ENCENAÇÕES COSMOPOLITAS DE SÃO PAULO
Juan Droguett
Ver e sentir a cosmopolita São Paulo para aqueles que convivem o dia a dia com seus espaços e construções significa, no mínimo, um exercício experimental que coloca à prova nossas habilidades perceptivas, em um exercício de reconstrução do passado para entender o momento presente de uma das maiores cidades da América Latina. Infinitas imagens compõem esse caleidoscópio social, cultural e artístico que conjuga o tempo real no espaço simbólico refratado nas mega-construções e no asfalto de vias modernas desta metrópole brasileira.
A cidade de São Paulo, no início da colônia, manteve-se intacta às mudanças sutis do olhar de seus habitantes e visitantes. Durante o século XIX transformou os padrões horizontais dos casarios, substituindo o barro socado pela tecnologia das alvenarias e introduziu o estilo arquitetônico europeu, em uma ótica voltada para o exterior, o espaço público, desapropriando o olhar do cidadão e voltando-se para si.
Hoje São Paulo celebra uma diversidade de paisagens, a renovação do espaço e a construção de outras referências. Deslocam-se as estruturas formadas para conectar-se com a velocidade dos tempos contemporâneos. A escala local, vivenciada nas ruas, quintais dos bairros e nas praças públicas, foi paulatinamente substituída por uma escala real maior que nos conduz ao imprevisível e ao inusitado de sua ação.
A leitura de uma cidade como São Paulo feita na base das sensações visuais seria um modo de reduzir o campo da história dos espaços, de sua arquitetura, de suas obras de arte, e por último negligenciar a memória do cotidiano de sua população. Certa inquietação nos convida a superar as aparências e a escutar a pulsão de seus episódios. Percorrer a cenografia da cidade significa reconhecer o espaço público de São Paulo, reconhecer no seu desenho o traçado histórico de seus caminhos, vinculando-os a fatos de relevância da vida cultural da cidade.
De lá para cá, muitos planos e idéias foram desenvolvidos pela Prefeitura ante o avanço da vida moderna que tomou conta de São Paulo, o que terminou fusionando o velho e o novo centro da cidade e as principais vias de acesso aos bairros, compondo um roteiro de imagens no qual se referencia o imaginário cultural da comunidade paulistana.
O significado do espaço urbano abrange o conhecimento das relações dimensionais: escala e volume dos objetos e de seu entorno, no âmbito da configuração urbana. Mas o espaço só se transforma em lugar quando o conjunto de coisas que compõe tal espaço público interage com as atividades humanas e sociais exercidas aí.
Encenações da vida social e cultural de São Paulo envolvem questões macroeconômicas problemáticas, ligadas ao fenômeno da globalização. Uma delas é o deslocamento do capital e o foco da atenção para locais de maior lucratividade, forças de resistência ao domínio mundial do capital financeiro e tecnológico.
O fluxo de capital e de investimentos econômicos entre regiões da mesma cidade, desigualdades econômicas, emprego e estratégias de sobrevivência da população mais pobre desalojada e longe da qualidade de vida proposta pela visão de modernidade urbana, possibilidades de participação democrática no planejamento urbano, na gestão e nos usos da cidade, questões de proporcionalidade entre espaços de domínio público e privado, formação ou manutenção de identidades pessoais, de grupos sociais e etnias possibilitadas pelo cosmopolitismo, condições para o advento de cidades mundiais receptivas a todo tipo de cidadão e suas culturas, são temas em pauta para compreenderem a dinâmica econômica, social e cultural que pulsa na vida de São Paulo.
Todos esses fatores concorrem para a formação de uma cultura metropolitana que se modela por auto-soluções, já que os serviços públicos e institucionais chegam bem mais tarde que a própria urbanização. O planejamento urbano de São Paulo não alcança os grandes contingentes populacionais da periferia e de bairros deteriorados, dando margem ao surgimento de socializações autônomas e segregadas, nas quais a ausência da administração pública cria a justiça pelas próprias mãos, a segurança privada, as invasões, a sobrevivência baseada na economia das drogas e em atividades ilegais, a troca de favores, a corrupção, a ignorância, o misticismo e manifestações culturais que saltam diretamente da cultura autóctone para a cultura dos meios de comunicação importada.
