O corpo na mídia – objetividade e subjetividade de suas representações

JUAN DROGUETT

O corpo na mídia trata da realidade objetiva do corpo na contemporaneidade. No entanto, se admitimos que a imagem do corpo é formada a partir de imagens promovidas pela cultura, isto é, aquelas que são produzidas socialmente, a mídia se oferece como um lugar privilegiado de enunciação sobre a constituição corporal e, conseqüentemente, subjetiva. Procuramos estabelecer quais são os pressupostos deste referencial da percepção que afetam a construção de sua imagem nos dias de hoje, na chamada “sociedade de consumo” e do “espetáculo”.
O corpo é signo de uma mediação entre o mundo objetivo e subjetivo. Feito de uma mistura impossível de realidade e irrealidade. A realidade são ossos, músculos, sangue, cérebro, neurônios e hormônios. Carne que respira, pulsa e sangra. Mas esse corpo chora, ri, ama, luta, comunica-se e produz arte, movido por irrealidades. Os espaços psíquicos e corporais são indissociáveis. Tradicionalmente, a separação entre o orgânico e o psíquico apenas consagra a fraqueza natural do primeiro e a força espiritual do segundo. O inconsciente impõe às atividades das zonas sensoriais o poder de gerar experiências de prazer e sofrimento: é a paixão, aquilo que une o sentimento ao corpo através da linguagem. Esse encontro marcado pela subjetividade é frágil, voluntário e incerto, mas a única evidência de que existe vida (DROGUETT, 2000).
Há uma realidade indiscutível na vida do ser humano: sua existência física e corporal. Tudo está determinado pelo corpo. Ninguém existe separado do corpo. Corpo é pivô, origem e destino, signo visível de um interior invisível.

