ESTAÇÃO SAUDADE



Texto:
ROSANA TELLES
Fotos:
VALÉRIA GONÇALVEZ
& VERA GONÇALVES
No ano em que se completa quase um século e meio de existência da ferrovia paulista, as fotógrafas Valéria Gonçalvez e Vera Gonçalves comemoraram a data se embrenhando na intimidade de quem um dia foi tido como o símbolo do progresso, o indultor do desenvolvimento: o trem.
Os retratos são uma evocação saudosa dos tempos em que tudo era mais difícil. Às vezes era preciso viajar para outra cidade atrás de um atendimento médico. O mesmo valia para estudar e tirar um lazer. Como o que acontece ainda até os dias atuais na pequena cidade de Inúbia Paulista, que não tem cinema. Mas aqueles que viveram a era do trem, que ainda arranca suspiros de saudade, seja de antigo usuário ou operador de locomotiva, garantem: "... tempos difíceis aqueles, mas muito poéticos".
O presente trabalho tem como objetivo prestar uma pequena colaboração de caráter informativo das alterações das paisagens e da vida daqueles que ajudaram, ao lado do trem, a colocar o Estado de São Paulo como o mais rico da nação e que, com o passar dos anos, foi ficando para trás, esquecido e ignorado por muitos, principalmente por aqueles que não assistiram ao apogeu da ferrovia e que só terão contato com a história através de institutos e nas páginas dos livros da escola.
Para tal, procurou-se trazer à colocação depoimentos de antigos moradores das vilas ferroviárias e ex-funcionários do setor, o que permite ter uma visão das modificações ocorridas no lapso de tempo. Tais depoimentos, que serão apresentados a seguir, dão conteúdo, forma e vida às transformações ocorridas, relatando, inclusive, fatos pitorescos, uma vez que estão embasados na vivência de cada um dos personagens abordados. Dessa forma, o processo encontra-se enriquecido e impregnado de grande valor humano. Para essa gente, o trem deixou um legado de histórias românticas e exemplos incansáveis de luta.
Nesses 140 anos da ferrovia no Estado de São Paulo, que separam 1867 e 2007, poucas companhias ferroviárias restaram para contar suas histórias. Os poucos registros da época áurea da ferrovia, encontram-se em fotos antigas quase apagadas, que fazem parte de acervos particulares; nas sedes dos sindicatos da categoria de algumas cidades do interior, ou no prego na parede da casa de um ex-ferroviário, que se empenha, com uma indisfarçável satisfação, mexer nos antigos documentos, distintivos, quepes e farda – já desbotados pelo tempo. Armazenados em gavetas e estantes empoeiradas, essas relíquias fazem um convite à fantasia e à oportunidade de recompor a era do trem, que transformou fazendas em estradas, soltando fagulhas e fumaças.
Cento e quarenta anos depois, só nos resta resgatar um pouco o glamour das locomotivas em pequenas comunidades ferroviárias, que procuram não esquecer o que um dia foi o sistema ferroviário de passageiros da década de 30. Como é o caso da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, que, através de um percurso de 40 km, ligando Jaguariúna-Campinas, da antiga Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, exibe o luxo do trem, a limpeza das estações e dos vagões, a chegada e a partida no horário, os impecáveis uniformes. Tudo funcionava na mais perfeita ordem.
Numa seqüência de viagens pela malha paulista de mais de 5 mil km das extintas companhias (Mogiana, Sorocabana, Paulista, Araraquara, São Paulo-Minas), a constatação paradoxal passa agora a ser contada pelos retratos. As estações rimam com casarões para desabrigados – abrindo aqui uma nova discussão para um velho problema, o déficit habitacional; e a travessia proibida, em pelada na várzea com riso solto, inocente e despreocupado. As placas de sinalização insistem em resistir ao tempo e ficam à espera de quem sabe um dia possam ser percebidas e respeitadas.
Em muitos trechos, os trilhos dessa epopéia que já foram aclamados 'corredores do progresso' quase não são mais vistos; no lugar, um imenso matagal. Frente ao quadro triste, é quase impossível imaginar que o vai-e-vem dos trens um dia foi a atração principal para os moradores, que se dirigiam à estação, aos domingos, pontualmente às 18 horas, para assistir a passagem dos vagões carregados de passageiros. "Era uma alegria só ver o trem passar por aqui", afirmou o ex-ajudante geral no trecho de Iacri, José Vitor Bergamo.