A instalação de indústrias de base na Região Metropolitana de São Paulo trouxe um contingente imenso de trabalhadores, acarretando um crescimento maior do que esta poderia suportar, criando condições espaciais ainda hoje fortemente presentes em seu funcionamento. O paulistano é basicamente um imigrante, assim o demonstram dados estatísticos eloqüentes a respeito, 55% de seus habitantes com mais de 15 anos nasceram em outras localidades. Este percentual, que já foi maior, ainda é bastante significativo e só diminuirá com a substituição de gerações, a emigração e a diminuição do ritmo do crescimento populacional. Desenraizado e afastado do círculo de suas relações sociais, o migrante de São Paulo foi levado a criar um estilo de vida determinado pelas condições de sobrevivência que foi obrigado a enfrentar. Vivendo em habitações mais baratas e, por isso, acanhadas, inacabadas, distantes do local de trabalho e usadas apenas como dormitório, enfrentando longas horas de percurso em trânsito caótico, realizando grandes cargas de horas extras no trabalho, alimentando-se inadequadamente, sendo obrigado a se afastar das relações de vizinhança e parentesco, apressando o ritmo da vida e fugindo do contexto urbano no tempo livre, o paulistano criou um estilo de vida sacrificado, baseado no trabalho e fundado na ética da responsabilidade, do compromisso e da renúncia.
O singular crescimento da capital paulista é um fenômeno conhecido. Localizada em um planalto, próximo da Serra do Mar e do Porto de Santos, São Paulo aos poucos concentrou a exportação regional e a importação de mercadorias em diversos ciclos da economia, acumulando o capital necessário para a industrialização e atraindo grandes contingentes de população à procura de trabalho e dos serviços públicos. No início dos grandes fluxos migratórios, a partir da Segunda Guerra Mundial até o fim da década de 70, os objetivos do trabalho no grande centro industrial que se erguia eram o aumento da capacidade de consumo de mercadorias essenciais e alguns bens de conforto - como o rádio, a geladeira, o televisor e, mais tarde, o carro - , bem como a inclusão do trabalhador e familiares no sistema público de saúde, previdência e educação.
No entanto, a urbanização sem cidade acompanhou o processo de expansão industrial com tamanha rapidez que criou uma organização caótica, com as moradias sendo jogadas em grande quantidade para a periferia, em espaços precários e sem infra-estrutura. Os refrões criados no passado sobre a cidade e seus habitantes - “aqui se trabalha”, “São Paulo não pode parar”, “o paulistano é sério e não sabe se divertir”, “está sempre com pressa”, “respira fumaça”, “enfrenta congestionamento até em feriado”, “mora dependurado” - apenas servem para testemunhar alguns itens de qualidade de vida, estima da cidade, auto-estima e cidadania que foram relegados a um segundo plano, numa troca pelo emprego, determinada pelas condições históricas do desenvolvimento que aqui se efetivou.
São Paulo entrou rapidamente na era pós-industrial, caracterizada pelas tecnologias da informação, automação da indústria, sua dispersão territorial e o predomínio dos serviços. Os indícios dessa nova era já são bastante visíveis. A metrópole tende a segregar a grande indústria devido ao custo de instalações e operações, nível de remuneração da mão-de-obra, insegurança patrimonial, pessoal e legislações que restringem. Pelas facilidades de comunicação e transporte, elas podem ocupar sítios localizados em cidades mais convenientes e de menor custo operacional. No entanto, o corpo de administradores, a estrutura das telecomunicações, os centros financeiros, as bolsas de valores e outras atividades de caráter internacional permanecerão na metrópole, necessitando cada vez mais de atividades de cultura e lazer como apoio aos negócios.