Corpo – Mídia e Consumo

Segundo Jean Baudrillard, na sociedade de consumo o corpo tornou-se o mais belo objeto de desejo, e a sua “redescoberta”, após uma era milenar de puritanismo, sob o signo da liberdade física e sexual, a sua onipresença [...] na publicidade, na moda e na cultura de massa – encabeçada pela Mídia, o culto higiênico, dietético e terapêutico com que se rodeia; a obsessão pela juventude, elegância, feminilidade, virilidade, cuidados, regimes, práticas sacrificiais com ele se conectam, o Mito do prazer que o circunda – tudo hoje testemunha que o corpo se tornou em objeto de salvação, substituindo literalmente a alma nessa função moral e ideológica (BAUDRILLARD, 1995:36).
Muitas são as evidências que nos permitem definir a sociedade contemporânea como uma “sociedade das imagens” e sua estreita relação com as questões do corpo como produto de consumo, dentre as quais podemos destacar o capitalismo como seu principal eixo. A concorrência deste princípio está baseada na diferenciação dos produtos pelas imagens; trata-se de uma sociedade na qual houve uma imbricação tal, entre economia e cultura, a ponto da indústria cultural tornar-se um paradigma na atualidade; uma sociedade na qual se vive o tempo de modo acelerado e, por conseqüência, de produção e de descarte de tudo o que é produzido; isso leva à implosão de todas as formas produzidas não só de produtos, mas também dos valores e do poder das instituições, gerando uma sociedade vazia e “sem forma”. Vivemos em uma sociedade na qual a imagem mobiliza toda e qualquer forma de relacionamento, marcada pela performance e a produção de efeitos ou impressões.
Marx, Freud e Nietzsche foram os grandes precursores do pensamento moderno ao identificar o corpo como “uma enorme lacuna da filosofia ocidental”. Karl Marx voltou-se para o corpo do trabalhador. Para ele, o corpo é pensado como um sistema de produção econômica, uma espécie de metáfora materializada do mesmo. Considerando a sociedade da imagem e da tecnologia como extensão do corpo humano, a sociedade seria a extensão do corpo simbólico e a tecnologia a extensão do corpo físico. Marx assume que “o mundo é o corpo do ser humano e que, tendo projetado seu corpo no mundo, mulheres e homens são descorporificados, espiritualizados”. Falar de corpo na sociedade capitalista significa, portanto, falar de uma expropriação, de uma instrumentalização a partir do que é instituído como princípio pelo capitalismo.
Sigmund Freud ficou com o corpo do desejo (DROGUETT, 2004). A teoria freudiana refere-se a um corpo sexualizado e “inadequado” aos padrões instituídos pela modernidade[1]. Fala de um corpo sofrido fruto do “desamparo”, instaurado pela passagem para a modernidade em uma história da sexualidade de longa duração. O momento histórico, sobre o qual Freud se debruça, revela como os desejos do corpo tomavam forma consoante com um período marcado pela repressão e que estabelece relações com o modo de produção capitalista e um tipo de poder que este forja.
Friedrich Nietzsche retoma os autores anteriormente citados e centra sua idéia sobre o corpo como vontade de poder. Embora na mesma linha materialista de Marx, considerando as produções do inconsciente de Freud, Nietzsche retoma o processo do trabalho e centra-se na questão do corpo como expressão efêmera da vontade de poder, sendo o objetivo do poder não a sobrevivência material, mas a riqueza, a profusão e o excesso. Na filosofia deste autor, o corpo não é pensado no sentido carnal, a ponto de afirmar que “o mundo é do jeito que é, em função da estrutura peculiar de nossos sentidos”.
Assim, passamos de uma era de repressão cuja mola é o poder – modernidade – para uma política do gozo na contemporaneidade, aqui entendido como o “sentido” ou significado sentido pela via da percepção, na sua mais pura acepção e determinado pela lógica do mercado. O corpo nesses termos torna-se refém de uma lógica contraditória que assume o vazio estrutural da sociedade, apenas para oferecer imagens que possam “encobrir” esse vazio, historicamente determinado pela aceleração do tempo.
Estas questões nos levam a pensar que a problemática do corpo está na moda. O sujeito condizente com a sociedade das imagens está ligado de fato aos imperativos do lucro, impregnado na dúvida sobre como escapar à força do capitalismo dessas imagens. A insatisfação torna-se a condição ideal para a formação crítica, aquela que representa uma “abertura” para novas possibilidades criadoras, já que liberta o velho sujeito burguês do preconceito, assumindo que é no corpo onde se inscreve a verdade de nosso desejo.
A cultura de consumo enfatiza que o mundo das mercadorias e seus princípios de estruturação são fundamentais para entender a sociedade contemporânea. Consomem-se também imagens, assinalando assim duas vertentes para a compreensão do corpo neste contexto: a dimensão cultural da economia, a simbolização e o uso de bens materiais como comunicadores, não apenas como utilidades; na economia de bens culturais, os princípios do mercado – oferta e demanda, acumulação de capital, competição e monopolização – operam dentro da esfera dos estilos de vida, bens culturais e mercadorias.
O consumo nos permite pensar a maneira como as pessoas buscam tecer suas relações sociais, posicionando-se no mundo e dando sentido a suas vidas. A expansão da produção e consumo de bens amplia as possibilidades de “manipulação”, como adverte a Escola Crítica de Frankfurt, em um mundo no qual a realidade tecnológica nos envolve a todos; nela, vida social e alienação, realidade e aparência se confundem. Entendendo-se que o consumo também supõe a manipulação ativa de signos. Na sociedade capitalista, o signo e a mercadoria têm-se juntado para formar o conceito mercadoria-signo, a distinção entre imagem e realidade é gradualmente abolida pela reduplicação infinita de signos, imagens, simulacros e simulações graças à Mídia.
Baudrillard denuncia o consumo como o elemento central e redutor das sociedades capitalistas. Este autor considera a beleza corporal como um signo de valor de troca:

A ética da beleza, que também é a da moda, pode definir-se como a redução de todos os valores concretos e dos valores de uso do corpo – energético, gestual e sexual, ao único valor de permutação funcional que, na sua abstração, resume por si só a idéia de um corpo glorioso e realizado (BAUDRILLARD, 1995:141).
A evidência do corpo na vida social é chamada por Baudrillard de “redescoberta” e estaria associada às necessidades de consumo. Da higiene à maquiagem, passando pelos bronzeamentos, pelo esporte e múltiplas 'libertações da moda'. Essa redescoberta do corpo passa antes de tudo pelos objetos. “Parece que a única pulsão, verdadeiramente libertada na contemporaneidade é a pulsão da compra”, afirma categoricamente o sociólogo.
Existem, portanto, duas vertentes que destacam o papel do consumo, segundo o visto até aqui; por um lado, aquela que reforça a lógica do capitalismo, que conduz à padronização da consciência e do comportamento. Por outro, a satisfação propiciada pelo consumo se deve ao fato de que, os bens proporcionam prestígio social. As pessoas usam as mercadorias para criar vínculos ou para estabelecer distinções sociais, seja para pertencer a um Grupo Social, seja definindo um certo estilo de vida.

Corpo e Comunicação

Esse estilo de vida está estreitamente associado às diferentes posições ocupadas pelo indivíduo na sociedade. No âmbito da comunicação, pode indicar individualidade, auto-expressão e consciência de si estilizada. O corpo, as roupas, o discurso, o lazer, as preferências de comida e bebida, a casa, o carro, a opção de férias, etc., de uma pessoa são vistos como indicadores de individualidade e gosto.
As pessoas não necessariamente podem ser reduzidas a segmentos do mercado, cooptadas e oprimidas pelo sistema, embora seja necessário considerar que suas ações são regulamentadas e influenciadas pela ordem social, consciente ou inconscientemente. É nesse terreno escorregadio, tenso e ambíguo ao mesmo tempo, no qual ocorre o jogo entre a liberdade e a coerção, entre a objetividade e a subjetividade, que as pessoas vão construir seus estilos de vida através do consumo na contemporaneidade.
Com isto, cabe ressaltar a importância do corpo no estabelecimento das relações sociais, o corpo comunica por duas vias: a linguagem e a forma que é culturalmente codificado para operar como um indicador de poder social e prestígio[2]. A linguagem corporal é uma marca de distinção social. O consumo alimentar, cultural e a forma de apresentação são as três maneiras mais importantes de distinguir-se socialmente.
Segundo Pierre Bourdieu, o corpo é a mais irrecusável objetivação do gosto, de classe, que se manifesta de diversas maneiras. Em primeiro lugar no que tem de mais natural em aparência, isto é, nas dimensões e nas formas de uma conformação visível, mas que expressa de mil maneiras toda uma relação com o corpo, ou seja, toda uma maneira de tratar o corpo, de cuidá-lo, de nutri-lo, de mantê-lo e que é reveladora das disposições mais profundas do “hábito” (BOURDIEU, 1988:188)
Desta forma, o estilo construído pelas pessoas possibilita o contraponto ou o equilíbrio entre a coletividade da moda e a personalidade individual, garantindo a possibilidade de cada um identificar-se com outros e de ser único. Tal possibilidade de construção de estilos é dada pelo consumo, importante espaço de definição de identidades na sociedade contemporânea.
Na cultura de consumo, o corpo é apresentado como um objeto sempre pronto para grandes transformações. Esta questão é importante para pensar que através do culto midiático das dietas, da ginástica, cosméticos, lipoesculturas e operações plásticas, uma espécie de estética “a baixo preço”, consolidou-se como tema central do discurso na atualidade. A promessa de “reconfiguração plástica” é o elemento crucial que os meios de comunicação usam para fazer proliferar as imagens. Trata-se do corpo como interface e superfície de “reconfigurações” que colocam o sujeito diante da instabilidade de personalidades múltiplas e a carência de identidade pessoal.
Entretanto, insiste-se que tais representações com suas promessas de gozo tendem a negligenciar as tensões que estão normalmente em jogo na origem da imagem que se faz do corpo próprio, assim como o fato da imagem corporal nunca ser o resultado da reflexão de um projeto individual, mesmo que essa determinação reflexiva receba a imagem de uma decisão de compra de produtos que prometem experiências contínuas de “reconfiguração”[3].
Jacques Marie LACAN desenvolveu uma reflexão importante sobre a articulação corpo, imagem e identificação social em O Estádio do Espelho como formador da função do eu (1998). Nessa perspectiva, a gênesis do eu está associada ao processo de formação da imagem do corpo. Mas, a experiência do corpo individual é dependente de um processo mental, de uma imagem – imago, produzida por meio da introjeção de imagens ideais socialmente desejadas. Disto se desprende o axioma lacaniano de que “nada separa o eu de suas formas ideais absorvidas no seio da vida social”:

