diários de campo, relatos de viagens, livros reportagem e jornalismo literário

>>ANDRÉIA T. COUTO

Malinowski passou meses entre os povos dos arquipélagos da Nova Guiné, no Pacífico Ocidental (1) e produziu o maravilhoso Os Argonautas do Pacífico Ocidental1; Evans-Pritchard, depois de viver no Sudão entre 1930-36 nos presenteou com o livro Os Nuer (2); Lewis-Strauss, em visitas de pesquisa ao Brasil na década de 1930, fez nascer Tristes Trópicos (3); Antônio Cândido, convivendo com os caipiras do interior de São Paulo, escreveu Os parceiros do Rio Bonito (4). Reed, em Os dez dias que abalaram o mundo (5), trouxe aos leitores os detalhes da revolução bolchevique inaugurando, para alguns, um misto de relato/reportagem a um tom que beirava o literário.
Para outros, um brasileiro, Euclides da Cunha, já o fizera anos antes, com Os Sertões (6). Ryszard Kapuscinski, após vinte anos como correspondente na África de um jornal polonês, escreveu Ébano, editado em 2005 pela Companhia das Letras (lançou recentemente um relato sobre a Índia); Marinovich e Silva reportam ao leitor os tempos trágicos do apartheid sul africano nos anos 1990, em O clube do bangue bangue (7).
O que esses autores e livros têm em comum? Malinowski, Pritchard, Levi-Strauss eram antropólogos e de seus diários de observação de campo fizeram surgir clássicos da antropologia que deleitam leitores de qualquer área, curiosos de outras culturas e costumes. Cândido, sociólogo, através de uma linguagem clara, consegue unir a objetividade acadêmica à prosa que beira a literatura. Não por acaso sua maestria com as palavras, aliada à observação, o levou ao campo literário, a cuja pesquisa se dedica até hoje. Reed, Cunha, Kapuscinski, Marinovich e Silva são jornalistas. O que os associa é a destreza com que conseguiram, uns mais, outros menos, aproximar o senso de observação à sensibilidade no trato com a palavra. E a meu ver o que poderia unir ainda Malinowski e Cândido foi serem ambos os autores dos dois títulos mais bonitos e expressivos que já encontrei até hoje. Penso que qualquer escritor gostaria de ter escrito algo que levasse esses títulos.
Em meio a esses autores, poderíamos colocar os relatos de viagem, essa saborosa literatura que leva os que, por alguma limitação, não podem percorrer os lugares visitados pelos autores (muitas vezes as “visitas” são recheadas de algo inusitado, de aventura, ou até mesmo de perigo). Entre nós, Amir Klink é um dos bons. Em Cem dias entre o céu e o mar (8), descreve sua incrível travessia entre as costas africana e brasileira feita solitariamente a bordo de um barco assustadoramente pequeno para uma empreitada daquela envergadura. Desde então Klink realizou outras viagens de aventura, todas muito bem documentadas (e com barcos maiores e melhor equipados) e, embora Paratii (9) - entre dois pólos seja muito bom, Cem dias entre o céu e o mar é impressionante.
Todos aqueles que já realizaram pesquisa de campo na área acadêmica sabem bem o que é um caderno ou diário de campo. Por mais que os lap tops estejam tomando cada vez mais o lugar das pequenas cadernetas de anotações (os pesquisadores de hoje – os que conseguem financiamento, que fique bem claro - vão para campo munidos hoje de moderna tecnologia e os cadernos cederam lugar ao computador, mesmo porque o pesquisador precisa dele para “descarregar” suas fotos digitais) ainda não conseguiram dispensar totalmente o diário. O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, de quem fui aluna de mestrado no curso de Antropologia Social, na Unicamp, e com quem aprendi muito do gosto pela pesquisa de campo, tem até mesmo um livro chamado Diário de campo (10), inspirado naturalmente nas suas inúmeras viagens de pesquisa pelo interior de Goiás e Minas Gerais. E com direito a poesias, pois Brandão também é poeta. E o diário de campo é isso: um misto de anotações objetivas das observações cotidianas da pesquisa (falas dos entrevistados, relatos, entrevistas; observações pessoais; números, tabelas; lembretes; fotos; colagem de recortes de jornal...) com direito a desabafos do pesquisador e inserções pessoais, muitas vezes uma espécie de “diário íntimo” (considerando-se que é à noite, de regresso de um dia inteiro de pesquisa, muitas vezes percorrendo enormes extensões, que se coloca em dia o diário, não é difícil imaginar o caráter intimista que ele pode trazer). Pois o “diário” nos acompanha às vezes por meses, conforme a duração da pesquisa, a ponto de tornar-se quase um objeto-fetiche. Não é à toa que de alguns surgiram bons e interessantes livros.
Assim nascem os relatos de viagem: desde a data da partida, o viajante desembolsa sua caderneta, e vai aí, desde o aeroporto, lançando as primeiras impressões da viagem/aventura que se inicia. Às vezes começa-se o relato durante os preparativos da viagem, contando todos os pormenores da preparação. Quanto mais distante e desconhecido o lugar e o grau de dificuldade do acesso ao destino, mais demorado e minucioso é o preparo. Normalmente começa com uma extensa lista do que levar, separada por assunto.
Da mesma forma que os diários de campo da pesquisa acadêmica, os relatos de viagem são sempre bem documentados e datados para que as verdades aí lançadas possam ser futuramente comprovadas. Muitas vezes são complementados com documentação bibliográfica sobre os lugares de sua passagem.
Foi a partir de A sangue frio (11), de Trumann Capote, que surge o jornalismo literário. Embora os métodos de coleta de dados utilizados por Capote possam ser passíveis de serem contestados, seu livro nasceu sob a égide de um novo gênero de jornalismo ou de literatura ou de mescla dos dois. A partir de então a lista é exaustiva e ultimamente tem muito jornalista passando meses em terras distantes e “exóticas” para dali trazerem material que possa servir de matriz para um livro reportagem. Recentemente (2005), a Companhia das Letras lançou Uma temporada de facões, de Jean Hatzfeld, sobre o genocídio de Ruanda através de relatos de prisioneiros. O leitor que se interessar por esse estilo tem agora uma lista considerável a ser degustada. Boa viagem!

(1) Na década de 1990 a viúva do autor lançou seus diários de anotação, publicados entre nós sob o título Um diário no sentido estrito do termo. R.J.: Record, 1997.
(2) Ed. Perspectiva, 2002.
(3) Lisboa: Ed. 70, 1979.
(4) Ed. 34, 2001.
(5) Ed. Global, 1978.
(6) São Paulo: Ática, 2000.
(7) São Paulo: Companhia das letras, 2003.
(8) São Paulo: Ed. Companhia da Letras, s/d.
(9) São Paulo: Ed. Companhia da Letras, 1992.
(10)São Paulo: Brasiliense, 1982.
(11) São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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