OS MORADORES DE RUA ESPELHANDO UM ÂNGULO DA DESORGANIZAÇÃO SOCIAL
Reinaldo Sampaio Pereira
É desesperador e triste verificar a que ponto está chegando a falta de sensibilidade (ao que parece, cada vez mais generalizada) em relação a questões sociais. Não é necessária grande capacidade especulativa para perceber que as grandes cidades cada vez mais acumulam inúmeros e graves problemas de diversas naturezas: trânsito caótico, violência dos mais variados tipos, péssimas condições de sobrevivência, etc. Um dos problemas reveladores do caos social são os moradores de rua. Parece haver, de modo cada vez mais acentuado, a percepção que eles se tornam problema apenas quando parcela da população tem contato direto com eles, ou então quando é preciso desviar ínfima parte do dinheiro público para ao menos possibilitar que parte deles não morra de fome, de frio ou se torne vítima da violência à qual fica desprotegidamente exposta.
O juízo que atribui toda a culpa da morte de um morador de rua a ele mesmo, após haver a sua recusa para ser recolhido em um abrigo para passar a noite, revela um grave problema, que contribui para a intensificação da desorganização social e, conseqüentemente, para a piora da qualidade de vida de um modo geral. Sem inclinar a nossa argumentação para a qualidade dos abrigos que recolhem os moradores de rua, notemos que, por algum ou alguns motivos (sejam eles quais forem), há alguns moradores que não aceitam serem recolhidos por esses abrigos para pernoitarem, optando pela exposição ao frio e à violência das ruas. Face a tal quadro, não parece, à primeira vista, absurdo o argumento segundo o qual, se não há outras condições melhores, o morador de rua deve aceitar o abrigo, e, se morre na rua, a escolha foi dele próprio, tendo havido a possibilidade de se abrigar. Vale notar que esse discurso (segundo o qual o morador de rua deve se moldar às circunstâncias, mesmo elas sendo péssimas para ele, sendo este morador de rua, portanto, o único responsável pelas suas escolhas) é revelador de uma lógica que contribui para o adoecimento da sociedade de várias perspectivas.
Oferecer péssimas condições de escolha a alguém e depois culpá-lo exclusivamente pelas escolhas feitas, quando as mesmas prejudicam boa parcela da sociedade, parece revelar, de certa perspectiva, uma grave miopia em relação à análise social. Em uma sociedade ideal, com condições de vida não tão acentuadamente diferentes, cobrar de modo incondicional as boas ações dos diversos indivíduos da sociedade pode não gerar nenhuma aberração ética aparente. Mas, em uma sociedade em que muitas vezes a escolha é entre a morte rápida ou a morte mais lenta e sofrida, ou entre alimentar o filho e não deixá-lo morrer de fome ou assaltar, cobrar posturas éticas chega a ser muitas vezes algo perverso.
Não se trata aqui de justificar assaltos e outros tipos de violência, fundamentando a possibilidade de justificativa ética nas condições precárias de vida do agente da ação, geradas pelas extremas desigualdades (de renda, de oportunidades, de educação, etc). Trata-se de, em relação a esse difícil problema social e ético, pensar o comportamento dos indivíduos a partir das condições sociais dadas, e não pensá-los a partir de uma sociedade ideal. As escolhas de como agir devem ser analisadas de modo condicional, considerando o contexto em que tais escolhas foram feitas. O comodamente simples discurso que atribui toda a culpa ao morador de rua ao morrer na própria rua, tendo resistido a ir para um abrigo, esconde, ou ajuda a esconder, o gravíssimo problema de não pensarmos a organização social de modo amplo e estratégico.
Estamos moldando uma sociedade cada vez menos capaz de se sensibilizar com as condições sociais, e cada vez mais míope no concernente à análise das causas dos problemas sociais. E com o agravante que estamos formando defensores de idéias coerentes à primeira vista, mas que se revelam incoerentes quando não aceitas afoitamente. Nessa sociedade (cuja capacidade de análise das causas dos problemas sociais muitas vezes não vai além das causas mais imediatas, quando a elas chegam), discursos que motivam ações geradoras de problemas sociais são cada vez mais facilmente aceitos, e são muitas vezes reproduzidos mecanicamente, contribuindo para tornar a sociedade cada vez mais adoecida e, com isso, restringindo, cada vez mais, as condições de nela vivermos bem.
É mister que comecemos a julgar de modo condicional as ações das pessoas, considerando o contexto social em que elas ocorrem. As ações de um morador de rua não deveriam ser julgadas de modo indiferente se ele possui ou não péssimas condições de sobrevivência. Faz-se necessário, antes de reproduzirmos apressadamente discursos moralistas, que examinemos minimamente a consistência destes. Talvez devêssemos perceber problemas como o dos moradores de rua como sinais de uma adoecida sociedade autofágica. Talvez devêssemos aproveitar o espelhamento do ângulo que o problema dos moradores de rua nos permite para começarmos a analisar de modo mais coerente, consistente e estratégico os problemas sociais, para tornar a sociedade melhor organizada e, conseqüentemente, criarmos melhores condições de nela vivermos bem.