Pois a forma total do corpo através da qual o sujeito antecipa em uma miragem a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt, isto é, em uma exterioridade em que decerto essa forma é mais constituinte do que constituída, mas em que acima de tudo, ela lhe aparece em um relevo de estatura que a congela e em uma simetria que a inverte, em oposição à turbulência de movimentos com que ele experimenta animá-la (LACAN, 1998: 98).

Com isto Lacan nos ensina que as primeiras imagens do corpo são introjeções de imagens do corpo do Outro ou da imagem especular vinda do exterior[4]. Durante todo o desenvolvimento subjetivo, essa lógica de captação imaginária pautará a constituição do eu. Isso significa que a experiência de produzir uma imagem corporal é alucinação de si, no sentido de submissão da referência de si à referência do Outro. Experiências de “estranhamento” diante das imagens do corpo ante o espelho são manifestações deste fenômeno exemplar da natureza “alienante” e “alienadora” da imagem do corpo. A fragmentação do corpo, comum nas crianças com menos de cinco anos, é um outro exemplo da precariedade do enraizamento da imagem corporal.
Lacan afirma que o corpo próprio, na verdade, é o corpo do Outro. “O corpo é desde a origem, esse lugar do Outro enquanto espaço onde está inscrita a marca como significante.” Isto significa que o corpo é um lugar fantasmático – do passado, no qual o eu se coloca para ser objeto do desejo do Outro. Esse Outro deve ser compreendido na teoria lacaniana como uma estrutura sócio-simbólica que suporta e configura a integralidade dos vínculos sociais. Nesse sentido, a analogia entre o Outro e a Mídia é clara, pois esta se coloca como o espaço da mediação social por excelência em relação ao Outro.
Na contemporaneidade, a dissolução do eu é forte se pensarmos o eu como unidade, mas é ao mesmo tempo fraca se pensarmos o eu como lugar no qual o sujeito se coloca para tornar-se objeto do desejo do Outro. De fato, podemos mudar de corpo, modelá-lo cirurgicamente, assim como ter experiências sensoriais no espaço virtual que interferem radicalmente na nossa relação corporal. Neste sentido, a grande peculiaridade na atualidade não está na quebra da relação entre corpo e alienação, mas na ausência de conteúdos referenciais de identificação disponibilizados pela cultura de consumo.
Estamos em um momento histórico no qual o sistema social de mercadorias parece ser capaz de absorver todo e qualquer conteúdo de singularização da experiência do corpo, as aspirações de singularidade tendem à negação, seja sob a implementação de pulsões de autodestruição contra a imagem do corpo, seja sob a forma de desejo por aquilo que tem boa forma. Assim, tal mercantilização contém uma verdade, a marca de uma certa paixão pelo real, para além das promessas que oferece o mundo virtual.