Esse fenômeno de des-industrialização de espaços urbanos como São Paulo, decorrente do uso cada vez mais intensivo da eletrônica e, portanto, da informática e automação, poderá desconcentrar a moradia, o trabalho, a circulação e o lazer, criando menor necessidade de deslocamentos, melhorando o trânsito, diminuindo a poluição e permitindo novos usos para as localidades de forte transformação.
A indústria do entretenimento em São Paulo, ainda restrita ao consumo e ao espetáculo de massa, tem desenvolvido uma série de produtos culturais através da mídia no domínio que esta faz da imagem nas suas matrizes sonoras, verbais e visuais. Cresce rapidamente a internet como em toda a rede mundial de metrópoles e promove a circulação de enorme capital, aumentando o consumo e trazendo novas perspectivas de emprego. As áreas que mais deverão crescer nos próximos anos são o turismo de negócios e hospitalidade, os serviços de saúde, a pesquisa científica, a educação de ensino superior, a informática e sistemas de informação e a área de lazer, cultura e espetáculos.
O espaço urbano é cada vez mais o espaço da cultura, o lugar onde se materializam as idéias contemporâneas, os valores da modernidade, a inovação e a criação, porque a cidade congrega, une e reúne, influencia, multiplica, combina e potencializa as várias sensibilidades e talentos. Por estes aspectos, nem mesmo a dispersão da indústria será capaz de dissipar a aglomeração urbana. Trata-se do advento da sociedade da informação na qual São Paulo terá um papel importante para a área de serviços de toda natureza. Esta passagem é e continuará sendo traumática pela perda do emprego formal, mas poderá aumentar as possibilidades de ocupação no trabalho autônomo, temporário e de tempo parcial, em funções com ou sem a necessidade de especialização.
No entanto, como produção da alma humana, a cultura, no meio urbano das grandes metrópoles de países em desenvolvimento - caótico, deteriorado, excludente -, tenderá a produzir uma sensibilidade anárquica, que reflete todos os anseios do homem em todas as direções, em conflito ou harmonia aleatórios com as relações sociais circundantes. Uma cidade que oferece o caos e negligencia a necessidade de bem-estar geral da pessoa humana faz com que ela busque seu bem-estar na sombra dos edifícios e nos espaços deteriorados. A barbárie atual, apressada pela globalização, é a exacerbação daqueles aspectos do homem com que a cidade não fala, aquela parte de nós que não encontrou abrigo no meio urbano.
Hoje as metrópoles são cidades mundiais e sintetizam seus países e, mais remotamente, outras civilizações do mundo. Em sua estrutura localizam-se a arte, a filosofia e a ciência; os costumes, as tradições e a memória; os sistemas políticos e o direito; a administração financeira e a gestão dos negócios. Porém, este papel de liderança não está imune às contradições e conflitos do país, da região, do hemisfério e do planeta.
Evidentemente, seria desejável que, antes de se pensar em reordenar o espaço urbano de acordo com novos critérios, todo cidadão tivesse garantia de sobrevivência e moradia, só assim poderíamos gozar de uma cidade com menos pobreza, menos violência e com maiores níveis de desenvolvimento social e cultural, e conseqüentemente maior qualidade de vida.
A encenação cosmopolita de São Paulo é uma colagem, um mosaico composto de espaços, conteúdos culturais e comportamentos heterogêneos. Portanto, estratégias de intervenção pontuais, mais pluralistas e orgânicas, que optam pela mistura, diferenciação e descontinuidade também podem ter sentido simbólico para os habitantes e usuários e servir de impulso para o desenvolvimento sócio-cultural da comunidade paulistana.
Enfim, a emergência de São Paulo no contexto das grandes metrópoles desperta o imaginário da decadência e o avanço da industrialização acelerada na modernidade. Tal decadentismo, que faz parte das crenças milenares, irrompe no meio de um romantismo que se perpetua como tônica das manifestações artísticas de grande fruição, contudo não mais decadente, mas sim reciclado no ambiente das máquinas e nas redes de comunicação e informação.