Num quadro geral e desconsolador, as imponentes estações, que proporcionavam a seus moradores uma vida bucólica, apresentavam sinais graves de vandalismo. Os vidros das portas e janelas não existiam mais. Na suntuosa Estação Tupã, o antigo balcão de atendimento de madeira nobre virou fogueira, assim como os tacos que cobriam o chão das salas de espera. O pouco que restou serve apenas para encurtar o caminho dos alunos de uma escola e dos moradores, que pulam os trilhos certos de que não correrão nenhum risco de atropelamento. Ao lado da ruína, funciona a sub-sede do Sindicato dos Ferroviários.
Desconsolado, o diretor, senhor Augustinho, explica que a estação era conhecida como quadro de manobra por ter uma linha principal e cinco secundárias no pátio. "Tem que se conformar. Voltar não volta mais", comentou o diretor. "Só quem viveu mesmo é que sabe". Para quem não viveu talvez seja difícil entender que a simples inauguração de uma delas, era convertido num grande acontecimento. Como foi o ato da inauguração, em 16.02.1867, da Estação Jundiaí, que pertence a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, antiga São Paulo Railway, a primeira ferrovia do Estado. Nessas ocasiões, damas e cavalheiros colocavam as melhores roupas para o evento social, mesmo que não fosse num domingo.
Algumas estações tiveram um final mais digno. A de Oriente foi transformada numa pré-escola. A de Paulópolis, numa agência de correio e telégrafos. A de Dracena estava sendo pintada por jovens para abrigar um centro cultural, e a de Lácio foi adaptada para um posto de saúde. No bosque municipal de Garça, adormece a locomotiva fabricada em abril de 1891, pela Williams & Co., da Philadelphia, USA. Da estação, restou apenas o esqueleto da obra construída em 1972.
Garageados no pátio da Estação Pacaembu, 25 vagões gôndolas, usadas para descarregar as produções de soja, milho e amendoim, aguardavam incansavelmente o carregamento dos produtos. O mato alcançava a porta de entrada dos cargueiros e quase escondia a baia, uma espécie de torneira, por onde passava o óleo bruto que era levado para as refinarias de Bauru e preparado para o consumo.
Com o impulso do transporte rodoviário a partir da década de 50, os embarcadores de café optaram por caminhão, relegando a segundo plano o transporte de carga por trem e navio. Aquele período foi marcado também pela debandada de passageiros. As empresas de ônibus davam seus primeiros passos, pegando muita poeira pela frente no tempo em que as estradas não eram asfaltadas.
O desenvolvimento pedia pressa, e o fator tempo tornava-se decisivo nas operações. Desse modo, a ferrovia, gradualmente, como num processo lento de morte, foi parando no meio do caminho. Ora por problemas financeiros do governo, impedindo que se ampliasse o leito, ora por causa da sinuosidade dos terrenos, ora por erros estratégicos. Ali, o trem começava a perder seu estatus de indultor do desenvolvimento e começava a dissolver sua identidade no quadro mais amplo do abandono.
Em algumas estações do norte do Estado, os trens de passageiros deixaram de circular há mais de 10 anos, e os de carga há dois. Cidades, à beira de toda extensão do leito e que emprestavam os nomes das estações, entraram em decadência. Viraram cidades fantasmas. Desapareceram, como foi o caso de Universo. "Depois que acabou o trem, acabou tudo", falou o ex-ferroviário Adelino Pereira da Cruz.
Como se não bastasse a ausência do trem, as plantações cafeeiras davam os primeiros sinais de cansaço. A população rural cadenciada em marcha seguia para os grandes centros, que prosperavam. O êxodo em busca de uma vida melhor foi inevitável. As palavras do escritor Sérgio Milliet: "...o panorama do nosso crescimento e de nosso progresso se desdobra num cenário de colinas riscadas por cafezais. Tudo gira em torno do ouro verde, dele tudo emana e a ele tudo se destina: homens, animais, máquinas. A terra cansada que ele abandona se despovoa, empobrece, definha...", resumem o fato.
