Vicky Cristina Barcelona - A vida é a mais suprema obra de arte

André Reche Terneiro
















Na mais recente obra de Woody Allen, que conta com o grande Javier Bardem (Juan Antonio), a estonteante Scarlett Johansson (Cristina), a atraente Rebecca Hall (Vicky), além de Penelope Cruz, o diretor de Match Point (2005), encena uma comédia que apresenta uma protagonista dividida entre dois mundos que se configuram de maneiras muito distintas. As escolhas de tal protagonista são sempre da ordem: Um noivo bem sucedido no contexto do business norte-americano, ou um sedutor artista espanhol? Compromisso objetivo, ou deslimite atemporal?

O que se pretende neste artigo é tratar com um pouco mais de atenção da imagem do artista utilizando-se o filme Vicky Cristina Barcelona (2008), e os efeitos que este mesmo pode produzir em personagens que representam a defesa das condutas instituídas, ainda mais se esta figura for encarnada por um grande ator como Javier Bardem. O filme ainda traz uma metáfora muito interessante, na paixão de duas garotas por fotografia, Scarlett e Rebecca, em oposição à arte de Bardem, desvelando uma oposição entre conceitos de arte, um mais objetivo, o outro mais subjetivo.

O filme Vicky Cristina Barcelona

O longa gira em torno das duas amigas do título que, durante as férias, decidem passar três meses em Barcelona: Vicky é uma acadêmica cujo mestrado aborda a cultura catalã e que está noiva de um promissor executivo de Nova York, ao passo que Cristina é uma jovem instável que ainda não descobriu sua verdadeira vocação ou mesmo o que busca no amor. Hospedadas na casa de uma parenta de Vicky, elas conhecem o pintor Juan Antonio (Bardem), cujo casamento com a também pintora Maria Elena (Cruz) chegou ao fim quando esta o esfaqueou. Logo as duas moças se vêem atraídas pelo espanhol, embora Vicky resista ao impulso de se entregar. O triângulo amoroso se complica, ao tornar-se um quadrado com o retorno de Maria Elena (Penélope Cruz).

Banhado em cores quentes que retratam Barcelona como uma cidade de prazeres e sensações intensas, o filme faz uma belíssima utilização dos pontos turísticos do lugar: as músicas que atravessam a narrativa – e que pontuam o único aspecto passional do temperamento de Vicky – não só comentam como também compõem aquele universo repleto de paixões e personalidades tempestuosas.

Enquanto isso, Allen transforma seu pares de personagem em comentários à parte sobre vários temas: se Doug, o noivo norte-americano e Vicky representam a razão, Juan e Maria Elena são a pura emoção, ao passo que Cristina, já envolvida com Juan Antonio, plantada ali no meio, tenta encontrar um equilíbrio ao analisar constantemente os próprios sentimentos (o que, de certa forma, a impede de sentir-se completamente feliz ou em paz com suas escolhas, que passam por um permanente auto-questionamento). Por outro lado, se o casal norte-americano reflete o puritanismo (Vicky) e o materialismo (Doug) ianque, Juan e Maria Elena defendem, através de suas atitudes, a liberalidade e a sofisticação intelectual e artística do velho continente – permanecendo Cristina novamente entre os dois, já que, apesar de mais aberta a experimentações sexuais e de relacionamento, permite que sua natureza inconstante a leve de volta ao individualismo representado por sua “busca” solitária por um romance ideal.

Javiem Bardem personifica o ideal romântico do artista sofrido, de olhos tristes e barba por fazer, que, no entanto, é um amante intenso e insaciável. Além disso, sua fascinação pela ex-esposa é uma característica intrigante, já que comenta, por si só, um dos aspectos mais curiosos (e frustrantes) do Amor, que só soa perfeito ao permanecer idealizado, ou seja: ao não se concretizar – interessante observar como Bardem sorri, encantado, ao explicar como Maria Elena o esfaqueou. É possível reparar também na similaridade de cores e estilos dos figurinos utilizados por Bardem e Cruz e perceber como Woody Allen usa este detalhe para ressaltar a forte ligação do casal, ao passo que Vicky e Cristina jamais parecem se encaixar de fato naquela atípica família (embora esta última mantenha a ilusão de ser parte importante daquele lar, ela nada mais é do que a ponte que permite que Juan e Maria Elena convivam com harmonia).