O cosmopolitismo hoje se vê de maneira diferente daquela São Paulo urbanizada dos séculos anteriores. A cidade passou por um crescimento maior que o inicialmente previsto, a travessia de Aldeia para Vila e a seguir para cidade marcaram os primórdios de uma cidade que estão no registro da memória. No entanto, o desenvolvimento e o progresso moderno fizeram com que esta cidade industrial se transformasse em metrópole, e na atualidade em uma megalópole. Essa diversidade urbanística no cerne da história social de São Paulo está relacionada com as grandes aglomerações das cidades industrializadas e com o esvaziamento paulatino das grandes concentrações urbanas e o ressurgimento das cidades médias e pequenas no interior.
Mas no plano cosmopolita, a globalização teve um papel preponderante para São Paulo. Desencadeou-se uma indústria para o desenvolvimento das técnicas de transporte e comunicação na contemporaneidade. O turismo é um bom exemplo disso, porque se difundiu graças à fusão do mundo do espetáculo, do divertimento e da cultura que se inicia com as artes industriais - mobiliário, moda e da indústria das artes e comunicação - fotografia, rádio, TV, cinema e internet. A difusão da indústria cultural em São Paulo adquire proporções inusitadas, incentivadas por jornais, revistas especializadas, documentários culturais e científicos, filmes e telenovelas.
Aceder ao mundo virtual do chamado ciberespaço constitui-se nos dias de hoje no alargamento da cidade. Essa difusão da representação ficcional da vida cotidiana do paulistano pode ter fragmentado o conceito de personalidade e ferido o universo do ser humano contemporâneo que representa para si, e socialmente, diferentes papéis na sua existência.
O trabalho para os brasileiros é associado diretamente com a identidade, mas ele já não responde a toda a complexidade e valores do mundo atual. O vazio deixado por ele, multiplica-se nos núcleos alternativos de formação de identidade, também com isto os universos ficcionais se estendem para criar uma rede de representações: dos vários papéis que o paulistano pode encenar na ainda cosmopolita cidade de São Paulo.
Ver e sentir a cosmopolita São Paulo para aqueles que convivem o dia a dia com seus espaços e construções significa, no mínimo, um exercício experimental que coloca à prova nossas habilidades perceptivas, em um exercício de reconstrução do passado para entender o momento presente de uma das maiores cidades da América Latina. Infinitas imagens compõem esse caleidoscópio social, cultural e artístico que conjuga o tempo real no espaço simbólico refratado nas mega-construções e no asfalto de vias modernas desta metrópole brasileira.
A cidade de São Paulo, no início da colônia, manteve-se intacta às mudanças sutis do olhar de seus habitantes e visitantes. Durante o século XIX transformou os padrões horizontais dos casarios, substituindo o barro socado pela tecnologia das alvenarias e introduziu o estilo arquitetônico europeu, em uma ótica voltada para o exterior, o espaço público, desapropriando o olhar do cidadão e voltando-se para si.
Hoje São Paulo celebra uma diversidade de paisagens, a renovação do espaço e a construção de outras referências. Deslocam-se as estruturas formadas para conectar-se com a velocidade dos tempos contemporâneos. A escala local, vivenciada nas ruas, quintais dos bairros e nas praças públicas, foi paulatinamente substituída por uma escala real maior que nos conduz ao imprevisível e ao inusitado de sua ação.
A leitura de uma cidade como São Paulo feita na base das sensações visuais seria um modo de reduzir o campo da história dos espaços, de sua arquitetura, de suas obras de arte, e por último negligenciar a memória do cotidiano de sua população. Certa inquietação nos convida a superar as aparências e a escutar a pulsão de seus episódios. Percorrer a cenografia da cidade significa reconhecer o espaço público de São Paulo, reconhecer no seu desenho o traçado histórico de seus caminhos, vinculando-os a fatos de relevância da vida cultural da cidade.