Viajar de trem sempre foi mais econômico do que de ônibus. Mas muito mais importante do que isso, a diferença marcante entre os passeios, é que com o primeiro era quase possível tocar a natureza, observar as cachoeiras e o encantamento das crianças. Sem exageros, chega a ser inexplicável o sentimento que o trem causava nas pessoas em todas as fases da vida. "À medida que o trem passava, todos corriam para as janelas e acenavam", recorda seu José Luiz Martinelo, que trabalhou como metalúrgico na oficina em Bauru. Com seus apitos estridentes, a locomotiva a vapor, conhecida como maria-fumaça, é um capítulo à parte. Quem dirigiu uma, sabe que a máquina era a menina dos olhos de todos os maquinistas. Mesmo com todas as tecnologias impostas pelo tempo, ainda assim é difícil largar o passado bucólico. "É uma emoção diferente de uma locomotiva a diesel", falou Osvaldo Alves da Silva.
O ex-ferroviário Antonio Benedito Lopes pagou alto porque tinha pressa. Preferia carregar dormentes nas costas a esperar o carrinho para transportá-lo, mas ainda assim, confessa: "se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria a ser ferroviário". Como diz a canção, o ponto de partida também é o de chegada. "E era melhor ainda quando chegava cheio de mulheres elegantes", conta, entre risos, o aposentado Benedito Apparecido Faustino. A estação, segundo o senhor Benedito, era o local certo para arrumar uma namoradinha. "Os que desciam e os que vinham para namorar eram da cidade, porque não tinha jardim, então o ponto de encontro era na estação."
Em Lucélia, o morador Adão Cordeiro Dourado se considera um quase 'zelador' do que sobrou da obra vizinha. A placa da estação, encontrada por ele jogada no meio do mato, hoje enfeita o pequeno jardim da casa do pedreiro, adaptada em uma torre de caixa d´água. E ele, assim como grande parte da população do interior do Estado, pede: "traz o trem de volta pra nós!". O comerciante João dos Santos Silva, de Junqueirópolis, instalado em frente à rodoviária, comenta "o movimento de passageiros no terminal só aumentou com a desativação dos trens".
O aposentado Pedro Soares de Oliveira, de Broa, conta com orgulho o período em que trabalhou como garçom no carro-restaurante da Companhia Paulista. Ali ele conheceu Moacir Franco, a atriz Etti Fraser, Ronald Golias, Canarinho, o deputado Blota Júnior. Segundo Pedro, o deputado viajava muito para São Carlos e se identificava como ferroviário. "Ele gostava tanto de viajar de trem, que certa vez pediu ao motorista dele que o encontrasse na saída da estação onde ele desembarcaria", ressaltou.
"Aqui ficava a sala de bagagem", aponta senhor João, ao apresentar a Estação de Adamantina. "Aqui funcionava a sala de espera das mulheres e das crianças. Os homens não podiam entrar". No apagar das luzes, governos buscaram maneiras para socorrer o sistema. Unificações, reformulações de companhias e privatizações da malha férrea foram feitas para colocar o trem na linha.
Uma incursão também para a importância de heróis anônimos que deixaram seus países, ou estados brasileiros do Norte e Nordeste, e rumaram para São Paulo em busca da 'nova terra', encerra o trabalho dos retratos. Afinal, não tem como falar da ferrovia sem mencioná-los. Ao chegar aqui, essa gente – que dava um aspecto de mosaico de cor às cidades –, era recebida pelo governo em alojamentos, primeiramente na Hospedaria em Santos e depois no Complexo da Hospedaria do Imigrante. O conjunto abrigava a Agência Oficial de Colonização, responsável pelo encaminhamento das famílias às lavouras de café no interior de São Paulo. Atualmente, o complexo abriga o Museu da Imigração, que presta uma justa homenagem a quem ajudou a construir o Estado.
E aqui terminamos nosso mergulho na malha de ferro, que para alguns pode até não passar de uma rota entre partida e chegada, mas para muitos, será sempre lembrada pela grandiosidade que não perdeu, mesmo nos momentos de agonia, aceitando se abrir para dar lugar ao novo: as estradas.