Penélope Cruz não desperdiça a chance oferecida pelo diretor para criar uma personagem marcante que já desperta a curiosidade muito antes de ser vista pela primeira vez em cena. Explosiva, instável e absurdamente sedutora, a atriz se mostra infinitamente mais sensual do que Johannson, que, dez anos mais jovem e famosa mais por seus atributos físicos, empalidece diante da espanhola. Enquanto isso, Rebecca Hall se destaca ao compor a figura mais tridimensional do filme e a personagem feminina entre tantas que mais interessa a este texto, já que Vicky, ao contrário dos demais, se vê sempre divida entre seus impulsos e a própria razão,

De toda a trama, Vicky e Juan Antonio são aqueles que mais interessam para análise deste artigo, começando por entender como os pensamentos de ambos aparecem na trama fílmica através de suas ações.

Tempo e espaço para Vicky e Juan Antonio

A ação humana está em geral prenhe de expectativas engendradas em experiências bem sucedidas, sempre intencionalizada para algum fim, e, aquilo que não gera benefício material é sem sentido. Além disso, fixamos nossas crenças por ter nossos pensamentos guiados pelas realidades externas.

As afirmações acima estão contidas nas teorias semióticas e pragmatistas de Charles Sanders Peirce, e nos servem de base para analisar o comportamento de Vicky, uma das protagonistas do filme Vicky Cristina Barcelona. A personagem citada nasce no berço prático e lógico do american way of life, responsável por determinar todo seu modo de pensar e agir.

Porém, toda a certeza gerada por seus anos de vida no contexto explicitado sofre forte abalo quando Vicky conhece Juan Antonio. Este personagem não vivencia as mesmas experiências no tempo como, por exemplo o objetivo noivo de Vicky, que a aguarda de volta aos Estados Unidos para se casarem.

Os três meses de convivência com Juan Antonio revelam um modo de agir muito mais diverso, alter, sem temporalidade, puro efeito de sensações, pautado em um universo artístico, onírico, onde os objetos do mundo não exercem poder na conduta do artista. O pensamento de Juan Antonio vaga pelo universo do acaso, este, como diz Peirce, um “livre pintor das coisas”.

Liberdade e espontaneidade são a mera possibilidade das coisas, e o artista se permite estar em constante conexão a essa forma de pensamento, diferentemente de um executivo que não enxerga um mundo sem conduta, sem regularidade, sem hábitos.

Juan Antonio torna-se, assim, extremamente sedutor para Vicky, e esta, sabia que as questões do amor para o artista espanhol passavam pelo mesmo caminho incerto e atemporal de suas pinturas.

A diferença de pensamento entre os dois personagens é revelada por Woody Allen também, em um metafórico embate na relação de Juan Antonio com as duas jovens americanas, e trata da oposição entre a fotografia e artes plásticas.

No livro A experiência do Cinema 1983, de Ismail Xavier, André Bazin trata desta separação, afirmando que o surgimento da fotografia liberou as artes plásticas da necessidade de semelhança com a realidade, e que a originalidade da fotografia em relação à pintura, reside na sua objetividade essencial, que lhe confere um poder de credibilidade ausente em qualquer obra pictórica. A fotografia, para o autor, não cria, como a arte, eternidade, ela embalsama o tempo, além disso, as virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real.

A passagem acima revela o que Woody Allen quis ao destacar a imagem destes dois personagens, Juan Antonio e Vicky. A estudante norte-americana representa o corte objetivo da realidade a partir de suas fotografias, ação que representa à dinâmica do mundo do business. Já Juan Antonio está destituído dos compromissos com o real, para criar através de um pensamento desligado das noções de tempo e espaço.

A Vida é a mais suprema Obra de Arte

O filme não tem a intenção de dizer qual a forma de pensamento é mais acertada, melhor que isso, sua função é promover o encontro entre o sonho e a realidade, um puro fenômeno e um puro fato. Ambos se entrelaçam numa comédia-romance, que permite ao espectador rir do drama que perpassa qualquer mente, que é jamais ter a certeza naquilo que se crê.

Personagens que julgam suas vidas emolduradas, perfeitas, personagens que não se importam com esse tipo de juízo, um pano de fundo digno para tal mistura, tinta suficiente para pintar a incompletude humana, e uma variedade infinita de interpretações para essa obra de arte chamada vida, que não poderia ser representada em outra ambiência que não o cinema e seu modo peculiar de colocar-nos no mundo.

André Reche Terneiro

Professor licenciado em Língua Portuguesa e Língua Inglesa, Mestrando em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, Membro do Grupo Escola Crítica de Cinema. Livro publicado pelo autor: O Feitiço do Cinema

http://livraria.folha.com.br/catalogo/1019760


Referências

IBRI, Ivo Assad, Kósmos Noetós: a arquitetura metafísica de Charles S. Peirce: São Paulo: Perspectiva: 1992.

XAVIER, Ismail, A Experiência do Cinema: Antologia: Rio de Janeiro: Graal: 1983.

WAAL, Cornelis de, Sobre Pragmatismo: São Paulo: Loyola: 2007.

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