De lá para cá, muitos planos e idéias foram desenvolvidos pela Prefeitura ante o avanço da vida moderna que tomou conta de São Paulo, o que terminou fusionando o velho e o novo centro da cidade e as principais vias de acesso aos bairros, compondo um roteiro de imagens no qual se referencia o imaginário cultural da comunidade paulistana.
O significado do espaço urbano abrange o conhecimento das relações dimensionais: escala e volume dos objetos e de seu entorno, no âmbito da configuração urbana. Mas o espaço só se transforma em lugar quando o conjunto de coisas que compõe tal espaço público interage com as atividades humanas e sociais exercidas aí.
Encenações da vida social e cultural de São Paulo envolvem questões macroeconômicas problemáticas, ligadas ao fenômeno da globalização. Uma delas é o deslocamento do capital e o foco da atenção para locais de maior lucratividade, forças de resistência ao domínio mundial do capital financeiro e tecnológico.
O fluxo de capital e de investimentos econômicos entre regiões da mesma cidade, desigualdades econômicas, emprego e estratégias de sobrevivência da população mais pobre desalojada e longe da qualidade de vida proposta pela visão de modernidade urbana, possibilidades de participação democrática no planejamento urbano, na gestão e nos usos da cidade, questões de proporcionalidade entre espaços de domínio público e privado, formação ou manutenção de identidades pessoais, de grupos sociais e etnias possibilitadas pelo cosmopolitismo, condições para o advento de cidades mundiais receptivas a todo tipo de cidadão e suas culturas, são temas em pauta para compreenderem a dinâmica econômica, social e cultural que pulsa na vida de São Paulo.
Todos esses fatores concorrem para a formação de uma cultura metropolitana que se modela por auto-soluções, já que os serviços públicos e institucionais chegam bem mais tarde que a própria urbanização. O planejamento urbano de São Paulo não alcança os grandes contingentes populacionais da periferia e de bairros deteriorados, dando margem ao surgimento de socializações autônomas e segregadas, nas quais a ausência da administração pública cria a justiça pelas próprias mãos, a segurança privada, as invasões, a sobrevivência baseada na economia das drogas e em atividades ilegais, a troca de favores, a corrupção, a ignorância, o misticismo e manifestações culturais que saltam diretamente da cultura autóctone para a cultura dos meios de comunicação importada.
A instalação de indústrias de base na Região Metropolitana de São Paulo trouxe um contingente imenso de trabalhadores, acarretando um crescimento maior do que esta poderia suportar, criando condições espaciais ainda hoje fortemente presentes em seu funcionamento. O paulistano é basicamente um imigrante, assim o demonstram dados estatísticos eloqüentes a respeito, 55% de seus habitantes com mais de 15 anos nasceram em outras localidades. Este percentual, que já foi maior, ainda é bastante significativo e só diminuirá com a substituição de gerações, a emigração e a diminuição do ritmo do crescimento populacional. Desenraizado e afastado do círculo de suas relações sociais, o migrante de São Paulo foi levado a criar um estilo de vida determinado pelas condições de sobrevivência que foi obrigado a enfrentar. Vivendo em habitações mais baratas e, por isso, acanhadas, inacabadas, distantes do local de trabalho e usadas apenas como dormitório, enfrentando longas horas de percurso em trânsito caótico, realizando grandes cargas de horas extras no trabalho, alimentando-se inadequadamente, sendo obrigado a se afastar das relações de vizinhança e parentesco, apressando o ritmo da vida e fugindo do contexto urbano no tempo livre, o paulistano criou um estilo de vida sacrificado, baseado no trabalho e fundado na ética da responsabilidade, do compromisso e da renúncia.
O singular crescimento da capital paulista é um fenômeno conhecido. Localizada em um planalto, próximo da Serra do Mar e do Porto de Santos, São Paulo aos poucos concentrou a exportação regional e a importação de mercadorias em diversos ciclos da economia, acumulando o capital necessário para a industrialização e atraindo grandes contingentes de população à procura de trabalho e dos serviços públicos. No início dos grandes fluxos migratórios, a partir da Segunda Guerra Mundial até o fim da década de 70, os objetivos do trabalho no grande centro industrial que se erguia eram o aumento da capacidade de consumo de mercadorias essenciais e alguns bens de conforto - como o rádio, a geladeira, o televisor e, mais tarde, o carro - , bem como a inclusão do trabalhador e familiares no sistema público de saúde, previdência e educação.