VALÉRIA GONÇALVEZ
& VERA GONÇALVES
No ano em que se completa quase um século e meio de existência da ferrovia paulista, as fotógrafas Valéria Gonçalvez e Vera Gonçalves comemoraram a data se embrenhando na intimidade de quem um dia foi tido como o símbolo do progresso, o indultor do desenvolvimento: o trem.
Os retratos são uma evocação saudosa dos tempos em que tudo era mais difícil. Às vezes era preciso viajar para outra cidade atrás de um atendimento médico. O mesmo valia para estudar e tirar um lazer. Como o que acontece ainda até os dias atuais na pequena cidade de Inúbia Paulista, que não tem cinema. Mas aqueles que viveram a era do trem, que ainda arranca suspiros de saudade, seja de antigo usuário ou operador de locomotiva, garantem: "... tempos difíceis aqueles, mas muito poéticos".
O presente trabalho tem como objetivo prestar uma pequena colaboração de caráter informativo das alterações das paisagens e da vida daqueles que ajudaram, ao lado do trem, a colocar o Estado de São Paulo como o mais rico da nação e que, com o passar dos anos, foi ficando para trás, esquecido e ignorado por muitos, principalmente por aqueles que não assistiram ao apogeu da ferrovia e que só terão contato com a história através de institutos e nas páginas dos livros da escola.
Para tal, procurou-se trazer à colocação depoimentos de antigos moradores das vilas ferroviárias e ex-funcionários do setor, o que permite ter uma visão das modificações ocorridas no lapso de tempo. Tais depoimentos, que serão apresentados a seguir, dão conteúdo, forma e vida às transformações ocorridas, relatando, inclusive, fatos pitorescos, uma vez que estão embasados na vivência de cada um dos personagens abordados. Dessa forma, o processo encontra-se enriquecido e impregnado de grande valor humano. Para essa gente, o trem deixou um legado de histórias românticas e exemplos incansáveis de luta.
Nesses 140 anos da ferrovia no Estado de São Paulo, que separam 1867 e 2007, poucas companhias ferroviárias restaram para contar suas histórias. Os poucos registros da época áurea da ferrovia, encontram-se em fotos antigas quase apagadas, que fazem parte de acervos particulares; nas sedes dos sindicatos da categoria de algumas cidades do interior, ou no prego na parede da casa de um ex-ferroviário, que se empenha, com uma indisfarçável satisfação, mexer nos antigos documentos, distintivos, quepes e farda – já desbotados pelo tempo. Armazenados em gavetas e estantes empoeiradas, essas relíquias fazem um convite à fantasia e à oportunidade de recompor a era do trem, que transformou fazendas em estradas, soltando fagulhas e fumaças.
Cento e quarenta anos depois, só nos resta resgatar um pouco o glamour das locomotivas em pequenas comunidades ferroviárias, que procuram não esquecer o que um dia foi o sistema ferroviário de passageiros da década de 30. Como é o caso da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária, que, através de um percurso de 40 km, ligando Jaguariúna-Campinas, da antiga Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, exibe o luxo do trem, a limpeza das estações e dos vagões, a chegada e a partida no horário, os impecáveis uniformes. Tudo funcionava na mais perfeita ordem.
Numa seqüência de viagens pela malha paulista de mais de 5 mil km das extintas companhias (Mogiana, Sorocabana, Paulista, Araraquara, São Paulo-Minas), a constatação paradoxal passa agora a ser contada pelos retratos. As estações rimam com casarões para desabrigados – abrindo aqui uma nova discussão para um velho problema, o déficit habitacional; e a travessia proibida, em pelada na várzea com riso solto, inocente e despreocupado. As placas de sinalização insistem em resistir ao tempo e ficam à espera de quem sabe um dia possam ser percebidas e respeitadas.
Em muitos trechos, os trilhos dessa epopéia que já foram aclamados 'corredores do progresso' quase não são mais vistos; no lugar, um imenso matagal. Frente ao quadro triste, é quase impossível imaginar que o vai-e-vem dos trens um dia foi a atração principal para os moradores, que se dirigiam à estação, aos domingos, pontualmente às 18 horas, para assistir a passagem dos vagões carregados de passageiros. "Era uma alegria só ver o trem passar por aqui", afirmou o ex-ajudante geral no trecho de Iacri, José Vitor Bergamo.
