cinema.
Partindo para uma análise, é possível encontrar tais neo-protagonistas em diversas fases do cinema, criados por distintos diretores. Personagens que são paradoxais nas suas ações, causando um efeito de estranhamento no receptor e ao mesmo tempo de catarse, exemplos disso são Alex do filme “Laranja Mecânica”, Tyler do filme “Clube da Luta”, e os neo-protagonistas do filme “Os Infiltrados”, Willian Costigan e Colin Sullivan.
Quem personifica de maneira sublime o excêntrico neoprotagonista Alex na trama fílmica “Laranja Mecânica”, é Malcolm McDowell. Nesta obra cinematográfica de 1971 produzida pelo diretor Stanley Kubrick, Alex encarna o próprio desejo de rebeldia ante uma sociedade minada por normas e valores morais. Alex vive no berço de uma família inglesa que não sustenta seu modo de ser, rebelde, alucinado e chocante. Nem a ciência consegue deter o impulso agressivo de suas ações, deixando o espectador compadecido ou revoltado contra o poder ideológico das instituições que eram imperantes no cenário do qual Alex fazia parte.
Em 1999, surge o filme “Clube da Luta” do diretor David Fincher, produção que molda um outro neo-protagonista, Tyler, vivido por Brad Pitt.
Tyler estabelece um dilema consigo mesmo e com o outro projetado à sua imagem e diferença, no caso, Edward Norton. Tyler é o psicopata presente no imaginário do personagem de Edward Norton (que não menciona seu nome durante toda a trama), e estabelece, a partir dessa cisão primária, uma aventura que passa revista por todas as formas de expressão de uma sociedade extremamente capitalista que se baseia no consumo como forma de prazer, encontros de auto-ajuda até a delinqüência terrorista. Quem vê tal produção fílmica, confunde-se entre o “eu” e o “outro” alterando suas sensações, emoções e sentimentos a partir de dois pontos de vista distintos, mas que ao mesmo tempo são complementares dentro de uma cultura colapsada ambientada no filme.
A luta deste neo-protagonista por sua verdadeira identidade é tensa e difusa, e representa a tensão do espectador, que também se depara com sua realidade muitas vezes tão complexa quanto a de Tyler.
Tratando-se de um ambiente mais contemporâneo, surge em 2006, o filme “Os Infiltrados”. Nesta obra cinematográfica vencedora, entre outros prêmios, do Oscar de melhor filme em 2006, o protagonismo se dá na relação filial de Willian Costigan, interpretado por Leonardo Di Caprio e Colin Sullivan, personificado por Matt Damon, com o pai Frank Costello, um mafioso nova-iorquino que sustenta o poder simbólico da lei imperante, projetada na instituição policial. Quem traz o pai mafioso em interpretação magistral é o ator Jack Nicholson. Na periferia, as duas identidades (Costigan e Sullivan), representam o desdobramento paterno citado e são responsáveis pela configuração do imaginário cultural na trama do filme.
Uma das identidades, Willian Costigan, procura desvelar a verdadeira identidade do pai, e a outra, Colin Sullivan, pretende ocultá-la, trazendo, nesta batalha de transgressores, um desafio aberto ao também espectador infiltrado no mundo da máfia, da polícia e da vida marginal, arriscando o impossível a favor de um desenlace verdadeiro ou do conformismo da vida de um rato.
A mediação destes personagens para com o espectador se realiza por meio das ambiências nas quais estes personagens são construídos, ao lado do contraponto dos velhos valores morais das sociedades estruturadas e culturalmente representadas.
As transgressões que os personagens realizam movimentam a ação narrativa, perpassando as leis simbólicas da linguagem, do ritual, das instituições e da desumanização que promove o mau uso da tecnologia a favor do mercado e não em função do ser humano, protagonista com o qual o espectador ainda aquece um sonho civilizatório.

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