No entanto, a urbanização sem cidade acompanhou o processo de expansão industrial com tamanha rapidez que criou uma organização caótica, com as moradias sendo jogadas em grande quantidade para a periferia, em espaços precários e sem infra-estrutura. Os refrões criados no passado sobre a cidade e seus habitantes - “aqui se trabalha”, “São Paulo não pode parar”, “o paulistano é sério e não sabe se divertir”, “está sempre com pressa”, “respira fumaça”, “enfrenta congestionamento até em feriado”, “mora dependurado” - apenas servem para testemunhar alguns itens de qualidade de vida, estima da cidade, auto-estima e cidadania que foram relegados a um segundo plano, numa troca pelo emprego, determinada pelas condições históricas do desenvolvimento que aqui se efetivou.
São Paulo entrou rapidamente na era pós-industrial, caracterizada pelas tecnologias da informação, automação da indústria, sua dispersão territorial e o predomínio dos serviços. Os indícios dessa nova era já são bastante visíveis. A metrópole tende a segregar a grande indústria devido ao custo de instalações e operações, nível de remuneração da mão-de-obra, insegurança patrimonial, pessoal e legislações que restringem. Pelas facilidades de comunicação e transporte, elas podem ocupar sítios localizados em cidades mais convenientes e de menor custo operacional. No entanto, o corpo de administradores, a estrutura das telecomunicações, os centros financeiros, as bolsas de valores e outras atividades de caráter internacional permanecerão na metrópole, necessitando cada vez mais de atividades de cultura e lazer como apoio aos negócios.
Esse fenômeno de des-industrialização de espaços urbanos como São Paulo, decorrente do uso cada vez mais intensivo da eletrônica e, portanto, da informática e automação, poderá desconcentrar a moradia, o trabalho, a circulação e o lazer, criando menor necessidade de deslocamentos, melhorando o trânsito, diminuindo a poluição e permitindo novos usos para as localidades de forte transformação.
A indústria do entretenimento em São Paulo, ainda restrita ao consumo e ao espetáculo de massa, tem desenvolvido uma série de produtos culturais através da mídia no domínio que esta faz da imagem nas suas matrizes sonoras, verbais e visuais. Cresce rapidamente a internet como em toda a rede mundial de metrópoles e promove a circulação de enorme capital, aumentando o consumo e trazendo novas perspectivas de emprego. As áreas que mais deverão crescer nos próximos anos são o turismo de negócios e hospitalidade, os serviços de saúde, a pesquisa científica, a educação de ensino superior, a informática e sistemas de informação e a área de lazer, cultura e espetáculos.
O espaço urbano é cada vez mais o espaço da cultura, o lugar onde se materializam as idéias contemporâneas, os valores da modernidade, a inovação e a criação, porque a cidade congrega, une e reúne, influencia, multiplica, combina e potencializa as várias sensibilidades e talentos. Por estes aspectos, nem mesmo a dispersão da indústria será capaz de dissipar a aglomeração urbana. Trata-se do advento da sociedade da informação na qual São Paulo terá um papel importante para a área de serviços de toda natureza. Esta passagem é e continuará sendo traumática pela perda do emprego formal, mas poderá aumentar as possibilidades de ocupação no trabalho autônomo, temporário e de tempo parcial, em funções com ou sem a necessidade de especialização.