Num quadro geral e desconsolador, as imponentes estações, que proporcionavam a seus moradores uma vida bucólica, apresentavam sinais graves de vandalismo. Os vidros das portas e janelas não existiam mais. Na suntuosa Estação Tupã, o antigo balcão de atendimento de madeira nobre virou fogueira, assim como os tacos que cobriam o chão das salas de espera. O pouco que restou serve apenas para encurtar o caminho dos alunos de uma escola e dos moradores, que pulam os trilhos certos de que não correrão nenhum risco de atropelamento. Ao lado da ruína, funciona a sub-sede do Sindicato dos Ferroviários.
Desconsolado, o diretor, senhor Augustinho, explica que a estação era conhecida como quadro de manobra por ter uma linha principal e cinco secundárias no pátio. "Tem que se conformar. Voltar não volta mais", comentou o diretor. "Só quem viveu mesmo é que sabe". Para quem não viveu talvez seja difícil entender que a simples inauguração de uma delas, era convertido num grande acontecimento. Como foi o ato da inauguração, em 16.02.1867, da Estação Jundiaí, que pertence a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, antiga São Paulo Railway, a primeira ferrovia do Estado. Nessas ocasiões, damas e cavalheiros colocavam as melhores roupas para o evento social, mesmo que não fosse num domingo.
Algumas estações tiveram um final mais digno. A de Oriente foi transformada numa pré-escola. A de Paulópolis, numa agência de correio e telégrafos. A de Dracena estava sendo pintada por jovens para abrigar um centro cultural, e a de Lácio foi adaptada para um posto de saúde. No bosque municipal de Garça, adormece a locomotiva fabricada em abril de 1891, pela Williams & Co., da Philadelphia, USA. Da estação, restou apenas o esqueleto da obra construída em 1972.
Garageados no pátio da Estação Pacaembu, 25 vagões gôndolas, usadas para descarregar as produções de soja, milho e amendoim, aguardavam incansavelmente o carregamento dos produtos. O mato alcançava a porta de entrada dos cargueiros e quase escondia a baia, uma espécie de torneira, por onde passava o óleo bruto que era levado para as refinarias de Bauru e preparado para o consumo.
Com o impulso do transporte rodoviário a partir da década de 50, os embarcadores de café optaram por caminhão, relegando a segundo plano o transporte de carga por trem e navio. Aquele período foi marcado também pela debandada de passageiros. As empresas de ônibus davam seus primeiros passos, pegando muita poeira pela frente no tempo em que as estradas não eram asfaltadas.
O desenvolvimento pedia pressa, e o fator tempo tornava-se decisivo nas operações. Desse modo, a ferrovia, gradualmente, como num processo lento de morte, foi parando no meio do caminho. Ora por problemas financeiros do governo, impedindo que se ampliasse o leito, ora por causa da sinuosidade dos terrenos, ora por erros estratégicos. Ali, o trem começava a perder seu estatus de indultor do desenvolvimento e começava a dissolver sua identidade no quadro mais amplo do abandono.
Em algumas estações do norte do Estado, os trens de passageiros deixaram de circular há mais de 10 anos, e os de carga há dois. Cidades, à beira de toda extensão do leito e que emprestavam os nomes das estações, entraram em decadência. Viraram cidades fantasmas. Desapareceram, como foi o caso de Universo. "Depois que acabou o trem, acabou tudo", falou o ex-ferroviário Adelino Pereira da Cruz.
Como se não bastasse a ausência do trem, as plantações cafeeiras davam os primeiros sinais de cansaço. A população rural cadenciada em marcha seguia para os grandes centros, que prosperavam. O êxodo em busca de uma vida melhor foi inevitável. As palavras do escritor Sérgio Milliet: "...o panorama do nosso crescimento e de nosso progresso se desdobra num cenário de colinas riscadas por cafezais. Tudo gira em torno do ouro verde, dele tudo emana e a ele tudo se destina: homens, animais, máquinas. A terra cansada que ele abandona se despovoa, empobrece, definha...", resumem o fato.