O corpo no mundo ficcional

Entender o corpo no mundo ficcional representa encontrar produtos culturais ou dispositivos midiáticos que assumam esta problemática de modo ilustrativo. Deste modo, a mídia cinematográfica nos oferece uma obra prima do destacado cineasta David Cronenberg, no filme eXistenZ (1999). Ele está construído sob a forma habitual do gênero de ciência ficção. Ainda que não considera as viagens no tempo, nem as mega-cidades, opta-se por uma realidade alternativa: a virtual, que não necessariamente está no futuro. Este é o marco ideal para a libertação das obsessões de seus protagonistas. Allegra Geller é uma famosa projetista de jogos dessa realidade virtual, adorada como se fosse uma superstar, a quem os adoradores dessa realidade rendem culto. É perseguida por um grupo de terroristas, os integralistas da realidade que tentam matá-la e destruir eXistenZ, sua última invenção. Durante um atentado é resgatada por Ted Pikul, um vendedor novato, bolsista do departamento de marketing da corporação Antenna, convertido contra sua vontade em seu guarda-costas. Com ele, Allegra compartilha espaços alternados entre o mundo real e o imaginário.
Diferenciando-se de produções de temática similar, como O vingador do futuro, a tecnologia pela qual se acede ao mundo virtual não tem nada a ver com o desenvolvimento de sistemas digitais, eletrônicos ou mecânicos. O filme está baseado em um jogo, cujos aparelhos estão formados por uma combinação de tecidos orgânicos, de animais insólitos e seres humanos junto com materiais inorgânicos. Em eXistenZ, o orgânico e inorgânico não são estados separados. Os jogos se encontram em estranhos pods – bainhas, que se conectam diretamente com a coluna vertebral do jogador, equipado previamente com bioportas que, após serem lubrificadas, têm a função de tomadas receptoras, prontas para serem penetradas pela maquinaria do jogo. Uma vez realizado o encaixe, os jogadores entram em uma realidade paralela que se apresenta muito mais prazerosa que o mundo real.
Neste filme, Cronenberg impulsiona os usuários de eXistenZ a utilizar seus corpos como pontes transmissores e nexos entre duas realidades, entre o exterior e o interior, manipulando-os sem compaixão até desestabilizá-los, assinalando uma vez mais sua repetitiva obsessão com o destino do corpo e com seus eternos medos. “O corpo é a verdadeira fonte de terror dos seres humanos”, dizia Cronenberg; assim, nos seus filmes mostra como o corpo sofre de alterações que provocam os vírus desde o interior. Nos mais recentes trabalhos deste cineasta vemos como o corpo é profanado e destruído por drogas que o contaminam desde o exterior. Neste filme o diretor é mais escatológico, criando um amplo repertório de criaturas disformes, anfíbios mutantes, armas e brinquedos viscosos que convivem constantemente com objetos cirúrgicos.
eXistenZ sugere uma renovação do pensamento racionalista que teve lugar justamente em uma data tão simbólica como foi o fim do milênio - 1999, um momento de reformulações das certezas, não só pela carga milenarista e apocalíptica que inevitavelmente se associou à data, mas também pelas dúvidas naturais que a mudança tecnológica suscita sobre a capacidade do ser humano de adaptar-se ao novo mundo que ele vem criando.
Ante a fragilidade da percepção e a confusão entre o real e o virtual, no marco de um turbilhão de filmes que refletem sobre a solidez da realidade, Cronenberg oferece eXistenZ com uma carga de raciocínio existencialista aberta a numerosas interpretações. Os seres humanos constroem sua própria vida e isto supõe uma escolha constante. A sociedade que apresenta eXistenZ com ares de guerrilha urbana e supurando uma nova forma de sensualidade maquinista, constitui um sofisticado jogo erótico na linha da sexualidade escura.
As máquinas, a partir do lugar de onde se comanda o jogo, são da cor da pele humana, com formas arredondadas não bem definidas, fofas e com protuberâncias que lembram pezões humanos. As bainhas podem adoecer e podem ser interferidas de forma cirúrgica como um animal ou como um órgão, ou diretamente como um corpo sem órgãos. Estas bainhas se conectam com o corpo dos jogadores através de cabos que são muito similares com os cordões umbilicais, com toda a carga de significados que levam estes elementos, transmissores de vida e elo matricial. Por último, as bioportas, o lugar por onde é possível conectar-se com “o objeto que muda a vida”, tem vários aspectos dignos de destaque.
A colocação destas bioportas é toda uma decisão, do mesmo modo que é tatuar-se ou esburacar-se o corpo com fins estéticos, uma cirurgia que implica certo traumatismo, acompanhado de uma dose de dor. O fato de decidir deixar-se colocar uma bioporta é acompanhado por uma atitude temerosa oscilante no protagonista. A máquina instaladora é realmente intimidadora e o clima da cena em que lhe é colocada é como a de um rito de iniciação sexual promíscuo, traumático até o instante em que se produz e obviamente doloroso.
Esta perfuração ou mutilação corporal permite ligar o jogo diretamente ao corpo, podendo conectar dois corpos ou mais por meio destes cabos: cordões umbilicais. Estes corpos entram em relação direta quando estão conectados, tomam parte de um novo corpo orgânico formado por eles, os cordões e as bainhas, reconfiguram uma nova unidade biológica.
Retomando o tema das bioportas, estas são novas zonas erógenas; os orifícios. Quando a câmera faz um zoom, lembra sem dúvida os orifícios genitais humanos, com os quais compartem atributos similares: Allegra diz em uma cena a seu companheiro que sua bioporta “está excitada”, a seguir se lubrifica o dedo com saliva e, em uma clara conotação sexual, apenas introduz uma pequena porção de seu índice. Ele reage ofendido, sentindo sua intimidade violentada. Assim, em outra cena é ele que se excita com a bioporta de Allegra, tentando tocar o orifício com a ponta da língua.
O corpo e a simbiose do corpo – aparelho – plugado como tópico de Cronenberg, funciona como revelador da agonia, no sentido de luta entre o corpo e a máquina, ultramodernidade e pulsões primárias relacionadas com o erótico, a eletrônica e os fluidos corporais em uma harmonia perturbadora.
Para além da constatação de que o único espaço de experiência real na contemporaneidade é exatamente o mundo virtual – ciberespaço, já que o espaço da realidade que se vive é dominado pela alienação do trabalho e pelo tédio, o filme coloca em cena um desejo vinculado às possibilidades da reconfiguração dos corpos. O sujeito enunciador de eXistenZ nos posiciona justamente diante da possibilidade de estar em constante mutação e de ter abandonado a aspiração de uma identidade integradora.