No entanto, como produção da alma humana, a cultura, no meio urbano das grandes metrópoles de países em desenvolvimento - caótico, deteriorado, excludente -, tenderá a produzir uma sensibilidade anárquica, que reflete todos os anseios do homem em todas as direções, em conflito ou harmonia aleatórios com as relações sociais circundantes. Uma cidade que oferece o caos e negligencia a necessidade de bem-estar geral da pessoa humana faz com que ela busque seu bem-estar na sombra dos edifícios e nos espaços deteriorados. A barbárie atual, apressada pela globalização, é a exacerbação daqueles aspectos do homem com que a cidade não fala, aquela parte de nós que não encontrou abrigo no meio urbano.
Hoje as metrópoles são cidades mundiais e sintetizam seus países e, mais remotamente, outras civilizações do mundo. Em sua estrutura localizam-se a arte, a filosofia e a ciência; os costumes, as tradições e a memória; os sistemas políticos e o direito; a administração financeira e a gestão dos negócios. Porém, este papel de liderança não está imune às contradições e conflitos do país, da região, do hemisfério e do planeta.
Evidentemente, seria desejável que, antes de se pensar em reordenar o espaço urbano de acordo com novos critérios, todo cidadão tivesse garantia de sobrevivência e moradia, só assim poderíamos gozar de uma cidade com menos pobreza, menos violência e com maiores níveis de desenvolvimento social e cultural, e conseqüentemente maior qualidade de vida.
A encenação cosmopolita de São Paulo é uma colagem, um mosaico composto de espaços, conteúdos culturais e comportamentos heterogêneos. Portanto, estratégias de intervenção pontuais, mais pluralistas e orgânicas, que optam pela mistura, diferenciação e descontinuidade também podem ter sentido simbólico para os habitantes e usuários e servir de impulso para o desenvolvimento sócio-cultural da comunidade paulistana.
Enfim, a emergência de São Paulo no contexto das grandes metrópoles desperta o imaginário da decadência e o avanço da industrialização acelerada na modernidade. Tal decadentismo, que faz parte das crenças milenares, irrompe no meio de um romantismo que se perpetua como tônica das manifestações artísticas de grande fruição, contudo não mais decadente, mas sim reciclado no ambiente das máquinas e nas redes de comunicação e informação.
O cosmopolitismo hoje se vê de maneira diferente daquela São Paulo urbanizada dos séculos anteriores. A cidade passou por um crescimento maior que o inicialmente previsto, a travessia de Aldeia para Vila e a seguir para cidade marcaram os primórdios de uma cidade que estão no registro da memória. No entanto, o desenvolvimento e o progresso moderno fizeram com que esta cidade industrial se transformasse em metrópole, e na atualidade em uma megalópole. Essa diversidade urbanística no cerne da história social de São Paulo está relacionada com as grandes aglomerações das cidades industrializadas e com o esvaziamento paulatino das grandes concentrações urbanas e o ressurgimento das cidades médias e pequenas no interior.
Mas no plano cosmopolita, a globalização teve um papel preponderante para São Paulo. Desencadeou-se uma indústria para o desenvolvimento das técnicas de transporte e comunicação na contemporaneidade. O turismo é um bom exemplo disso, porque se difundiu graças à fusão do mundo do espetáculo, do divertimento e da cultura que se inicia com as artes industriais - mobiliário, moda e da indústria das artes e comunicação - fotografia, rádio, TV, cinema e internet. A difusão da indústria cultural em São Paulo adquire proporções inusitadas, incentivadas por jornais, revistas especializadas, documentários culturais e científicos, filmes e telenovelas.
Aceder ao mundo virtual do chamado ciberespaço constitui-se nos dias de hoje no alargamento da cidade. Essa difusão da representação ficcional da vida cotidiana do paulistano pode ter fragmentado o conceito de personalidade e ferido o universo do ser humano contemporâneo que representa para si, e socialmente, diferentes papéis na sua existência.
O trabalho para os brasileiros é associado diretamente com a identidade, mas ele já não responde a toda a complexidade e valores do mundo atual. O vazio deixado por ele, multiplica-se nos núcleos alternativos de formação de identidade, também com isto os universos ficcionais se estendem para criar uma rede de representações: dos vários papéis que o paulistano pode encenar na ainda cosmopolita cidade de São Paulo.
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