VIDA DE RUA

Flavio F. A. Andrade

O fotodocumentário Vida de Rua tem como objetivo principal registrar a realidade dos moradores de rua de Jundiaí e região, com enfoque no cotidiano.
O que leva uma pessoa a morar nas ruas? Apesar de mostrarmos uma realidade local, a questão não se limita ao município. Fica evidente que este não é problema exclusivamente econômico. Como mostra o texto, nem todos os moradores de rua estão nesta vida por questões econômicas.

















































Por todas as cidades do Brasil existe aquela figura que aos poucos vai se tornando parte da paisagem de concreto. São pessoas que vivem pelas ruas de uma megalópole como São Paulo, cidades pequenas como Itatiba ou cidades médias como Jundiaí. O problema não é novo. Mas o que leva as pessoas para as ruas? Muitos são os motivos. Isolar o fato e generalizar é a única coisa que não podemos fazer.
Nem sempre foi assim. As ruas não ficavam cheias de moradores de rua, andarilhos, pedintes em extrema pobreza. No passado as coisas eram um pouco diferentes.
A rua não é o lugar mais seguro para ficar. Mas para onde ir? As cidades contam com instituições e programas sociais que cuidam e dão abrigo temporário para estas pessoas. O problema é que eles são muitos e as instituições poucas. Além disso, muitos moradores de rua se recusam a ir para um abrigo porque têm medo, se sentem presos, e sabendo do tratamento que alguns albergues disponibilizam, preferem ficar na rua.
Apesar de todos estes problemas, como estas pessoas sobrevivem? Muitos nunca vão roubar qualquer objeto ou alimento. Eles não podem criar inimigos no local onde vivem, caso contrário serão expulsos daquela localidade. Se esta agressão direta não acontece, a vida prossegue e tudo fica bem. Cada um no seu lugar. Eles nas calçadas com suas roupas rasgadas e corpos sujos querendo atenção. E a sociedade que passa atrasada para o trabalho, ignora. Ao passar perto de um morador de rua, a primeira coisa que sentimos é medo.
Quando podem, estas pessoas se camuflam para fugir do perigo. Muitos acham que o índio queimado em Brasília foi a penas o começo de uma matança sem precedentes, mas não foi. Era apenas a ponta de um problema que as pessoas não tinham conhecimento. Depois vieram as ondas de mortes na madrugada de São Paulo, cidade com o maior índice de moradores de rua do país. E assim estas pessoas em situação de rua viram especialistas em se camuflar e permanecer despercebidos. Prova desta “camuflagem” são as meninas em situação de rua que são masculinizadas. Se vestem de homem para não ser violentadas.
Como um animal apavorado, os moradores de rua também usam seus métodos para afugentar as pessoas que os ameaçam. São pacíficos, não roubam, não são violentos. Procuram alimento. É nesta busca que eles ultrapassam uma barreira imposta pela sociedade. A dignidade.
Para aqueles que passam apressados pela rua, com outros destinos, ouvir um pedido de esmola é o mesmo que ser insultado. E pedir esmola é quase sempre a única opção para aqueles que possuem apenas a roupa do corpo e às vezes os seus documentos. Muitos trabalham em subempregos, são explorados e voltam às ruas.
Nas ruas de uma cidade com tantos problemas, a lei da sobrevivência tem que ser seguida. A primeira regra de quem mora nas ruas é não dormir à noite. A cidade vazia é o momento propício para um ataque covarde. Ou quando não há outra opção, precisa se esconder em qualquer canto, dentro de um túnel, debaixo de uma árvore ou se misturar aos sacos de lixo e papel jornal. Como qualquer outra tribo, os territórios são demarcados e cada um tem o seu espaço. Esta é uma perspectiva da vida de um morador de rua em qualquer cidade. Esta não é uma definição de um morador de rua. Mas uma constatação. Quem define é Karl Marx: “o morador de rua está abaixo do proletariado.”
Jundiaí possui hoje muitos moradores de rua e poucas instituições. A cidade tem 350 mil habitantes, e no ranking estadual é a 9ª em arrecadação do PIB e 4ª em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Pesquisa feita pela Ajefa (Associação Jundiaiense de Entidades Filantrópicas e Assistenciais), em 2004, com objetivo de traçar metas e expor a realidade dos moradores de rua, mostrou que os problemas que levam as pessoas para as ruas, na maioria das vezes, estão relacionados com o alcoolismo, correspondentes a 32% dos casos, seguido por desemprego, que atinge 29%.
De acordo com a pesquisa, os motivos que levam uma pessoa a morar na rua são briga familiar, vícios, desvios comportamentais, opção própria e, o principal, questões econômicas. Em muitos estão presentes a dificuldade de perdoar, de se relacionar, se disciplinar para o convívio em grupo. A pesquisa indicou que 85% são do sexo masculino e 15% feminino; 69% têm primeiro grau incompleto; 51% têm filhos; 63% são solteiros e 3% possuem nível superior.