Considerações Finais

Este texto discutiu o que pode ser a experiência do corpo em uma sociedade marcada pela aceleração do tempo e pelo conseqüente esvaziamento de suas formas sociais advindas da modernidade. Considerou a Mídia como um paradigma de formação da imagem corporal, atrelada aos movimentos do consumo e do espetáculo, assim como a idéia do corpo ser uma estratégia de distinção social para redefinir sua identidade no mercado de estilos da complexa trama do mundo contemporâneo. Por fim, assinalou o que pode ser o futuro da inevitável fusão do corpo com a máquina no ciberespaço a partir da obra de David Cronenberg, um ensaio sobre o destino desse mistério que ainda nos resulta admirável, desafiador e instigante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDRILLARD, Jean. Sociedade de Consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.

BOURDIEU, Pierre. La distinción: criterios y bases sociales del gusto. Madrid: Taurus, 1988.

DROGUETT, Juan. Desejo de Deus. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

______. Sonhar de olhos abertos – cinema e psicanálise. São Paulo: Arte & Ciência, 2004.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

FILMOGRAFIA

CRONENBERG, David. eXistenz. Canadá, França e Inglaterra: Ciência Ficção, 1999.
[1] Aqui a modernidade é vista como um período de transição no qual prevalece a idéia do progresso e o horizonte de expectativas em torno do indivíduo. Nesse sentido, Freud nos remete a um “Mal Estar da Civilização”. Um dos grandes críticos da modernidade é Jürgen Habermas, ver: O discurso Filosófico da Modernidade (1990) e Teoría de la acción comunicativa (2001).
[2] Nesse sentido, a linguagem também envolve a gestualidade.
[3] Gozo é usado neste contexto para apontar ao “sentido”, sentido que mencionamos em parágrafo anterior e representa a capacidade humana de poder interpretar no corpo a força social das representações.
[4] O Outro na teoria lacaniana representa em primeiríssima instância a mãe, a figura de poder que nos garante a sobrevivência e que vai se desdobrando em diversas funções e pessoas que a existência nos oferece. Esse caráter matricial é estruturante no sujeito, a ponto de Lacan afirmar que se trata de um objeto “perdido para sempre”.

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