É desesperador e triste verificar a que ponto está chegando a falta de sensibilidade (ao que parece, cada vez mais generalizada) em relação a questões sociais. Não é necessária grande capacidade especulativa para perceber que as grandes cidades cada vez mais acumulam inúmeros e graves problemas de diversas naturezas: trânsito caótico, violência dos mais variados tipos, péssimas condições de sobrevivência, etc. Um dos problemas reveladores do caos social são os moradores de rua. Parece haver, de modo cada vez mais acentuado, a percepção que eles se tornam problema apenas quando parcela da população tem contato direto com eles, ou então quando é preciso desviar ínfima parte do dinheiro público para ao menos possibilitar que parte deles não morra de fome, de frio ou se torne vítima da violência à qual fica desprotegidamente exposta.
O juízo que atribui toda a culpa da morte de um morador de rua a ele mesmo, após haver a sua recusa para ser recolhido em um abrigo para passar a noite, revela um grave problema, que contribui para a intensificação da desorganização social e, conseqüentemente, para a piora da qualidade de vida de um modo geral. Sem inclinar a nossa argumentação para a qualidade dos abrigos que recolhem os moradores de rua, notemos que, por algum ou alguns motivos (sejam eles quais forem), há alguns moradores que não aceitam serem recolhidos por esses abrigos para pernoitarem, optando pela exposição ao frio e à violência das ruas. Face a tal quadro, não parece, à primeira vista, absurdo o argumento segundo o qual, se não há outras condições melhores, o morador de rua deve aceitar o abrigo, e, se morre na rua, a escolha foi dele próprio, tendo havido a possibilidade de se abrigar. Vale notar que esse discurso (segundo o qual o morador de rua deve se moldar às circunstâncias, mesmo elas sendo péssimas para ele, sendo este morador de rua, portanto, o único responsável pelas suas escolhas) é revelador de uma lógica que contribui para o adoecimento da sociedade de várias perspectivas.
Oferecer péssimas condições de escolha a alguém e depois culpá-lo exclusivamente pelas escolhas feitas, quando as mesmas prejudicam boa parcela da sociedade, parece revelar, de certa perspectiva, uma grave miopia em relação à análise social. Em uma sociedade ideal, com condições de vida não tão acentuadamente diferentes, cobrar de modo incondicional as boas ações dos diversos indivíduos da sociedade pode não gerar nenhuma aberração ética aparente. Mas, em uma sociedade em que muitas vezes a escolha é entre a morte rápida ou a morte mais lenta e sofrida, ou entre alimentar o filho e não deixá-lo morrer de fome ou assaltar, cobrar posturas éticas chega a ser muitas vezes algo perverso.
Não se trata aqui de justificar assaltos e outros tipos de violência, fundamentando a possibilidade de justificativa ética nas condições precárias de vida do agente da ação, geradas pelas extremas desigualdades (de renda, de oportunidades, de educação, etc). Trata-se de, em relação a esse difícil problema social e ético, pensar o comportamento dos indivíduos a partir das condições sociais dadas, e não pensá-los a partir de uma sociedade ideal. As escolhas de como agir devem ser analisadas de modo condicional, considerando o contexto em que tais escolhas foram feitas. O comodamente simples discurso que atribui toda a culpa ao morador de rua ao morrer na própria rua, tendo resistido a ir para um abrigo, esconde, ou ajuda a esconder, o gravíssimo problema de não pensarmos a organização social de modo amplo e estratégico.
Estamos moldando uma sociedade cada vez menos capaz de se sensibilizar com as condições sociais, e cada vez mais míope no concernente à análise das causas dos problemas sociais. E com o agravante que estamos formando defensores de idéias coerentes à primeira vista, mas que se revelam incoerentes quando não aceitas afoitamente. Nessa sociedade (cuja capacidade de análise das causas dos problemas sociais muitas vezes não vai além das causas mais imediatas, quando a elas chegam), discursos que motivam ações geradoras de problemas sociais são cada vez mais facilmente aceitos, e são muitas vezes reproduzidos mecanicamente, contribuindo para tornar a sociedade cada vez mais adoecida e, com isso, restringindo, cada vez mais, as condições de nela vivermos bem.
É mister que comecemos a julgar de modo condicional as ações das pessoas, considerando o contexto social em que elas ocorrem. As ações de um morador de rua não deveriam ser julgadas de modo indiferente se ele possui ou não péssimas condições de sobrevivência. Faz-se necessário, antes de reproduzirmos apressadamente discursos moralistas, que examinemos minimamente a consistência destes. Talvez devêssemos perceber problemas como o dos moradores de rua como sinais de uma adoecida sociedade autofágica. Talvez devêssemos aproveitar o espelhamento do ângulo que o problema dos moradores de rua nos permite para começarmos a analisar de modo mais coerente, consistente e estratégico os problemas sociais, para tornar a sociedade melhor organizada e, conseqüentemente, criarmos melhores condições de nela vivermos bem.
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