As atividades diárias do morador de rua são: tomar conta de carro, artesanato, vendedores de caneta, enfeite, caseiro e catadores de latinhas e papelão. Estes materiais descartados pela sociedade geram renda para estas pessoas. Com seus carrinhos improvisados, os moradores de rua rodam pela cidade em busca de algo reciclável que será trocado por dinheiro nos pontos de coleta. Estas atividades não são suficientes para garantir sua sobrevivência e não são feitas por todos os moradores de rua. Há casos em que eles estão tão debilitados por causa das drogas que trabalhar não faz parte dos seus planos.
Resta então sobreviver de ajuda. Depender do outro para continuar vivendo com o mínimo de dignidade possível. É aí que entram as instituições e pessoas que, por conta própria, fazem caridade e cuidam dos moradores de rua. As drogas estão presentes na maioria dos casos. É a causa e conseqüência de muitos problemas. Em alguns casos, o morador de rua não está nesta situação por causa do álcool, este muitas vezes serve somente para aquecer o corpo nas noites de frio.
De acordo com especialistas, o resgate da cidadania, recolocação familiar e profissional podem ajudar a tirar a pessoa das ruas. “O primeiro passo para solucionar o problema é fazer com que a população não dê esmolas. É preciso redesenhar o sistema social, os moradores de rua estão acostumados a receber esmolas que podem chegar a 100 reais num só dia. Isso contribui para que permaneçam nestas condições. A esmola acaba com a dignidade”, explica Rosana Tayar, presidente da Ajefa. Para ela, dar esmolas é um ato que endossa a incompetência dos setores em gerar empregos. “Ninguém quer esmolas, todos precisam de oportunidade. Ocorre que há várias gerações o emprego para essa camada da população é utopia. Eu não dou esmolas. Considero a esmola um ato humilhante e de fundo perdido.”
Quem compartilha a mesma opinião é a diretora da Ação Social Magali de Fátima Fonseca. “As esmolas alimentam o vício e aumentam a estadia dessas pessoas nas ruas. Se não tiverem esta ajuda, irão procurar as entidades e estas poderão ajudá-los não só a ter o que comer, como também a resgatarem a auto-estima e conseguirem uma reinclusão social. As pessoas devem olhá-los como seres humanos que são e com as mesmas necessidades que todos nós.”
No entanto, nem todos pensam da mesma forma. Andréa Sampaio, professora universitária e socióloga, se sente na obrigação de dar esmolas. “O morador de rua foi explorado ao máximo pela sociedade. Eu faço parte deste sistema. É uma questão política. Eu dou esmolas, sim.”
A esmola sempre foi alvo de críticas entre estudiosos, pensadores e religiosos. Nas ruas, a metade da população dá esmolas e a outra metade se recusa. Mas independente de dar ou não, este ato muitas vezes constrange as pessoas. Como acabar com esta prática que tanto incomoda? Em 2004, Rosana propôs o lançamento de uma campanha contra esta prática. Mas não deu certo. “Encontramos resistência no setor religioso, que considera a esmola um ato de caridade. E assim se vai fomentando o exército de pedintes, criando gerações de pessoas que encontram na esmola seu meio de vida. Se isso não mudar urgente, as gerações futuras estarão comprometidas.”
Anualmente, a prefeitura investe cerca de 300 mil reais em programas e nas entidades que trabalham com a população de rua. O Estado destina cerca de 150 mil. Jundiaí conta ainda com três entidades que prestam o serviço de atendimento, triagem e orientação ao morador de rua.
As instituições não governamentais e o poder público não chegam a um consenso sobre o número de pessoas que estão morando nas ruas de Jundiaí. De acordo com o levantamento realizado pela SEMIS (Secretaria Municipal de Integração Social) durante o mês de agosto de 2004, Jundiaí possuía trinta e cinco pessoas morando realmente nas ruas, sendo que 172 novos casos foram registrados pela Prefeitura. Já na última contagem em janeiro de 2005 e durante o projeto Espaço Cidadão realizado pela Ajefa, foram constatadas 324 pessoas em situação de rua, sendo que desses, 116 moram na rua diariamente. Os demais ora estão em Jundiaí, ora em outras cidades.
A polêmica não é nova e a solução parece não existir. O assunto é vasto, delicado e se enquadra no triângulo violência-pobreza-liberalismo. Três grandes problemas enfrentados por nosso país.

Mais sobre este assunto:
OS MORADORES DE RUA ESPELHANDO UM ÂNGULO DA DESORGANIZAÇÃO SOCIAL

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