Viajar de trem sempre foi mais econômico do que de ônibus. Mas muito mais importante do que isso, a diferença marcante entre os passeios, é que com o primeiro era quase possível tocar a natureza, observar as cachoeiras e o encantamento das crianças. Sem exageros, chega a ser inexplicável o sentimento que o trem causava nas pessoas em todas as fases da vida. "À medida que o trem passava, todos corriam para as janelas e acenavam", recorda seu José Luiz Martinelo, que trabalhou como metalúrgico na oficina em Bauru. Com seus apitos estridentes, a locomotiva a vapor, conhecida como maria-fumaça, é um capítulo à parte. Quem dirigiu uma, sabe que a máquina era a menina dos olhos de todos os maquinistas. Mesmo com todas as tecnologias impostas pelo tempo, ainda assim é difícil largar o passado bucólico. "É uma emoção diferente de uma locomotiva a diesel", falou Osvaldo Alves da Silva.
O ex-ferroviário Antonio Benedito Lopes pagou alto porque tinha pressa. Preferia carregar dormentes nas costas a esperar o carrinho para transportá-lo, mas ainda assim, confessa: "se eu pudesse voltar no tempo, eu voltaria a ser ferroviário". Como diz a canção, o ponto de partida também é o de chegada. "E era melhor ainda quando chegava cheio de mulheres elegantes", conta, entre risos, o aposentado Benedito Apparecido Faustino. A estação, segundo o senhor Benedito, era o local certo para arrumar uma namoradinha. "Os que desciam e os que vinham para namorar eram da cidade, porque não tinha jardim, então o ponto de encontro era na estação."
Em Lucélia, o morador Adão Cordeiro Dourado se considera um quase 'zelador' do que sobrou da obra vizinha. A placa da estação, encontrada por ele jogada no meio do mato, hoje enfeita o pequeno jardim da casa do pedreiro, adaptada em uma torre de caixa d´água. E ele, assim como grande parte da população do interior do Estado, pede: "traz o trem de volta pra nós!". O comerciante João dos Santos Silva, de Junqueirópolis, instalado em frente à rodoviária, comenta "o movimento de passageiros no terminal só aumentou com a desativação dos trens".
O aposentado Pedro Soares de Oliveira, de Broa, conta com orgulho o período em que trabalhou como garçom no carro-restaurante da Companhia Paulista. Ali ele conheceu Moacir Franco, a atriz Etti Fraser, Ronald Golias, Canarinho, o deputado Blota Júnior. Segundo Pedro, o deputado viajava muito para São Carlos e se identificava como ferroviário. "Ele gostava tanto de viajar de trem, que certa vez pediu ao motorista dele que o encontrasse na saída da estação onde ele desembarcaria", ressaltou.
"Aqui ficava a sala de bagagem", aponta senhor João, ao apresentar a Estação de Adamantina. "Aqui funcionava a sala de espera das mulheres e das crianças. Os homens não podiam entrar". No apagar das luzes, governos buscaram maneiras para socorrer o sistema. Unificações, reformulações de companhias e privatizações da malha férrea foram feitas para colocar o trem na linha.
Uma incursão também para a importância de heróis anônimos que deixaram seus países, ou estados brasileiros do Norte e Nordeste, e rumaram para São Paulo em busca da 'nova terra', encerra o trabalho dos retratos. Afinal, não tem como falar da ferrovia sem mencioná-los. Ao chegar aqui, essa gente – que dava um aspecto de mosaico de cor às cidades –, era recebida pelo governo em alojamentos, primeiramente na Hospedaria em Santos e depois no Complexo da Hospedaria do Imigrante. O conjunto abrigava a Agência Oficial de Colonização, responsável pelo encaminhamento das famílias às lavouras de café no interior de São Paulo. Atualmente, o complexo abriga o Museu da Imigração, que presta uma justa homenagem a quem ajudou a construir o Estado.
E aqui terminamos nosso mergulho na malha de ferro, que para alguns pode até não passar de uma rota entre partida e chegada, mas para muitos, será sempre lembrada pela grandiosidade que não perdeu, mesmo nos momentos de agonia, aceitando se abrir para dar lugar ao novo: as estradas.
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